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Francisco Bosco

Risério acerta ao separar anti-identitarismo e racismo

Novo livro do antropólogo defende um antirracismo mestiço e universalista, em contraste com tribalismo em voga na esquerda

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Francisco Bosco

Doutor em teoria literária pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e ensaísta, foi presidente da Funarte (Fundação Nacional de Artes) de 2015 até o impeachment de Dilma Rousseff (PT). Autor, entre outros livros, de "O Diálogo Possível: Por uma Reconstrução do Debate Público Brasileiro"

[RESUMO] Novo livro do antropólogo Antonio Risério, afirma ensaísta, compila argumentos contra o ideário identitarista que deveriam ser discutidos com rigor histórico e conceitual, rompendo a estridência atual que tem como método cancelar vozes dissonantes. Para o autor, Risério acerta ao refutar tribalismo racial que reduz pessoas à condição de gênero e raça e ao atacar a importação acrítica e colonizada de modelos supostamente emancipatórios, mas se equivoca ao falar de racismo negro ou negar o conceito de racismo estrutural.

Em "Mestiçagem, Identidade e Liberdade", o antropólogo Antonio Risério trafega por via de mão única, compendiando argumentos que minam o ideário identitarista. Poucas vezes ele inverte a direção e ilumina as condições sociais e as ideologias que rebaixam minorias.

No entanto, esse método, que pode parecer uma forma sistemática de "cherry picking", escolha ou supressão deliberadas de dados com o objetivo de fortalecer um argumento, também pode ser entendido como a consequência de uma premissa: para o autor, é óbvia a necessidade de distinguir uma postura antirracista, de um lado, e a derivação desse antirracismo para o conjunto de premissas e métodos que caracterizam o identitarismo.

Risério é, portanto, implacável com o identitarismo, não com pessoas negras ou antirracistas. Esse, diga-se logo, é o equívoco cultural mais importante de se desfazer: criticar o identitarismo não significa, de modo algum, condescender com o racismo (ou com o machismo e a heteronormatividade).

Ativistas e grupos antirracistas realizam a 19ª Marcha da Consciência Negra, na avenida Paulista - Rivaldo Gomes-20.nov.22/Folhapress

A perspectiva defendida no livro é a de um antirracismo mestiço, universalista. Esse é um problema que deveríamos estar discutindo com sobriedade, rigor histórico e conceitual. Em vez disso, o debate público passou os últimos anos dominado pelo método de cancelar vozes dissonantes, com base nesse amálgama falso entre anti-identitarismo e racismo e numa transformação da sociedade civil em militância entrincheirada, típica do novo espaço público digital. Que as ideias de Risério sejam, portanto, lidas e criticadas a partir da premissa de que o debate requer dissenso e independência.

"Mestiçagem, Identidade e Liberdade" é um vasto passeio por inúmeros aspectos dessa tensão cultural fundamental no mundo de hoje, mas com características específicas no Brasil, dada a nossa formação biocultural: a tensão entre universalismo e tribalismo, que entre nós pode ser formulada nos termos de um conflito entre mestiçagem e identitarismo. Vou destacar aqui alguns dos aspectos que considero mais importantes do livro.

Risério evoca uma mini-história desse par antitético universalidade versus tribalismo. Assim como o filósofo conservador Michael Oakeshott escreveu que a antimodernidade é consubstancial à modernidade, como a sombra ao sol, pode-se observar que o tribalismo é consubstancial à universalidade moderna, como uma reação a ela.

Desse modo, o espírito universalista que desemboca na Revolução Francesa vai produzir também a reação do nacionalismo de Herder. Esse, por sua vez, vai se transformar no racismo "científico" do final do século 19, no sistema Jim Crow, nos EUA da Restauração, e, em sua versão mais extrema, no nazismo. "Não deve restar dúvida de que a legislação nazista é filha direta do conjunto legislativo já plenamente em vigor, nos EUA, em princípios da década de 1920", escreve Risério.

Essa grande angular é importante porque permite observar que as formas do tribalismo são historicamente ligadas à direita reacionária. A tradição da esquerda, como lembrou Susan Neiman em seu excelente "Left Is Not Woke", sempre foi universalista —até a emergência do tribalismo identitário.

Outro aspecto do tribalismo identitarista é a redução da complexidade dos sujeitos à sua condição de gênero, raça, etnia etc. (o que Amartya Sen chamava de "miniaturização" dos seres humanos), articulada a uma culpabilização sem remissão possível (porquanto, justamente, ligada a uma condição), que solapa a dimensão moral dos sujeitos, o campo de suas ações efetivas. Nesse sentido, Risério evoca algumas traduções das premissas teóricas identitárias para a práxis social.

Como, por exemplo, a de uma escola pública de Nova York que enviou aos pais de seus alunos um mostruário com oito tipos de identidade branca, solicitando-lhes que "refletissem sobre sua branquitude". Os tipos abarcavam "supremacista" e "branco voyeur", aquele que gosta de "consumir cultura negra sem o fardo de ser negro".

Embora eu considere o conceito de branquitude pertinente (mesmo que seu uso nem sempre o seja, como se pode ver), pois ser branco em sociedades racistas implica um conjunto de experiências específicas, considero igualmente pertinente a avaliação de Risério: os pedagogos "dividem os pequeninos colegas de sala entre 'oprimidos' e 'opressores'".

É duvidoso que esse tipo de pedagogia da contrição produza algum efeito mais forte do que ressentimento social. Seria o caso, aqui, de contrapor a esse "letramento racial" (expressão autoritária, diga-se de passagem) a perspectiva de Martin Luther King, para quem, lembra Risério, "uma pessoa não deve ser julgada pela cor da sua pele, mas pela qualidade do seu caráter".

O antropólogo trata de outro aspecto importante do tribalismo identitarista, que se manifesta como uma verdadeira maldição sobre as relações heterossexuais. Trata-se da premissa de feministas radicais, segundo a qual, nas palavras de Valérie Rey-Robert, "em nossa cultura, violação e sexo consentido se misturam".

Em outro livro, "A Vítima Tem Sempre Razão?", analisei essa premissa a-histórica, que trata a condição social das mulheres no século 19 e a no pós-revolução sexual dos anos 1960 como se fossem a mesma.

Essa premissa essencialista veio desaguar, nos últimos anos, em confusão lamentável entre interações sexuais mal-sucedidas, porém consentidas —ou ao menos não explicitamente desautorizadas— e uma estranha forma de violência sexual sem dolo.

O caso concreto mais conhecido baseado nessa premissa envolveu o comediante indo-americano Aziz Ansari, cancelado por um tempo pela turba mobilizada pelo ideário feminista radical. A mais conhecida versão ficcional da mesma premissa foi o conto "Cat Person", de Kristen Roupenian. Dá algum alívio saber que não estamos mais nesse momento que parece ter sido o auge da revolução cultural identitarista —que, entretanto, está longe ainda de desaparecer.

Risério evoca o episódio da poetisa holandesa Marieke Lucas Rijneveld, que foi pressionada e acabou renunciando a traduzir o poema que a autora negra Amanda Gorman recitou na posse de Joe Biden. Motivo: Marieke é branca. Essas práticas, digamos sem hesitação, têm que acabar. São uma regressão política e cultural que degrada o convívio social, em vez de melhorá-lo.

Seguindo nos problemas, Risério critica a iniciativa política de tentar juntar pretos e pardos na categoria negros nas estatísticas do IBGE. Até aqui, como pró-mestiçagem que sou, estou com ele. Mas, ao declarar que a mídia se reserva o direito de não comentar que os policiais que fuzilam negros "são igualmente pretos", Risério apresenta um argumento que me parece equivocado.

Que os policiais violentos sejam também negros, isso não desmente o racismo, antes o confirma: os piores empregos ficam a cargo da população pobre, na qual se encontra a grande maioria das pessoas pretas no Brasil. Isso, de resto, é o que entendo por racismo estrutural. Também aqui penso diferente de Risério. Considero o conceito pertinente, enquanto descreve a condição de inferioridade sistemática das pessoas negras no Brasil.

Minha principal divergência com Risério está no que ele chama de "racismo negro" (ponto central de seu polêmico artigo na Folha). Em geral, o que ele entende como racismo de negros para com brancos eu entendo como racialismo extremado e inaceitável.

"Querer eliminar o mestiço, suprimir as identidades sociais do caboclo e do mulato é racismo", alega Risério. A meu ver, é racialismo: política de explicitação dos conflitos de raça, que submete a realidade dos fenótipos a uma grande ficção, para fins de expor o sentido de uma realidade social.

Do mesmo modo, discordo quando Risério chama de racistas os "tribunais raciais" que julgam os candidatos a cotistas em universidades públicas. A meu ver, trata-se de política racialista. Há, sim, um evidente mal-estar nessa política: pardos são negros para a perspectiva censitária de movimentos negros, mas voltam a ser não negros ao disputar vagas por meio de cotas.

Risério considera uma tolice o que vou dizer, mas nenhum argumento até hoje me convenceu do contrário. Racismo é, fundamentalmente, uma ideologia que hierarquiza grupos de indivíduos com base em fenótipos ou etnias diferentes. Aqui, nem o estado de dicionário da palavra racismo, nem seu estatuto jurídico atual —a lei 14.532, de 2023, que reformou a lei 7.716, de 1989, a chamada Lei Caó— podem fornecer o entendimento último do que seja racismo.

Há um outro estado da palavra, o estado conceitual, que ultrapassa os demais. É nesse âmbito que nos encontramos nessa discussão. E, nesse sentido, me parece que até atitudes intencionalmente racistas, como o "neorracismo científico" de Yusra Khogali, uma das líderes do Black Lives Matter (que afirma que "a pele branca é sub-humana"), têm a sua força esvaziada pelo contexto de poder das pessoas brancas.

Em suma, considero que o racismo reverso é um espantalho que está para a questão racial como o comunismo está para a política: até existe, mas não é o verdadeiro problema. O verdadeiro problema é o tribalismo.

Outro ponto importante abordado por Risério é o chamado decolonialismo. Aqui ele retoma e atualiza o velho tema das armadilhas de nossa condição periférica, que nos fazem copiar modelos supostamente emancipatórios que, entretanto, aplicados tais e quais para a nossa realidade, resultam em perspectivas alienantes e colonizadas.

Desse modo, assim como em nosso romantismo, conforme observou certa vez Antonio Candido, um escritor brasileiro escreveu uma peça nativista em francês, agora nós temos uma perspectiva decolonial que, quanto à questão racial, elege a África como instância supostamente desalienadora da identidade dos negros brasileiros.

Ora, isso pode até fazer sentido nos EUA, país obcecado pelas origens étnicas e raciais que fundamentam sua série de hifenizações, como afro-americano, hispano-americano etc.

Todavia, no Brasil, como observa Risério, "o jus soli realmente se sobrepôs ao jus sanguinis, vale dizer, a nacionalidade é dada pelo lugar de nascimento, não por vínculo a uma matriz étnica". Seria o caso, portanto, de perguntar se aqui as pessoas negras têm alguma relação concreta, de experiência de vida, com a África.

Além disso, Risério observa que a África dos identitários é uma "fantasia compensatória". A fantasia, por exemplo, de uma Nigéria candomblezeira, quando, na realidade, a vida religiosa do país está "claramente dividida entre a metade muçulmana e a metade cristã da população".

Nesse ponto, como em diversos outros, penso que esse movimento cultural está, quanto ao Brasil, jogando fora o bebê com a água do banho. Em vez de concentrar os esforços em integrar as minorias no âmbito socioeconômico (nossa grande falha), procura-se desintegrar a diferença no âmbito cultural e convivial (nosso maior sucesso).

A perspectiva decolonial é uma tendência acadêmica e cultural forte e precisa ser discutida. O decolonialismo colonizado atual, que toma como base para a sua perspectiva a realidade cultural dos EUA, se deve em boa medida, para Risério, a que algumas das instituições que aqui o fomentam sejam geralmente financiadas por fundações norte-americanas, que espalham sua ideologia.

Pessoalmente, defendo que nós, brasileiros, sejamos, sim, decoloniais, porém o horizonte dessa desalienação deve ser o próprio Brasil, a sua cultura popular, mestiça, portanto não europeia, não branca, não anglo-saxã, mas também não africana.

Como observa Risério, "no Brasil, quase tudo que tratamos como 'criação africana' ou 'cultura negra' é, na verdade, cultura mestiça. A comida dos orixás, inclusive". Esse seria um decolonialismo propriamente brasileiro, um decolonialismo mestiço, que surpreenderia o mundo não por ser exótico, mas por ter estado oculto, quando teria sido o óbvio.

"Mestiçagem, Identidade e Liberdade"

  • Preço R$ 79 (365 págs.)
  • Autoria Antonio Risério
  • Editora Topbooks
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