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João Bandeira

Textos de Robert Smithson são encontro de pulp fiction com land art

Artista lendário dos EUA tem produção textual traduzida e ressignificada

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João Bandeira

Poeta, autor de Quem Quando Queira (Cosac Naify) entre outros livros e também escreve sobre artes visuais.

[RESUMO] Processos contínuos de construção e dissolução das cidades contemporâneas encontram eco nas obras de Robert Smithson. O artista se tornou conhecido por suas contribuições artísticas no campo da land art, vertente estética, surgida nos anos 1960, na qual o artista trabalha com e sobre a natureza. O legado de Smithson agora é revisitado no Brasil com exposição em São Paulo e tradução de seus textos publicados originalmente na revista de vanguarda Artforum.

Na última década, a antiga área de comércio do bairro do Butantã, em São Paulo, vinha tendo sua calma suburbana perfurada por edificações mais recentes, furúnculos arquitetônicos esparsos no rastro da chegada do metrô. E agora é assolada por um bombardeio monumental de empreendimentos imobiliários em execução, deslocando massas de matéria bruta ou industrializada com um arsenal de guindastes de longo alcance, bate-estacas em contraponto, escavadeiras-tiranossauros, frotas de betoneiras-vertigos, pilhas de pré-moldados e containers; tudo manejado pela infantaria de trabalhadores vestidos com uma traquitana meio de alpinistas.

Antes que se cumpra a promessa de a desenxabida paisagem dessa área tornar-se um espetáculo homogêneo de torres pós-pós-modernas e vida sobrecontrolada, alguns dos primeiros novos edifícios já mostram sinais de desgaste, enquanto a mobilidade caótica se espalha pelas imediações.

"Terceiro Deslocamento de Espelho no Iucatã" (1969), impressão cromogênica a partir de slide cromogênico, obra de Robert Smithson
"Terceiro Deslocamento de Espelho no Iucatã" (1969), impressão cromogênica a partir de slide cromogênico, obra de Robert Smithson - Coleção Solomon R. Guggenheim Museum. © Holt/Smithson Foundation / Licenciado por Artists Rights Society, Nova York

Tento, no trecho anterior, uma imitação do olhar e de algumas formulações do artista norte-americano Robert Smithson (1938-1973), aplicados a "ruínas reversas" da região onde moro.

O fato é que, entrando pela porta de sua imaginação literária —que, integrada com a plástica, não é pouca—, pude reenquadrar minha simples indignação diante da mudança inexorável, depois de ter nas mãos uma reunião de seus escritos para a revista Artforum vertidos ao português e seguindo minuciosamente o desenho gráfico das páginas nas edições originais —em que ele mesmo se envolvia.

"Robert Smithson: Artforum 1966-73" é a caprichada publicação inicial da editora Ébria, preparada por Antonio Ewbank e Wallace V. Masuko. Em paralelo, eles organizam a exposição Terra-Palavras, com algumas peças gráficas de Smithson e outros materiais em torno do trabalho dele, aberta no espaço de exposições da Coleção Moraes Barbosa, cujo acervo deu suporte à pesquisa para a publicação.

O arrojo do píer em espiral "Spiral Jetty", construído em 1970 (três anos antes de sua morte) na margem de um enorme lago em Utah, EUA, fez de Smithson talvez o nome mais conhecido do que se convencionou chamar de land art. E, ao mesmo tempo, parece ter aprisionado um pouco seu trabalho nessa designação, quando entendida apenas como se fosse mais um grande (também literalmente) gênero artístico, ao lado de pintura, escultura etc.

Entretanto, sabe-se que a sua noção de "earthwork" (que Ewbank traduz por terra-trabalho) se estende por um conjunto de materiais e processos articulados, incluindo desenhos, objetos, esculturas, fotografias, filmes, mapas, plantas e documentos diversos.

Nesse conjunto estão, é claro, os enormes e, por isso mesmo, icônicos trabalhos realizados ao ar livre, em "sites" escolhidos. E ainda os seus "nonsites", vistos no interior de galerias, museus e espaços semelhantes, principalmente na forma de estruturas geométricas —contendo pedras, cristais, terra e afins—, e da portátil matéria impressa, como ele se refere aos seus textos.

Na sua enumeração de uma dialética de "site e nonsite", ele relaciona ao primeiro os "limites abertos", a "certeza indeterminada" e a "informação espalhada", contra os "limites fechados", a "incerteza determinada" e a "informação contida", características do último.

Uma aluvião de fontes flui pelos escritos de Robert Smithson e outros de seus trabalhos (realizados ou só projetados), atravessados pela ideia de constituição e dissolução ininterruptas —"o tempo como medium", nas palavras de Jack Flam, organizador dos seus "Collected Writings", passagens e rebatimentos entre coisas físicas e mentais; uma espécie de tectônica de itens geológicos e de engenharias, imagens, abstrações teóricas.

E muita literatura, não apenas em sentido estrito: esbarramos em Borges, Brian Aldiss, Nabokov, e também Barthes, Levi-Strauss, Lewis Mumford, Santayana e Heráclito, por exemplo. Além de ecos de textos de divulgação e ficção científica, inclusive a de tipo pulp fiction e seus análogos nos filmes B. Não deixa de ser impressionante como tudo isso se conecta, formando progressivamente uma grande área de sentido, mesmo que avessa a ser delimitada com exatidão.\

Acompanhada de imagens, a maioria dos textos publicados na revista Artforum avança em blocos temáticos imprevisíveis, como deslizamentos de terra pelas colunas da página até sedimentarem-se na nossa compreensão. "Meu trabalho é impuro, está abarrotado de matéria. Não há escapatória do físico nem escapatória da mente. Os dois estão em constante colisão", ele disse.

Pensando na gestão entrópica do mundo atual, enquanto olho meu entorno, imagino a publicação da editora Ébria e a exposição Terra-palavra como "nonsites" de Smithson desdobrados. Metonímias eficientes de acesso a seu trabalho, materiais transpostos ligando eras diversas da arte sob o mesmo céu do Antropoceno.

Robert Smithson: Artforum 1966-73

  • Preço R$ 80 (52 págs.)
  • Editora Ébria
  • Tradução Antonio Ewbank
  • Organização e Projeto Wallace V. Masuk

Exposição Terra Palavras

Debate: Carlos Fajardo comenta textos e obras de Robert Smithson

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