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Livro explica como capoeira e samba viraram símbolos da identidade brasileira

Autor de 'Rodas Negras', historiador Roberto Pereira vê conceito de apropriação cultural como simplista

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Naief Haddad
Naief Haddad

Repórter especial da Folha

[RESUMO] Em seu mais recente livro, historiador realça o protagonismo de criadores negros em transformar manifestações antes marginalizadas, como capoeira e samba, em símbolos da identidade brasileira, transição por muito tempo atribuída apenas a agentes como Estado e academias, e classifica como simplista o conceito de apropriação cultural, que a seu ver trata a cultura negra como vítima passiva de um sistema que esvazia sua produção.

Nascido em São Luís, no Maranhão, Roberto Pereira pratica a capoeira desde menino, em 1985. Hoje, aos 46 anos, ele é contramestre, nível que antecede o grau máximo, de mestre.

Doutor em história comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Pereira também pensa a capoeira com o refinamento intelectual que a prática merece. Depois de publicar "A Capoeira do Maranhão entre as Décadas de 1870 e 1930" em 2019, ele lança agora "Rodas Negras - Capoeira, Samba, Teatro e Identidade Nacional".

Praticantes de capoeira em Salvador em julho de 2023 - Wang Tiancong - 4.jul.2023/Xinhua

Desta vez, o historiador retoma "a mais bela luta do mundo", como escreveu Jorge Amado, mas dá alguns passos além dela. No novo livro, ele se propõe a mostrar de que modo manifestações da cultura negra, como a capoeira, o samba e o frevo, deixaram de ser vistas como expressões étnicas e marginalizadas e se tornaram símbolos da identidade brasileira.

Por meio de uma longa pesquisa em jornais do Sudeste e do Nordeste da primeira metade do século 20, entre outras fontes, Pereira defende que essa transição cultural, rumo a uma visibilidade muito mais abrangente, também ocorreu graças ao protagonismo das comunidades negras, e não apenas por ação do Estado, das elites econômicas e dos intelectuais, como diversos autores já alardearam.

"Essa discussão sobre a identidade era muito corriqueira, e os estudiosos geralmente enfatizavam a participação do Estado quando falavam, por exemplo, sobre o samba. Também discutiam o papel do capitalismo nessa construção", afirma o historiador. "Acho que o grande ponto do livro é destacar o agenciamento dos próprios produtores na transformação dessa cultura, vista como negra e marginalizada, em uma cultura nacional."

O historiador Roberto Pereira, autor de "Rodas Negras - Capoeira, Samba, Teatro e Identidade Nacional" - Paulo do Vale/Divulgação

Nesse olhar na contramão, uma marca de "Rodas Negras", algumas figuras e companhias saem engrandecidas. É o caso de Joãozinho da Gameia, babalorixá baiano que levou o candomblé para os palcos e se orgulhava de dar "aula de dança negra" para artistas da sua época, como a dançarina e atriz Eros Volúsia.

Outro exemplo é o Teatro Folclórico Brasileiro, mais conhecido como Brasiliana, formado por percussionistas, dançarinos e cantores negros que uniam expressões como frevo e maracatu. Depois de apresentações bem-sucedidas no Rio de Janeiro e em São Paulo, o grupo se consagrou em excursões pela Europa a partir da década de 1950.

"Houve uma luta imensa dos negros para preservar essas práticas porque eram perseguidas pela polícia, pagavam taxas altas, entre outros fatores. Depois, eles foram conquistando espaço lentamente, com apoio de intelectuais. Começaram a levar essas manifestações para o rádio, a televisão, o cinema, e promoviam eventos", afirma o autor.

É a partir desse mote da resistência das populações negras que Pereira relativiza o conceito de "apropriação cultural", visto por ele como simplista. Grosso modo, isso ocorre quando uma cultura subalternizada é apropriada por uma cultura dominante.

O termo começou a ganhar alguma projeção nos meios acadêmicos brasileiros com o texto "Feijoada e Soul Food", de Peter Fry, publicado pela primeira vez em 1977. O antropólogo inglês buscava mostrar como o samba do Rio e o candomblé da Bahia tinham sido "apropriados pela burguesia branca e transformados em instituições nacionais lucrativas".

Cinco anos depois, o antropólogo argentino Néstor Canclini defendeu ideia semelhante e, nas décadas seguintes, alguns estudiosos brasileiros apoiaram a pertinência do conceito.

Há um grave problema nessa concepção, escreve o historiador maranhense. "Apresenta as elites, o Estado, o mercado, ou o capitalismo, como incontestavelmente soberanos, como um rei despótico que governa os súditos ao seu bel-prazer e faz dessas culturas apropriada o que bem quer."

A contradição se instala, ele continua. "Na ânsia de defender a cultura negra, popular e seus detentores, [esses autores] acabam por silenciar todo o agenciamento dos grupos produtores dessas culturas ao longo do século 20." Em outras palavras, os criadores de sambas, turbantes e penteados afro, entre outras manifestações, não são vítimas passivas de um sistema que esvazia a criação, mas participantes conscientes da arena cultural.

Por outro lado, Pereira se alinha aos teóricos da apropriação cultural em um aspecto correlato. "Eles afirmam que as populações que produzem cultura, particularmente as negras, não obtêm o lucro do sucesso das suas criações. Essa é uma crítica correta, inegável. Mas o que determina não é a apropriação, e sim o racismo."

Ao longo do livro, o autor dá rasteiras em histórias que, embora inconsistentes, ganharam corpo ao longo da história do Brasil. Virou lugar-comum dizer que a capoeira ganhou enorme impulso nos anos 1930, na era Getúlio Vargas. "Fui analisar as fontes e, na verdade, o governo dele será fundamental para acabar com a capoeira de rua, que era a capoeira antiga, dando continuidade à política de repressão à vadiagem", afirma.

É por volta desse período que a capoeira da Bahia se impõe em relação àquelas praticadas em outros estados. Não por conta do apoio do Estado, mas porque soube se adaptar aos novos tempos, ganhando ares de esporte e de espetáculo graças, sobretudo, às iniciativas do Mestre Bimba, criador da capoeira regional.

O baiano Mestre Bimba (1899-1974), criador da capoeira regional - Reprodução

Bimba, aliás, é citado dezenas de vezes ao longo do livro. Foi ele, também baiano, o maior responsável pela institucionalização da prática, afastando-a do carimbo de marginal. O mestre morreu em 1974; quatro décadas depois, a capoeira foi considerada Patrimônio Histórico da Humanidade pela Unesco.

Rodas Negras - Capoeira, Samba, Teatro e Identidade Nacional

  • Preço R$ 85 (304 págs.)
  • Autoria Roberto Pereira
  • Editora Perspectiva
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