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Marcos Lisboa, Breno Vasconcelos, Larissa Luzia Longo

Reforma Tributária resolve problemas crônicos de ineficiência

Sistema atual cobra tributos cumulativamente e gera judicialização em excesso

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[RESUMO] Especialistas defendem o modelo de Imposto sobre o Valor Adicionado (IVA), proposto na reforma tributária. A alternativa resolve problemas do atual sistema implementado, que pune a terceirização de etapas produtivas e permite distorções na arrecadação —com excesso de benefícios diferenciados e regimes especiais. A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) permite avanços importantes ao país, mas sua tramitação no senado precisa de atenção a detalhes relevantes na sua redação

A reforma tributária foi aprovada na Câmara dos Deputados. Ela promove uma correção de rumos importante em um sistema que deixa o Brasil cada vez mais para trás em comparação com o resto do mundo.

As regras de arrecadação de impostos e contribuições atualmente cobrados pelos governos federal e locais resultam em um imenso contencioso com os contribuintes, induzem empresas a se organizarem de forma ineficiente apenas para aproveitar benefícios tributários e colaboram para o nosso baixo crescimento econômico.

Carro em linha de montagem da GM em São Caetano
Carro em linha de montagem da GM em São Caetano - Divulgação

A reforma resolve esses problemas consolidando cinco tributos em dois, por meio da criação de impostos, com regras harmonizadas, que seguem o modelo de Imposto sobre o Valor Adicionado (IVA).

A adoção do IVA permitirá grandes avanços para o país. Mas é preciso estar atento à redação do texto constitucional. Os detalhes importam.

Existem muitas formas de tributar o consumo, porém existe algo que ela não deve fazer: induzir as empresas a escolherem processos produtivos menos eficientes apenas para pagar menos tributos.

Contudo, é precisamente isso que faz boa parte do nosso atual sistema tributário e de algumas das propostas de quem se opõe ao IVA.

Esse é o caso, por exemplo, de um imposto sobre movimentações financeiras, similar à extinta CPMF. Esse tributo permite que o mesmo valor de gasto seja mais ou menos onerado a depender da quantidade de pagamentos feitos ao longo do processo produtivo pela empresa e seus fornecedores.

O economista Felipe Restrepo analisou as implicações desse tipo de tributo em países Latino-Americanos entre 1986 e 2005, utilizando dados desagregados. Um dos resultados é o seu efeito significantemente negativo sobre o crescimento econômico, prejudicando diversos setores. Este artigo foi publicado no Journal of International Money and Finance, em 2019.

O Brasil, felizmente, já abandonou a CPMF, porém as regras atuais possuem efeitos similares de distorcer as escolhas produtivas das empresas. É o caso dos tributos que incidem integralmente sobre o valor da venda de bens e serviços, os chamados "tributos cumulativos".

Imagine um construtor incrivelmente competente no seu ofício. Se for comprar prontas as estruturas de que precisa, entretanto, pagará elevados tributos, que oneram o seu produto. Pode valer mais a pena trabalhar poucas horas na sua vocação e ocupar o restante do seu tempo manipulando materiais para fazer as partes de que precisa, ainda que elas custem mais para serem feitas do que para um produtor especializado.

Não fossem os tributos, o empreendedor se concentraria no seu ofício e compraria o que precisa no mercado. Mas os tributos existem, e a saída para gastar menos é trabalhar menos horas no que é competente e dedicar-se mais ao que não faz tão bem.

As empresas, muitas vezes, nem percebem as distorções produzidas pela tributação, pois ela é embutida de forma nada transparente nos preços dos insumos que adquirem. Telecomunicações, por exemplo, pagam mais de 40% de tributos, onerando quem opta por esta tecnologia.

Os custos decorrentes dos tributos embutidos nos preços afetam as decisões de negócios das empresas, prejudicando a produtividade e o crescimento econômico. Por essa razão, há décadas, a imensa maioria dos países vem optando por tributar o consumo por meio do IVA, que foi concebido para evitar esse tipo de distorção. Atualmente, mais de 170 países utilizam esse imposto.

Nesse modelo de tributação, em cada etapa da produção, a empresa pode descontar os tributos pagos nas fases anteriores por outros produtores. Isso garante que o IVA seja neutro, ou seja, não afete as decisões de negócio.

Um exemplo simples: com alíquota de 20%, uma empresa compra insumos (aço, tinta e energia) a R$ 50, que foram tributados em R$ 10. Essa empresa transforma os insumos em um carro, que será vendido a R$ 200. Em vez de recolher R$ 40 (que seria a alíquota de 20% sobre R$ 200), essa empresa recolherá R$ 30, pois desconta o crédito do IVA que incidiu nos insumos que comprou.

Esse exemplo contrasta com o caso anterior do tributo cumulativo. Naquele, a empresa compara o custo de produzir internamente com o de comprar de terceiros, onde o preço de venda é acrescido de tributos. Isso não ocorre no caso do IVA, pois o imposto pago pelos fornecedores pode ser integralmente abatido do que a empresa compradora deve ao fisco.

O sistema de tributação no Brasil tem muitas outras distorções, como a diferenciação de alíquotas em razão do tipo de produto ou serviço, que aumenta o custo de conformidade para calcular e pagar tributos. Um sistema com múltiplas alíquotas, benefícios diferenciados e regimes especiais se torna mais complexo, permitindo diversas interpretações e perpetuando um ambiente propício às disputas entre fisco e contribuintes.

No Brasil, para exemplificar, água de cheiro tem uma regra de tributação, colônia tem outra, e uma terceira vale para perfume. Confeitaria tem uma regra específica, e existem muitas outras regras particulares para diversos tipos de produtos. Como fica a tributação de um alimento com insumos diferentes? Qual a regra de tributação que vale? Então, depende...

Essas são apenas algumas ilustrações do nosso complexo e disfuncional sistema de tributação. Algumas compras de insumo geram crédito tributário. Outras, não. Quais exatamente? Pois bem, varia. O fisco acredita em algumas teses, dependendo do caso. O contribuinte, em outras. A interpretação dos tribunais oscila ao longo do tempo.

A ambiguidade, multiplicidade e imprecisão das nossas regras incentivam a profusão do nosso contencioso entre fiscos e contribuintes. Empresas procuram ajustar suas decisões de produção para reduzir as obrigações tributárias. Os fiscos por vezes buscam na profusão de normas argumentos para arrecadar mais.

Em 2019, a soma dos créditos tributários cobrados em processos judiciais e administrativos por todos os entes federativos foi de R$ 5,4 trilhões, que equivalem a 75% do Produto Interno Bruto (PIB). Somente os créditos do contencioso administrativo federal representam 15,9% do PIB, número bastante elevado em comparação à mediana de 0,28% dos países da OCDE (Insper, 2020).

No Brasil, muitos setores pagam tributos que incidem sobre o seu faturamento, como no caso do ISS e do Pis/Cofins pago por construtoras e call centers, por exemplo.

Uma empresa em crise, mesmo que liquide o estoque por um preço menor do que pagou pelos produtos, terá de recolher tributos sobre a nota de venda.

As alíquotas gerais desses tributos (ISS entre 2% e 5%, Pis/Cofins cumulativo de 3,65%, ICMS de 18%, IPI de zero a 30% e PIS/Cofins "não-cumulativo" de 9,25%) são ilusórias. Não informam a verdadeira carga tributária que incide sobre o bem ou serviço e nem refletem o acúmulo de custos decorrentes da cumulatividade dos tributos.

De maneira engenhosa, ao longo dos anos, os regulamentos desses tributos foram criando formas criativas de aumentar a arrecadação sem mexer na alíquota: restringiram o que pode ser deduzido, cobram tributos sobre tributos etc.

Toda essa criatividade e a própria cumulatividade típica dos tributos atuais geram "resíduos tributários", termo técnico que sistematiza obrigações com o fisco embutidas no preço dos bens e serviços adquiridos.

Impressiona a quantidade de estudos produzidos por associações de classe empresariais argumentando que vão pagar mais tributos com a reforma, mas que ignoram muito do que já pagam, sem o saber, por meio desses truques tributários típicos do Brasil. Com frequência, não sabem dos "resíduos tributários" que pagam. Por exemplo: quanto pagam de impostos cumulativos, como ISS, no preço dos bens e serviços que têm que adquirir para trabalhar?

A adoção do IVA resolve esses problemas. Na prática, trata-se, idealmente, de um imposto uniforme sobre toda decisão de consumo, que é arcado pelo consumidor, mas recolhido progressivamente pelas empresas ao longo da cadeia produtiva. Esse é um imposto simples de ser pago sem os impactos negativos sobre a estrutura produtiva dos tributos sobre consumo atualmente existentes no Brasil.

Como o IVA é um tributo totalmente não cumulativo, as empresas poderão investir naquilo que entenderem mais eficiente para aumentar sua produtividade, como marketing ou pesquisas para um novo processo de produção, sem o risco de ter seus créditos contestados com base em interpretações duvidosas, como acontece hoje.

Para que o modelo de IVA dual funcione em uma federação como o Brasil, formada por 5.569 Municípios, 26 Estados e Distrito Federal, a PEC propôs a criação do Conselho Federativo, com a função de uniformizar a interpretação e aplicação do imposto.

Caberá a esse órgão centralizar a arrecadação dos tributos e distribui-la aos estados e municípios, conforme parâmetros da lei complementar. Simplifica a vida do contribuinte, garante a operacionalização desse fluxo de transferência.

O IVA estabelece que os tributos serão destinados à região onde mora o consumidor, não onde ocorre a produção. Essa é a boa prática mundial. Por isso, os países isentam suas exportações e tributam suas importações.

O pacto federativo é preservado, pois estados e municípios poderão definir as alíquotas aplicáveis ao consumo ocorrido em seus territórios.

O IVA facilita que os exportadores sejam ressarcidos pelos tributos que pagaram para produzir e garante a cobrança dos impostos devidos pelos importadores que, atualmente, competem desigualmente com a produção local.

O Conselho Federativo deverá seguir regras precisas para garantir que cada ente receba na proporção do que foi consumido pelos seus cidadãos. No Brasil, alguns estados têm a mania de não pagar suas dívidas com a União ou com exportadores. Por isso, a importância de um Conselho que não dependa das idiossincrasias dos governos locais.

A reforma tributária reduzirá as desigualdades socioeconômicas. Hoje, as famílias mais pobres pagam cerca de 45% de sua renda em tributos sobre o consumo, enquanto as famílias mais ricas pagam cerca de 13%, segundo o estudo "Indirect Taxes Incidence in Brazil – An assessment of the distributional effects of potential reform", do Banco Mundial, com base nos dados da Pesquisa de Orçamento Familiar realizadas pelo IBGE.

Isso acontece porque a carga tributária hoje é maior sobre o consumo de mercadorias do que sobre o consumo de serviços, e na cesta de consumo das famílias mais pobres há mais mercadorias, enquanto na das mais ricas há mais serviços. Tributar de modo uniforme as mercadorias e os serviços, portanto, favorecerá as famílias de baixa renda.

Estudo do IPEA, de 2019, mostra que, com o IVA, 90% da população teria uma redução dos tributos a pagar, e somente os 10% mais ricos pagariam mais impostos.

Embora a adoção de alíquota única para todas as decisões de consumo sofra resistências, como a de alguns setores empresariais que defendem a desoneração da cesta básica, a política social é mais eficaz por meio do gasto público do que pela tributação sobre o consumo, evidência bem documentada.

O Ministério da Fazenda, em 2017, por exemplo, estimou que destinar R$ 1 bilhão ao Bolsa Família produz um impacto 12 vezes maior para a queda da desigualdade de renda do que desonerar em R$ 1 bilhão a cesta básica.

Com o avanço na tramitação política, o texto aprovado criou a "Cesta Básica Nacional de Alimentos", com alíquota zero, e deixou para a lei complementar definir quais produtos vão integrá-la. O custo dessa medida, sabidamente pouco eficaz como política social, pode limitar no orçamento a implementação do cashback, que foi mantido no texto e tem sido usado em outros países para reduzir desigualdade de renda.

Estimava-se que, com o cashback, o consumo das famílias mais pobres aumentaria em 22,9%, e o índice de Gini, que mede a concentração de renda, poderia ser reduzido em 3,2% ("Pra Ser Justo, 2021).

Outro estudo do IPEA, de 2023, estima que, com a reforma, em 20 anos, 98% dos Municípios brasileiros arrecadarão mais do que hoje. Essa redistribuição ocorreria porque o atual modelo, que cobra tributos onde a produção ocorre, concentra a arrecadação nas cidades que atraíram grandes empresas em detrimento das regiões onde moram os consumidores, com frequência mais pobres.

Apesar desses avanços, o texto aprovado na Câmara ainda preserva setores importantes da economia no regime cumulativo. Algumas atividades —como construção civil e intermediação na concessão de crédito— têm conhecidas dificuldades para a cobrança do IVA. No entanto, não há motivo para serviços financeiros prestados por instituições não bancárias ficarem fora do regime não cumulativo do IVA.

Houve uma significativa mudança na redação do artigo 10 da 3ª versão do substitutivo da PEC 45/2019, que reduziu os problemas apontados por nós na versão anterior publicada deste artigo.

De acordo com o texto, será adotada a tributação não cumulativa geral, seguindo o modelo de IVA, para os serviços financeiros prestados por instituições bancárias, remunerados por tarifas e comissões. Essa mudança sana parte das nossas preocupações.

Ocorre que boa parte do sistema financeiro continua excetuada do regime não cumulativo do IVA, pois a PEC adota conceituação bastante abrangente de serviços financeiros e não disciplina o regime das instituições financeiras não bancárias. Serviços como arrendamento mercantil, faturização, securitização, entre outros, continuam fora do regime não cumulativo próprio do IVA.

Para essas exceções, mantemos nossa crítica. No sistema financeiro, seguindo a prática do resto do mundo, há razões para excluir apenas o spread do modelo de IVA, pois o custo é suportado por tomadores de crédito, prejudicando investimento, produção e geração de empregos. Todos os demais serviços financeiros deveriam, portanto, estar no IVA.

O processo de negociação acabou permitindo alíquotas diferenciadas para vários setores e itens, o que reduz a eficácia da reforma e onera os demais para garantir a preservação da carga tributária total.

Por fim, foi inserido um artigo que permite aos Estados criarem uma contribuição sobre commodities e produtos semielaborados, alegadamente para substituir as receitas obtidas como contrapartida na concessão de benefícios fiscais. Um enorme contrassenso que pode reduzir uma das grandes vantagens do IVA, que é a total desoneração das exportações.

A PEC segue para o Senado, casa onde esses problemas podem ser minorados , mantendo o espírito de promover um imenso avanço em comparação com as regras atuais.

Como mostrou levantamento do Núcleo de Pesquisas em Tributação do Insper, o IVA impediria a geração de, pelo menos, 95% dos valores em disputas tributárias dos maiores contribuintes brasileiros.

Além disso, a adoção do IVA reduz os incentivos a escolhas de produção ineficientes por parte das empresas, o que prejudica a produtividade e o crescimento econômico.

Erramos: o texto foi alterado

Na versão anterior deste artigo, os autores criticaram a exclusão de todo o sistema financeiro do IVA, mas uma mudança na redação da 3ª versão do substitutivo da PEC saneou parcialmente esse problema. O texto foi corrigido.

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