Descrição de chapéu
Claudio Leal

Aos 80, Caetano nunca foi tão de esquerda

Após atritos com esquerdistas, simpatias liberais e adesão a Ciro, cantor mudou de direção e vai de Lula

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Claudio Leal

Jornalista e mestre em teoria e história do cinema pela USP

[resumo] Caetano Veloso chega aos 80 anos neste domingo (7) em novo estágio de seu pensamento político, mais próximo da esquerda do que jamais esteve, empenhado em revitalizar sua utopia, que remonta ao início tropicalista, da grandeza histórica de um Brasil que poderia recivilizar o Ocidente com seus valores originais.

O Brasil tem alguma culpa na insônia crônica de Caetano Veloso. Como se sabe, seu sono é leve e custa a chegar. Aos 80 anos, o tropicalista continua sendo um insone da história, um catalisador das grandes questões de seu tempo, aquele que "deita numa cama de prego e cria fama de faquir". Nas canções e ensaios, nunca está em sossego com o Brasil que inventou para si.

Sua profecia brasileira desenha um país em condições de construir um modelo próprio de superação do capitalismo e recivilizar o Ocidente com os valores originais de sua formação miscigenada. O legado da escravidão, as desigualdades sociais e a crise de imaginação das esquerdas são objetos de suas leituras noturnas, mas o estudo dos entraves à sua utopia não o faz jogar pela janela tudo o que nasceu de nossas anomalias, sobretudo uma cultura popular diversa e propensa à exportação.

Homem usa roupa branca e toca um violão num palco
Caetano Veloso em show de 'Meu Coco', em Belo Horizonte - JP Lima

A crença de Caetano na grandeza histórica do Brasil assume a cara de um sebastianismo do século 21 e identifica sinais confirmadores desse destino inevitável no futebol-poesia de Pelé, na brejeirice hollywoodiana de Carmen Miranda, no cinema novo de Glauber Rocha, na bossa nova de João Gilberto e na união cosmopolita do bloco afro-baiano Olodum com Paul Simon e Michael Jackson.

Ainda há tudo o que a língua restringe e precisa ser anunciado ao mundo: Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto e Chico Buarque. Ele quer "luxo para todos", uma distribuição equânime de beleza, não só de consumo.

Nos anos 1960, a tropicália explorou as contradições do Brasil pela lente da antropofagia modernista, iluminando a inventividade existente em expressões depreciadas pela alta cultura, do brega ao rock. O movimento vanguardista, desconstrutivo e crítico do nacionalismo, introduziu para sempre, na antropofagia de Caetano, o combate ao sentimento brasileiro de inferioridade.

Ele admira a lábia impetuosa de Glauber, a loucura crítica de João Gilberto e a audácia diplomática de Lula porque são casos de brasileiros que não veem no subdesenvolvimento qualquer barreira para falar de igual para igual com o mundo.

"Sejamos imperialistas!", ele exige na canção "Língua", de 1984, complementando a ordem com uma pergunta auto-irônica: "Cadê?". O império Brasil, cadê?, enfrenta limitações e dificuldades.

A língua portuguesa se sobrepôs às línguas indígenas, virou uma força integradora do território nacional, cercada pela hegemonia do espanhol na América do Sul, mas nunca superou sua marginalidade no mundo. Inculta, bela e desarmada.

No neossebastianismo de Caetano, a posição de potência periférica não impede que o Brasil assuma uma liderança mundial, impondo-se não apenas pela dimensão geográfica ou diversidade de riquezas naturais. O centro de sua atenção é a mescla confusa e poderosa de modos de viver indígenas, africanos e lusitanos.

O "Enzo Gabriel" da sua recente canção talvez seja o próprio Brasil —"Um menino guenzo/ Ou um gigante negro de olho azul/ Yanomami, luso, banto: Sul".

Claro que há algo de místico em todo esse ideário. Dito isso, vale dizer que Caetano é um homem com tendências racionalistas e se interessa, sobretudo, por coisas reais, a exemplo de jornal, livro, corpo, sexo, Marcel Proust, Anitta, poemas de Augusto de Campos e banho de mar no Porto da Barra. Na conciliação de profecia e materialismo, tem a ginga de um sebastianista racional, disposto a lutar pela transformação de seus presságios em políticas públicas.

A afirmação de suas ideias resultou desde os anos 1960 em conflitos com setores da esquerda. Ele flutua em pontos de tensão. Diz muito sobre seu lugar ideológico na juventude que o então estudante de filosofia tenha sido informado sobre o início do golpe de 1964 durante uma reunião do CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE (União Nacional dos Estudantes), em Salvador.

A empresária e produtora Paula Lavigne, o músico Caetano Veloso, Lula e Janja em jantar em São Paulo em maio de 2022
A empresária e produtora Paula Lavigne, o músico Caetano Veloso, Lula e Janja em jantar em São Paulo em maio de 2022 - Reprodução Instagram Lula

Até o início do movimento tropicalista, em 1967, ele dividirá com a esquerda tradicional o espaço comum da resistência à ditadura. Nesse ano, o filme "Terra em Transe", de Glauber, marca um segundo momento de sua maturidade política ao revisar a derrota da esquerda dentro de um quadro definido pelo crítico Ismail Xavier como "alegoria do desencanto".

Em uma cena clássica, o poeta Paulo Martins (Jardel Filho) tampa a boca de um operário e acusa a sua despolitização. O gesto profanador de Glauber preparou terreno para a trilha tropicalista de Caetano. A recusa violenta à sacralização do povo lhe dava segurança para o confronto maior com os defensores de uma arte nacional-popular.

Em São Paulo, em setembro de 1968, na eliminatória do Festival Internacional da Canção, seu choque com os espectadores do Tuca, em sua maioria de esquerda, o jogaria em definitivo para uma posição autônoma em relação a ortodoxias.

A prisão pós-AI-5 e o exílio em Londres o engrandeceram no imaginário da esquerda. A contragosto, Caetano virou mártir. O retorno do exílio, em 1972, retomou e aprofundou seus choques. Sua alma "liberal radical" crescera longe do Brasil.

Na abertura da ditadura militar, ele encarnou a política do corpo, do rebolado, das sexualidades, do engajamento existencial, da exaltação da negritude e da miscigenação, apontando vícios autoritários no seio de grupos progressistas.

Com "Odara", o álbum "Bicho" (1977) surgiu no clímax de suas diferenças com militantes esquerdistas. Por razões óbvias, a redemocratização do país o devolveria aos palanques da velha esquerda, em defesa das eleições diretas.

Aos 80 anos, Caetano vive novo estágio de seu pensamento político. Em 2019, ao ler a introdução do comunista Jones Manoel ao livro "Revolução Africana: uma Antologia do Pensamento Marxista", ele iniciou uma revisão crítica de seu passado liberaloide e desatou a ler o filósofo marxista italiano Domenico Losurdo.

Na Bahia, pouco antes disso, ao observar a adesão do poder econômico ao projeto fascista de Jair Bolsonaro e reconhecer o fracasso dos liberais na distribuição de riquezas, ele manifestava seu desejo de ver a esquerda livre da adesão oportunista aos postulados religiosos do mercado. Entram nessa equação as reuniões organizadas pela produtora Paula Lavigne, sua esposa, com ativistas e políticos socialistas.

A virada ideológica de Caetano, "à esquerda de si mesmo", causou escândalo. Suas afinidades com um intelectual apontado como neostalinista por liberais e uma parte da esquerda —Jones Manoel afasta de si esse cálice— surpreenderam seus amigos progressistas e conservadores.

No meio da onda de ataques a Jones, procurei me informar com Caetano sobre a realidade de suas mudanças. Seu grau de entusiasmo era elevado, pouco ligando para os ataques da esquerda e da direita. "A recuperação moral da Revolução Francesa e da Revolução Soviética é a força do argumento de Manoel e Losurdo. Sem dessacralizar essa desvalorização do progresso histórico, vamos ficar patinando em polarizações de superfície", ele me disse.

"A esquerda, para unir-se, precisa abrir os olhos para isso. Acho que os socialistas portugueses conseguiram por essa razão. Devem ter aberto os olhos para isso e desqualificado o pensamento único, que demoniza os jacobinos, os sovietes, as tentativas —e eventuais conquistas— das revoluções importantes. Deu-se um mute na Revolução Francesa e na Russa e exaltou-se a Revolução Americana e a precoce ‘gloriosa’ inglesa. Foi isso que mudou em mim, ao apenas ver vídeos de Jones e ler a introdução da ‘Revolução Africana’."

Ele se dedicava, então, a desmascarar a hipocrisia dos discursos antitotalitários da direita liberal.
Nos últimos anos, Caetano se posicionou mais à esquerda que em qualquer outro momento de sua vida. De seu lado, a esquerda ficou mais "Odara" e o reconheceu como uma consciência crítica no enfrentamento do banditismo bolsonarista.

Como previu seu amigo Maurício Pato, ainda nos anos 1970, "Gente" virou uma canção de protesto. "Gente é pra brilhar, não pra morrer de fome", ele canta, com um sentido renovado, em atos políticos.

Em 2022, Caetano fez o L. Seu coração cirista decidiu votar em Lula no primeiro turno da eleição presidencial. Os desencontros do tropicalista com o PT, no passado, expõem um paradoxo, se observarmos que os anos de política externa de Lula e Celso Amorim propiciaram o cenário mais próximo de sua crença na liderança internacional do Brasil.

O cantor Caetano Veloso e os Beat Boys interpretam "Alegria, Alegria" no 3º Festival de Música Popular Brasileira, promovido pela TV Record, em 1967 - Claudemiro/Acervo UH/Folhapress

Em um país mais sombrio, a vitória de Lula se apresenta como etapa essencial para a sobrevivência de sua utopia e de suas ideias de reforma da esquerda, hoje mais identificadas, no campo teórico, com Ciro Gomes.

Mas, farol alto. Ele continua a "ver com olhos livres", como disse Oswald de Andrade, e a desconfiar de personalismos. Seus sonhos são ainda mais elevados.

O álbum "Meu Coco" é a aposta mais drástica de seu sebastianismo tropical, de seu "ou vai ou racha" civilizatório, de sua "vertigem visionária". Sua briga pelo Brasil é uma questão pessoal.

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