Descrição de chapéu América Latina

Fim da ditadura na Argentina deu ânimo às Diretas e assombrou militares no Brasil

Brasil voltou à democracia pouco depois dos vizinhos, mas nunca puniu militares por seus atos

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Oscar Pilagallo

Jornalista, é autor de "História da Imprensa Paulista" (Três Estrelas) e "O Girassol que nos Tinge: uma História das Diretas Já, o Maior Movimento Popular do Brasil" (Fósforo)

[RESUMO] Queda da ditadura argentina em 1983 foi um alento para a campanha pela redemocratização que tomava fôlego no Brasil, ao mesmo tempo em que amedrontou setores das Forças Armadas que temiam que se repetissem aqui os processos contra militares de altas patentes. O Brasil teria um governo civil pouco mais de um ano depois, mas, ao contrário do que ocorreu no país vizinho, a conciliação prevaleceu e militares daqui nunca foram julgados por seus atos.

Impulsionado pela campanha das Diretas Já, o processo de redemocratização também foi favorecido por guinadas políticas em países geográfica ou culturalmente próximos do Brasil que serviriam de paradigmas.

Já em meados dos anos 1970, a península Ibérica havia deixado para trás prolongadas ditaduras. Em Portugal, a Revolução dos Cravos, de 1974, pusera fim ao regime salazarista. Na Espanha, com a morte do general Franco em 1975, a primeira eleição em quase meio século e o subsequente Pacto de Moncloa haviam selado a redemocratização.

Comemoração para celebrar a democracia e o fim da ditadura (1976-1983) argentina, na Praça de Maio - Ricardo Stuckert-10.dez.21/Reprodução

Depois foi a vez da América Latina. Em 1980, o Uruguai impôs um revés aos militares à frente de um governo autoritário desde 1973. Um plebiscito rejeitou a proposta de reforma constitucional que procurava legitimar pelo voto o regime de exceção. Desde então, a ditadura do país vizinho começou a ruir. Cairia de vez em 1984, com a eleição democrática de um novo governo.

A maior influência, no entanto, veio da Argentina, na forma de um espelho que refletia esperança ou ameaça, de acordo com o ponto de vista do observador. Para a maioria dos brasileiros, os defensores da redemocratização, o fim da ditadura na Argentina significava um alento.

Para setores das Forças Armadas, porém, a responsabilização de militares argentinos de alta patente por crimes cometidos quando estiveram no poder provocava o temor do que denominavam "retaliação" ou "revanchismo".

Implantado em 1976, o regime militar argentino não resistiu à derrota para a Grã-Bretanha na guerra das Malvinas. Em junho de 1982, depois de pouco mais de dois meses de conflito, o Exército argentino capitulou diante da superioridade do inimigo. A contenda resultou da iniciativa dos argentinos de invadir um território que reivindicavam havia muito tempo, uma decisão atribuída à tentativa de se criar um inimigo externo que desviasse a atenção da crise interna, econômica e política.

O desastre nos campos de batalha derrubou o alto comando das Forças Armadas, a começar pelo presidente, o general Leopoldo Galtieri. A rendição abriu espaço para um acordo, sob os auspícios da Igreja Católica, que prometia eleição em breve. Os militares tentaram uma transição negociada que os eximisse de culpa pelos desmandos durante os anos de repressão. A ideia, entretanto, foi rejeitada pela sociedade e obrigou o governo a marcar a eleição presidencial para fins do ano seguinte.

A guerra rachou a esquerda no mundo, e a do Brasil não foi exceção. Os partidos então localizados na órbita da União Soviética se alinharam à Argentina, contra o dito "imperialismo britânico". Já a esquerda democrática optou pela neutralidade. Não tinha como apoiar a Grã-Bretanha, mas também não queria emprestar solidariedade a um país sob ditadura. Quando a guerra terminou, essas divergências ficaram no passado. A partir daí todos concordavam que a posição dos militares argentinos seria insustentável.

Humilhante para a Argentina, a derrota, que causou a morte de cerca de 700 soldados, fez aflorar o ressentimento popular contra as Forças Armadas. Ganhou importância, por exemplo, a atuação das Mães da Praça de Maio, que desde 1977 se manifestavam semanalmente em frente à sede do governo, em Buenos Aires, para cobrar informações sobre seus filhos, desaparecidos e mortos. Foi nesse caldo de contestação que emergiu a candidatura de Raúl Alfonsín, um político moderado, mas com histórico de determinação na defesa dos direitos humanos.

Embora as ditaduras argentina e brasileira tivessem a mesma natureza e pertencessem ao mesmo momento histórico da América Latina, havia particularidades que as diferenciavam. Lá, a alta hierarquia e os chefes de Estado estiveram diretamente envolvidos na repressão. Aqui, embora os porões da ditadura contassem com a conivência da cúpula militar, o aparelho repressivo agiu com considerável grau de autonomia.

Há assimetria também em relação à escala da violência. Aqui, morreram 434 pessoas em ações que visaram principalmente o movimento armado de esquerda, de acordo com o relatório da Comissão Nacional da Verdade. Lá, houve cerca de 30 mil mortos, segundo estimativa de entidades de defesa dos direitos humanos.

Havia ainda outras duas diferenças. Em primeiro lugar, a cena política brasileira nunca produziu um líder com perfil equivalente ao de Alfonsín, que tivesse firmeza em enfrentar o passado e densidade eleitoral. Os moderados de Brasília, como Tancredo Neves e Ulysses Guimarães, sempre estiveram mais inclinados à conciliação.

Em segundo lugar, não houve no Brasil um evento catalisador que precipitasse os acontecimentos, como uma acachapante derrota bélica.

Esse conjunto de distinções, no entanto, não se mostrava suficiente para mitigar a preocupação nas casernas. Os militares brasileiros só pareciam ter olhos para os desdobramentos da situação do outro lado da fronteira. Uma frase atribuída ao general Walter Pires, ministro do Exército de Figueiredo, sintetizava os humores dos membros da mais alta hierarquia. Ele alertava que jamais seria "permitido o revolvimento do passado, o banco dos réus", palavras reproduzidas em cartazes afixados nas paredes de órgãos de repressão castrense.

Era uma realidade que contrastava com a do país vizinho, onde generais e presidentes da República logo seriam julgados e levados para a cadeia e dezenas de processos legais seriam abertos contra os acusados de terem responsabilidade por crimes durante a ditadura. A busca por justiça ganhou fôlego com a posse de Alfonsín, em 10 de dezembro de 1983, duas semanas depois do comício do Pacaembu, que marcou o início, ainda limitado, do movimento das Diretas Já no Brasil.

O novo governante argentino vestiu a faixa de presidente em cerimônia concorrida à qual compareceram, entre tantas outras autoridades estrangeiras, Franco Montoro, então governador de São Paulo, e vários outros políticos do PMDB.

No hotel em que estava instalado em Buenos Aires, o Alvear, Montoro assistiu às imagens de uma festa democrática com mais de 1 milhão de pessoas nas ruas. Na TV, as cenas, embaladas pela música-tema do musical "Evita", deixaram Montoro com os olhos marejados, de acordo com o testemunho do publicitário Mauro Montoryn. Foi então que o jornalista Clóvis Rossi, da Folha, que fazia a cobertura do evento, perguntou ao governador por que não fazer uma mobilização semelhante em São Paulo a favor das Diretas Já.

Pouco mais de um mês depois seria realizado o comício da Sé. Entre as muitas faixas estendidas, uma dizia: "Não rias de mim, Argentina". Era o estandarte da Banda do Pirandello, um espaço gastronômico alternativo que servia de quartel-general das Diretas. Tratava-se, claro, de uma paráfrase a "Don’t Cry for me, Argentina", a canção mais conhecida de "Evita".

A brincadeira não ajudou a desanuviar o ambiente. Na véspera do comício, a imprensa noticiava que o Superior Tribunal Militar tinha começado o julgamento dos integrantes de três governos argentinos desde o golpe de 1976.

Entre os acusados de prisões em massa, tortura e assassinatos, estavam os generais e ex-presidentes Jorge Videla e Roberto Viola, além de Galtieri. Reynaldo Bignone, outro militar que governou o país, se encontrava preso havia duas semanas.

O fantasma do revanchismo deu origem a um fato insólito. No comício anterior ao da Sé, o da Boca Maldita, em Curitiba, de repente um argentino, supostamente representando Alfonsín, subiu no palanque e fez um discurso incisivo a favor da redemocratização, defendendo o caminho adotado por seu país. Os organizadores não sabiam exatamente de onde ele havia surgido.

Na sequência, o governo bateu na oposição, acusando-a de insensatez pelo convite, e foi secundado por parte da imprensa, que falou em provocação e brandiu a Lei dos Estrangeiros, que proibia a cidadãos de outros países participarem ativamente da política no Brasil.

Mais tarde, desconfiou-se de que o inflamado orador argentino era apenas um infiltrado pelo famigerado SNI (Serviço Nacional de Informações) para tentar difamar as Diretas, associando a campanha à interferência da Argentina.

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