Descrição de chapéu guerra israel-hamas

Ataques aumentarão popularidade do Hamas entre muçulmanos, diz biógrafo

Palestino-britânico Azzam Tamimi, autor de livros sobre o grupo, compara efeitos do conflito aos da Primavera Árabe

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Fabio Victor
Fabio Victor

Repórter especial da Folha, é autor do livro 'Poder Camuflado' (Companhia das Letras 2022)

[RESUMO] Um dos principais estudiosos do Hamas, o palestino-britânico Azzam Tamimi diz em entrevista à Folha que os ataques contra Israel desde 7 de outubro são reações a décadas de opressão e que aumentarão o apoio ao grupo entre árabes e muçulmanos ao redor do mundo. Defensor de um islã democrático e moderado, ele comenta as origens do Hamas e também critica o movimento por apresentar informações falsas ou deturpadas em carta de princípios.

O conflito com Israel vai aumentar a popularidade do Hamas na Palestina, no mundo árabe e entre os muçulmanos de todas as partes, prevê o palestino-britânico Azzam Tamimi, estudioso da história do grupo e influente liderança da comunidade islâmica do Reino Unido.

Em que pesem as atrocidades dos atos terroristas do dia 7 de outubro, Tamimi afirmou à Folha que as ações não foram vistas dessa forma pela maioria dos militantes (como ele) ou mesmo simpatizantes da causa palestina, sobretudo porque são interpretadas como reação a décadas de opressão, mas também por causa da mortífera resposta israelense —que define como "loucura" do premiê Benjamin Netanyahu, "um político corrupto e fracassado".

Protesto contra ataques de mísseis israelenses em dois aeroportos sírios e em apoio aos palestinos, em Damasco (Síria) - Ammar Safarjalani-12.10.23/Xinhua

"Claro que alguns consideram esses atos condenáveis ou terroristas, mas outros os veem como heroicos e audaciosos. Esta é uma guerra de libertação que já dura 75 anos. Desde 1948, o estado que os sionistas criaram sobre os restos das casas palestinas, chamado Israel, não parou de atormentar os palestinos e cometer todo tipo de crimes de guerra contra eles", disse Tamimi, em entrevista por e-mail.

"O povo vietnamita era considerado terrorista pelos americanos, Nelson Mandela era considerado terrorista pelo regime do apartheid e seus apoiadores, como Margaret Thatcher e Ronald Reagan, e o movimento de resistência argelino era considerado terrorista pelas autoridades coloniais francesas. Se uma parte inflige dor à outra, é natural que a vítima tente retribuir."

Doutor em ciência política pela Universidade de Westminster, em Londres, Tamimi é autor de um livro sobre a história do Hamas —"Hamas - Unwritten Chapters" (capítulos não escritos), que nos EUA foi publicado com o título "Hamas: A History from Within" (uma história de dentro)—, bem como da biografia "Rachid Ghannouchi: A Democrat Within Islamism" (um democrata dentro do islamismo), sobre o tunisiano que liderou a Primavera Árabe naquele país.

Defensor de um islã democrático e moderado, Tamimi é também fundador do Institute of Islamic Political Thought e presidente do canal de TV árabe Al Hiwar (transmitido a partir de Londres).

Nascido em Hebron, na Cisjordânia, Tamimi desdenha do Fatah, o partido no poder da Autoridade Palestina e que controla aquele território, e afirma que só o Hamas tem credibilidade.

"Acredito que isso [os ataques e o conflito] aumentará a popularidade do Hamas entre os palestinos, os árabes, os muçulmanos e amantes da liberdade ao redor do mundo. O Hamas hoje é equivalente ao CNA [Congresso Nacional Africano, partido de Nelson Mandela] durante os dias de luta contra o apartheid na África do Sul. Quanto ao Fatah, acredito que Oslo o matou", comenta, em alusão ao acordo de paz entre Israel e Palestina celebrado em 1993 com mediação dos EUA e que, para ele, só ampliou a opressão colonial nos territórios palestinos.

"O que antes era a principal causa árabe, ou seja, a Palestina, foi completamente ignorado ou esquecido. Agora, o Hamas está trazendo a causa de volta à tona, algo que a maioria dos palestinos aprecia. O que resta do Fatah é apenas o nome e algumas anedotas."

Não significa que Tamimi apoie inteiramente o Hamas. Ele é crítico, por exemplo, da chamada Carta de Princípios do grupo. "O estado de Israel não é sagrado. No entanto, em meu livro, critico a antiga Carta do Hamas, publicada em 1988, por não distinguir entre judeus e sionistas."

Segundo ele, líderes do Hamas reconhecem esse erro, assim como o equívoco de explicar o conflito sob o prisma de uma conspiração judaica global baseada nos "Protocolos dos Sábios de Sião", uma teoria conspiratória apócrifa e falsa.

O pesquisador palestino-britânico Azzam Tamimi, autor de livros sobre o Hamas, após uma palestra na Universidade de Nottingham, no Reino Unido - Wissam Zaqout / Wikimédia

"Sugiro em meu livro como uma nova Carta alternativa deveria ser. Somente em 2017 eles apresentaram um novo documento, mas não anularam o anterior. A Carta do Hamas não tem sido útil e realmente contém material que é anti-islâmico e falso", afirma. "Publiquei declarações e entrevistas com figuras proeminentes do Hamas que concordaram comigo nisso. No entanto, a política interna os impediu de dar o passo correto de declarar a Carta original defeituosa e apresentar uma nova."

Sigla para o Movimento de Resistência Islâmica, o Hamas surgiu em dezembro de 1987, durante a primeira Intifada (revolta palestina contra a ocupação israelense), a partir da Irmandade Muçulmana da Palestina. "A razão foi a situação precária em Gaza na época. A Irmandade Muçulmana era uma organização popular focada principalmente em educação religiosa e reforma social. A nova geração do movimento não estava satisfeita, pois as condições sob ocupação pioravam a cada dia."

À medida que as autoridades de ocupação israelenses respondiam com mais violência a manifestações de palestinos, declara Tamimi, os militantes passaram a retrucar na mesma moeda: primeiro, atacando com facas soldados israelenses, depois roubando deles rifles ou os sequestrando.

Isso marcou o nascimento da ala militar do Hamas, as Brigadas Izziddin Al-Qassam, batizadas em homenagem a um clérigo sírio que se juntou à causa palestina e foi morto em 1935 pelos britânicos que ocupavam então a região.

O assassinato de fiéis palestinos pelo colono judeu Baruch Goldstein na mesquita de Al-Ibrahimi em 25 de fevereiro de 1994 foi o marco para o Hamas passar a cometer atentados suicidas. A tática, conta Tamimi, foi abandonada quando o Hamas começou a fabricar foguetes caseiros –e mais tarde drones e outras ferramentas.

"Mas a eficiência com a qual conseguiu penetrar ou paralisar a vigilância eletrônica de Israel foi surpreendente, bem como o sigilo com o qual a operação foi conduzida. Isso mostra que a inteligência israelense não conseguiu se infiltrar nas unidades que estavam se preparando para a operação há meses. Isso apesar da existência de muitos espiões dentro da Faixa de Gaza trabalhando para Israel ou para a Autoridade Palestina em Ramallah."

Tamimi conta, no entanto, que os ataques em si não foram exatamente uma surpresa, mas sim sua extensão e a vulnerabilidade israelense. "Imaginava que em algum momento a coisa explodisse, pelas condições desumanas, que se deterioravam rapidamente tanto na Cisjordânia quanto na Faixa de Gaza, mas não esperava que o Hamas alcançasse essa escala nem que Israel fosse tão frágil e vulnerável."

O estudioso islâmico reputa como propaganda israelense as notícias de que mulheres foram estupradas e crianças foram mortas nos ataques. "Os combatentes do Hamas nunca cometeriam tais atos, pois são proibidos no islã."

O autor diz que tem dúvidas sobre a entrada do Líbano ou da Síria no conflito ou da escalada para uma guerra regional. "Claro que tudo é possível, mas esses países têm os seus próprios cálculos. Não conheço qualquer acordo entre o Hamas e qualquer um dos países para intervir a fim de aliviar a pressão sobre Gaza."

E opina que nem uma aniquilação definitiva da Faixa de Gaza deteria a causa palestina. "Este cerco traz mais dor, mais sofrimento e mais derramamento de sangue —até que não haja mais. Mesmo que eles matem líderes do Hamas, enfraqueçam o movimento ou até o destruam, e isso resulte em número muito alto de palestinos mortos e feridos, a resistência renascerá enquanto a ocupação continuar."

Mas a médio e longo prazo, projeta Tamimi, o conflito deverá desencadear uma reconfiguração no mundo árabe semelhante, "se não maior", à de 2011 com a Primavera Árabe. "Hoje, o povo árabe, do Atlântico ao Golfo, apoia a Palestina e chora por Gaza, mas pode fazer muito pouco porque os regimes sob os quais está submetido são tirânicos e corruptos; alguns são até sionistas. Assim, as massas árabes, se não hoje, então em algum lugar num futuro próximo, se libertarão do jugo do despotismo e lutarão por sua liberdade e dignidade. Isso acabará por servir à causa palestina."

Indagado se o Brasil poderia de algum modo influir no tabuleiro diplomático do conflito, ele afirmou: "O Brasil é um país grande e pode ter influência. Poderá ser uma boa ideia se juntar a alguns dos melhores regimes da região, como Turquia ou Catar, para melhorar a situação dos palestinos".

Azzam Tamimi era amigo de Jamal Khashoggi, o jornalista saudita assassinado pelo regime da Arábia Saudita que se tornou símbolo da luta por um islã mais democrático. "Jamal sempre foi um defensor dos direitos palestinos, assim como apoiou fortemente a Primavera Árabe. Se estivesse vivo, teria usado a sua caneta e suas conexões para tentar ajudar a causa palestina. Que Deus abençoe sua alma."

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.