Livro sobre Diretas explica como canções de Ultraje, Caetano, Chico e Milton viraram hinos

Obra de Oscar Pilagallo comenta as músicas que marcaram as multidões que tomaram as ruas do país

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Oscar Pilagallo

Jornalista, é autor de "História da Imprensa Paulista" (Três Estrelas) e "O Girassol que nos Tinge: uma História das Diretas Já, o Maior Movimento Popular do Brasil" (Fósforo)

[RESUMO] No texto a seguir, adaptado de capítulo do livro "O Girassol que nos Tinge: Uma História das Diretas Já, o Maior Movimento Popular do Brasil", o jornalista Oscar Pilagallo conta como uma lista eclética e improvável de canções, do rock à MPB tradicional, embalou as multidões que iam às ruas pela redemocratização do país.

Num dia qualquer de 1982 —entre a surpreendente derrota da seleção brasileira na Copa da Espanha, em 5 de julho, e a auspiciosa primeira eleição direta para governadores em mais de 15 anos, em 15 de novembro—, Roger Moreira tomou uma chuveirada que mudaria sua vida e emprestaria irreverência à trilha sonora da campanha das Diretas. Cantarolando na ducha, acabou entoando, por uma associação sonora qualquer, a palavra "inútil", que ficou reverberando em sua cabeça até se transformar no refrão "a gente somos inútil".

Nascido em família da classe média paulistana residente na chique região dos Jardins, Roger estava distante do perfil dos jovens engajados que militavam no então ressurgido movimento estudantil.

Chico Buarque e a atriz Bruna Lombardi em comício pelas Diretas Já - Renato dos Anjos/Folhapress

Adolescente, a transgressão não ia além dos sapos que, apanhados na fazenda dos pais, soltava nas aulas. Em vez de contestação juvenil, algazarra inconsequente. Tinha largado o vício do fliperama, mas ainda gostava de entrar pela madrugada brincando de videogame ou folheando gibis, como "Pato Donald".

"Eu não era muito politizado, mal sabia o que era esquerda e direita", lembraria quatro décadas mais tarde, quando já estava alinhado à direita, inclusive apoiando o presidente Jair Bolsonaro, de extrema direita. E, no entanto, o guitarrista alienado de 1983 iria capturar o desejo coletivo, mas ainda não verbalizado nas ruas, de deixar para trás a ditadura.

Vazada em críticas ao governo e à sociedade, com ironias sublinhadas pela concordância verbal torta, a letra de "Inútil" passeia por mazelas brasileiras. Há menções à política industrial ("a gente faz trilho e não tem trem pra botar"), ao descuido social ("a gente faz filho e não consegue criar") e à censura ("a gente escreve peça e não consegue encenar"). Roger olha também para o próprio umbigo ("a gente faz música e não consegue gravar") e reflete o desapontamento nacional com a Copa perdida pelo futebol-arte ("a gente joga bola e não consegue ganhar").

Foi o verso de abertura, porém, que catapultou a música ao cenário político nacional: "A gente não sabemos escolher presidente". Era um grito que expunha frustrações e sacudia consciências, mexendo com os brios de quem, talvez vestindo a carapuça, se acomodara à impotência política.

A parabólica de Roger estava voltada para o lugar certo. "Inútil" teve a primeira audição pública em abril de 1983, pouco mais de um mês depois de a emenda Dante de Oliveira ter obtido o número necessário de assinaturas para ser apreciada pelo Congresso. A então desconhecida banda Ultraje a Rigor tocou-a no Teatro Lira Paulistana, um dos endereços mais prestigiados da cena musical de vanguarda dos anos 1980 e que decidira abrir espaço para novas bandas no projeto Boca no Trombone.

Roger Moreira, do Ultraje a Rigor, no segundo dia da segunda edição do festival SWU (Starts With You) Music and Arts Festival, em Paulínia, em 2011 - Zanone Fraissat/Folhapress

Gravada quase em seguida em um compacto simples, teria que aguardar por longos meses a liberação da censura. A provocação juvenil parecia incomodar os militares, como um sapo jogado na caserna.

Antes de obter a autorização de Brasília, no entanto, a música chegaria aos palanques da campanha das Diretas por vias informais. Tudo começa quando André Midani, presidente da gravadora WEA, resolveu distribuir para amigos fitas cassete com a gravação inédita. Uma delas cai nas mãos do publicitário Washington Olivetto, o criador da Democracia Corintiana, que a envia a Osmar Santos.

O radialista e apresentador toca "Inútil" no seu programa na extinta rádio Excelsior, o "Balancê", que fazia sucesso entremeando música e conversa sobre política e futebol. Na sequência, procura Roger e lhe pede autorização para reproduzi-la no sistema de som do primeiro dos grandes comícios das diretas, em 12 de janeiro de 1984, na Boca Maldita, em Curitiba. Seria a estreia de Osmar Santos como mestre de cerimônias da campanha e de "Inútil" como um de seus hinos. No palanque, Ulysses Guimarães se arrisca a cantarolar um trechinho.

Finalmente liberada pela censura, que desistiu de exigir mudanças na letra, a música emplacou, tendo contado até com a publicidade que lhe deu Ulysses. Quando Carlos Átila, porta-voz do presidente Figueiredo, declarou em seguida que as manifestações populares só serviam para "desestabilizar a sucessão", o deputado disse à imprensa que mandaria ao funcionário do Palácio do Planalto uma cópia do single de presente. "Ele que repita isso, que toque o disco e fique ouvindo."

Roger estava longe de ser, entre seus pares, uma andorinha solitária no verão das Diretas. Tardio como foi, o rock brasileiro, além de abordar temas típicos da juventude, como a rebeldia e o amor, lançou um olhar crítico sobre a política nacional desde a virada da década.

Em 1978, Renato Russo, que acabara de completar a maioridade, se perguntava "Que país é este?" em um rock punk que gritava haver "sujeira pra todo lado". O Senado, citado como exemplo, não era apenas uma rima. Pouco antes haviam tomado posse os senadores biônicos, uma invenção da ditadura para garantir a maioria governista. Apresentada em espaços alternativos de Brasília pelo grupo Aborto Elétrico, a música, no entanto, só ficaria conhecida em 1987, dois anos após o fim da ditadura, quando o compositor a gravou com sua nova banda, a Legião Urbana.

Formada no início dos anos 1980, a Plebe Rude, também da vertente punk do rock da capital federal, não dava trégua ao governo. Em "A Voz do Brasil", a banda captou a percepção geral da sociedade sobre o programa chapa-branca que registrava, diária e burocraticamente, os feitos do governo: "Todo dia eu ligo meu rádio para ouvir lavagem cerebral".

No fim da campanha das Diretas, em "Proteção", o grupo denunciou a truculência das autoridades que cercaram Brasília para dificultar a votação da emenda Dante de Oliveira, que propunha as eleições diretas. "Tanques lá fora/Exército de plantão", "e tudo isso pra sua proteção".

Em São Paulo, o Garotos Podres, cujo nome não deixa dúvida sobre sua inserção no punk, foi outro grupo meio marginal que engrossou o caldo de críticas ao regime e ao sistema. Formado em 1982, começou fazendo shows para arrecadar fundos para os metalúrgicos em greve. Dois anos depois, enquanto empresários e trabalhadores buscavam um objetivo em comum na política, os Garotos atacariam os patrões: "Eles são os terroristas/ com sua maldita polícia". Com a censura, trocaram "polícia" por "preguiça", mas o recado estava dado.

Já o Língua de Trapo, com seus integrantes egressos da USP, preferia o sarcasmo para fustigar o governo, como no show "Sem Indiretas", gravado ao vivo durante a campanha das Diretas, em que cantava: "Deve ser bom processar jornalista/ e se fingir caluniado/ deve ser bom tachar de comunista/ quem não for mesmo um aliado". Em outra canção, "Amor à Vista", comentava a penúria nacional com deboche mais explícito. "Os tempos são difíceis e você tem que se desdobrar", diz o narrador-gigolô à sua mulher. A balada romântica reversa evolui para a crônica política: "Nós moramos em São Paulo e aqui a oposição está no poder/ mas o colapso econômico, isso ninguém pode resolver".

E então o rufião abre seu voto: "Oh, Baby, eu votei no PT/ Que é que tem?/ Gente baixa também pode ter consciência". Se os versos não enaltecem os partidos de Lula e Ulysses, as duas legendas mais identificadas com as diretas sobrevivem ao escárnio do Língua de Trapo.

O rock foi também o veículo para Caetano Veloso se expressar com veemência contra os rumos do Brasil naquele final anunciado da ditadura. A canção "Podres Poderes" nasceu durante a campanha das Diretas e, inédita em disco, foi apresentada ao público em maio de 1984, mês seguinte ao da derrota da emenda na Câmara dos Deputados.

Numa saraivada de perguntas retóricas que distribuem lambadas nos políticos, o compositor coloca a ditadura brasileira em contexto cultural continental: "Será que nunca faremos senão confirmar/ a incompetência da América católica/ que sempre precisará de ridículos tiranos?". O cacófato "caca", de "América católica", seria para enfatizar a "porcaria" dessa tradição, sentido que a palavra tem em português e espanhol.

Caetano não eximia os brasileiros de culpa por permitirem que os homens exercessem seus podres poderes. "Somos uns boçais", como afirma na letra, é sua maneira de dizer "a gente somos inútil".

À novidade da contundência do rock nacional somou-se a melhor tradição de resistência da música popular brasileira, representada por dois de seus expoentes: Chico Buarque e Milton Nascimento. Juntas, as duas vertentes engrossariam o caldo sonoro da campanha das Diretas.

Embora sempre claramente alinhado ao campo progressista, Chico não fora, e nem se considerava, um compositor de músicas de protesto. Ao contrário, havia, por parte dele, uma desconfiança "diante da cultura engajada depois de 64, quando já estava desconectada do lastro social que lhe dava base material antes do golpe", na descrição de Fernando de Barros e Silva, que perfilou o artista. Nas palavras do próprio Chico: "A moda das canções de protesto me incomodava, [...], dava a impressão de ser um pouco oportunista".

Uma das poucas músicas que o próprio Chico colocaria nessa categoria é "Apesar de Você", um samba antigo que parecia ter sido escrito sob medida para os comícios das Diretas. A música tem uma história que se confunde com o movimento oposicionista à ditadura.

Chico passou pouco mais de um ano autoexilado na Itália no final dos anos 1960, quando, depois do AI-5, continuar no Brasil era uma opção arriscada para alguém que, como ele, estava na mira dos órgãos de repressão. Com dificuldade financeira para se manter no exterior, acabou voltando no início de 1970, no auge dos "anos de chumbo", expressão, aliás, que ele atualizaria no livro de contos publicado em 2021.

Foi então, percebendo que o país só havia piorado no período em que estivera fora, que Chico compôs os versos, endereçados a um interlocutor não nominado ("você"), a quem acusava de ter inventado "toda a escuridão".

A letra, como tantas na época, tinha duplo sentido para driblar a censura, podia ser ouvida como um lamento de marido. Não deixava muita dúvida, contudo, sobre a intenção política do autor. Versos como "A minha gente hoje anda/ falando de lado/ e olhando pro chão" ou "Eu pergunto a você/ onde vai se esconder/ da enorme euforia" continham indisfarçável mensagem.

"Você" era o general-presidente Médici ou o coletivo da ditadura. E, no entanto, naquele que é considerado um dos maiores cochilos dos censores, a música passou sem cortes e fez enorme sucesso. Até que, meses depois, o governo percebeu a própria falha e reagiu, proibindo sua execução e destruindo o estoque dos discos.

A cantora Fafá de Belém em comício pelas "Diretas Já em São Bernardo do Campo (SP), em março de 1984 - Silvio Ferreira/Folhapress

Com a abertura política, o samba, incluído no LP de 1978, passou a embalar eventos decisivos da oposição, como as eleições parlamentares daquele mesmo ano e o pleito de 1982, que elegeu os governadores que estariam à frente da campanha das Diretas. Mesmo considerando-a uma música "do passado", Chico não se furtou a cantá-la de novo nos showmícios de 1984 diante das multidões que sabiam de cor o refrão que refletia o anseio pelo fim da ditadura: "Amanhã vai ser outro dia".

Outra obra buarqueana associada às Diretas é o samba-enredo "Vai Passar". Lançada em meio à campanha, a música, em tom alegórico, passa em revista a ditadura ("página infeliz da nossa história") a partir do golpe, consumado enquanto "dormia a nossa pátria mãe tão distraída".

A frase que dá título à música, enunciada como um comentário contido no fim da gravação, é gritada no palanque, como se um apoteótico Chico não estivesse mais se referindo ao "estandarte do sanatório geral", e sim à emenda Dante de Oliveira: "Vai passar!".

No mesmo ano, o compositor revisitaria a campanha em "Pelas Tabelas", que ele resume como a história de "um sujeito procurando uma mulher, apaixonado, no meio da manifestação pelas Diretas". A letra, que passeia na fronteira entre o individual e o coletivo, recebeu uma leitura predominantemente política que, no entanto, o próprio Chico considera "viciada". Com efeito, a construção sofisticada, que remete à "barafunda mental" de sua obra literária posterior, se presta mais aos palcos do que aos palanques.

Chico marcou presença, sim, mas quem forneceu a trilha sonora da campanha cívica foi mesmo Milton Nascimento. Não com uma, nem com duas, mas com três canções consideradas hinos das Diretas.

O compositor captava em suas músicas dos anos 1960 e 1970 as delícias do amor, as venturas da fraternidade, a força da mulher, as coisas da terra que o acolheu, tudo isso sem, de vez em quando, deixar de visitar a política. "Quero a utopia, quero tudo e mais", cantava três anos antes das Diretas em "Coração Civil", que assina com o parceiro Fernando Brant.

A música reivindica para o brasileiro uma cidadania plena, não só com justiça e liberdade, mas também com direito ao vinho e à alegria. O caminho até lá passaria pela democracia que o país ensaiava timidamente: "Os meninos e o povo no poder, eu quero ver".

A letra cita, quase didaticamente, o contexto que a inspirou: a Convenção Americana dos Direitos Humanos, conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, que havia entrado em vigor em 1978, quase dez anos depois de assinada. É um clamor cívico: "São José da Costa Rica, coração civil/ Me inspire no meu sonho de amor Brasil".

No mesmo álbum, os parceiros assinavam outra canção com forte apelo político, "Nos Bailes da Vida", cujo verso mais conhecido ("todo artista tem de ir aonde o povo está") era a senha para que os membros mais proeminentes da classe subissem nos palanques das Diretas e emprestassem seu prestígio à causa.

"Coração Civil" e "Nos Bailes da Vida" ainda tocavam nas rádios quando, no início de 1983, a dupla compôs "Menestrel das Alagoas", em homenagem a Teotônio Vilela. É o primeiro dos três mencionados hinos das Diretas.

Incansável na defesa da anistia, solidário com os metalúrgicos presos em São Paulo e paladino das eleições diretas para presidente, o ex-senador concedera pouco antes, por ocasião do pleito de novembro de 1982, uma entrevista emocionante em que, já abalado pelo câncer que em breve ceifaria sua vida, falou com esperança sobre o futuro do Brasil.

Gravada por Fafá de Belém, que se transformaria na musa das Diretas, a canção enaltecia a "ira santa" e a "saúde civil" do político, que ao final da gravação declara: "Esta música é a melodia do povo. Sinto-me dentro dela porque venho fazendo de minha vida o roteiro da liberdade".

A tríade de Milton Nascimento que embalou as diretas, verdadeiros "cânticos de mobilização popular", na definição do estudioso da MPB Jairo Severiano, fecha com "Coração de Estudante", que consta do álbum "Ao Vivo", lançado no Natal de 1983, justamente quando representantes da oposição e da sociedade civil se organizavam para colocar de pé os megacomícios.

A melodia, na realidade, não era nova. Havia sido composta por Wagner Tiso para o filme "Jango", de Sílvio Tendler, que nem fora lançado. Milton fez a letra baseado em outro contexto, lembrando-se da morte do estudante Edson Luís, em 1968, em confronto com a polícia, episódio que precedeu as intensas manifestações contra o governo naquele ano.

Dirigida ao jovem, a canção mescla desalento ("já podaram seus momentos / desviaram seu destino") e fé no porvir ("mas renova-se a esperança / nova aurora a cada dia").

O título evocava o nome de uma planta delicada, coração-de-estudante, muito comum em Minas, e a cada vez que Milton soltava a voz nos palanques, ele regava um pouquinho aquela "folha da juventude".

O Girassol que nos Tinge: Uma História das Diretas Já, o Maior Movimento Popular do Brasil

  • Preço R$ 99,90, 416 págs.; ebook: R$ 59,90
  • Autoria Oscar Pilagallo
  • Editora Fósforo
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