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Guerreiro Ramos estuda negros não como tema, mas como gente viva

Sociólogo foi pioneiro ao nomear a 'patologia social do branco brasileiro', que se tornaria questão pública décadas depois

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Mário Augusto Medeiros da Silva

Sociólogo e escritor, é professor do Departamento de Sociologia da Unicamp

Campinas

Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982) foi um dos mais interessantes sociólogos brasileiros do século 20 e dos mais esquecidos e injustiçados, sendo retomado em agendas contemporâneas de pesquisa acadêmica e exercício de sociologia pública.

homem negro de barba e cabelo branco, óculos e terno
O sociólogo Alberto Guerreiro Ramos - Acervo pessoal

Baiano de Santo Amaro da Purificação, tendo feito sua formação e carreira no Rio de Janeiro, fez parte de uma geração de cientistas para quem o envolvimento com a política partidária, movimentos sociais, o Estado e as lutas no campo científico não eram elementos estranhos entre si.

Foram realizados com frequência pelos seus pares de geração, como Florestan Fernandes, Luiz de Aguiar Costa Pinto, Hélio Jaguaribe ou Candido Mendes. A diferença, que não era menor em seu caso, é que era um negro.

E isso teve suas consequências. "Negro Sou" é o título muito preciso da coletânea de textos organizada pelo cientista social Muryatan Barbosa.

Com o subtítulo "A questão étnico-racial e o Brasil: ensaios, artigos e outros textos (1949-73)", o volume procura dar um panorama de um aspecto muito importante da produção intelectual do autor —suas reflexões sobre a experiência de ser negro no Brasil, passando em revista estudos históricos, balanços da produção de outros autores, nacionais e estrangeiros, com quem polemiza intensamente, e a tomada de pulso da "vida do negro", no Brasil dos anos 1940 até o final dos anos 1960.

A vida do negro é vista como algo multiforme, muito além do mundo da escravidão e da subalternização, por muitas vezes insondável sob as lentes da discriminação, inclusive nas ciências sociais, para quem Guerreiro Ramos dirigia a crítica do tratamento do negro apenas como um tema.

Formado em ciências sociais pela Faculdade de Filosofia no Rio de Janeiro em 1942, dois anos depois ele participa do Teatro Experimental do Negro de Abdias do Nascimento, com quem organiza concursos artísticos para a população negra, e do Congresso do Negro Brasileiro e cria o Instituto Nacional do Negro. Na década de 1950, participa do Instituto Superior de Estudos Brasileiros e se elege deputado federal suplente pelo Partido Trabalhista Brasileiro, em 1963.

Se hoje falamos com frequência e, nos últimos anos, quase como senso comum sobre a ideia de branquitude, vale lembrar que em meados dos anos 1950 foi Guerreiro Ramos um dos primeiros a sugerir a necessidade de se estudar o branco e sua patologia social.

Sobre o negro, enquanto tema de pesquisa, muito se escrevia sem, segundo o autor, conhecer de fato a vida negra, para além de suas misérias. Esse negro, muitas vezes visto quase como um elemento de um passado a desaparecer, não correspondia à realidade da qual o próprio autor fazia parte. Teimava em existir vivíssimo e em formas insuspeitas no mundo social, lutando contra os preconceitos e discriminações do cotidiano.

Assim, Guerreiro Ramos nomeou a "patologia social do branco brasileiro", um doente coletivo marcado pelo racismo. Esta agenda de pesquisa só se tornou uma questão pública décadas depois.

Parte do itinerário do autor se confunde com os temas dos artigos selecionados no livro, majoritariamente de textos ou entrevistas nos anos 1950 e 1960.

Da poesia ao nacionalismo integralista ou à participação em lutas políticas progressistas; do mundo das artes plásticas ao teatro e ao cinema; do samba, dos morros e dos terreiros à administração pública, aos gabinetes de Estado e à frequência em cursos superiores; dos usos e dissabores de um diploma universitário ao diálogo crítico com instituições internacionais, interessadas, como a Unesco, em promover agendas de pesquisas sobre racismo na terra do suposto paraíso racial; do diálogo sobre a diáspora antirracista e anticolonial à reflexão negra, do negro por ele mesmo, entre seus pares em congressos científicos, com dificuldade em acessar o negro pobre.

Não sendo estranha à geração de Guerreiro Ramos a aproximação com movimentos sociais, tampouco são as opções por vias conservadoras —a religião católica e o nacionalismo integralista, por exemplo—, as mudanças de posição e, num certo momento, a afirmação da identidade racial como um elemento decisivo de atuação.

Eis aí a proximidade nada estranha entre o sociólogo e a trupe do Teatro Experimental do Negro, o palco e a experiência coletiva vistas como uma forma de treinamento do negro para enfrentar o racismo. E de se provar na modernidade, por meio de peças que escapassem ao óbvio. A vida negra, em suas multiplicidades, enfrentando os limites da democracia racial.

O mergulho na política também passou por sua atuação na administração pública. Forma de sobrevivência, mas também consequência de alijamento de uma carreira almejada como docente de universidade, especialmente após o golpe de Estado que o forçou ao exílio e reordenamento da vida. No seu caso, o caminho foi para os Estados Unidos, de onde poucas vezes retornou, vindo a morrer em Los Angeles.

Pouco entrevistado, estudado e procurado, com raríssimas exceções, duas delas ao menos feitas por trabalhos anteriores do próprio Barbosa, organizador do livro, e sua mais longa entrevista concedida à socióloga Lúcia Lippi de Oliveira, em trabalho há muito fora de circulação, "A Sociologia do Guerreiro", de 1995.

É muito oportuna, assim, a publicação desses textos que, tomara, possam reconduzir leitores do século 21 à obra de um dos poucos cientistas sociais negros brasileiros da metade do século 20 —também estavam lá, naquele momento, Edison Carneiro, Virgínia Bicudo, Clóvis Moura.

Poderemos ver que o tempo passou e não passou, que o Brasil avançou em se tratando de conquistas por direitos protagonizada por movimentos negros, que melhoraram a nossa democracia. Mas que também se mantém absolutamente desigual e ainda mais letal para a vida negra, considerando os índices de mortalidade violenta e casos de chacinas, sem discriminar classe social, idade, gênero.

Algo não mudou: a vida negra continua múltipla, insatisfeita e insubmissa, como refletia Guerreiro Ramos.

Negro Sou

  • Preço R$ 74,90 (320 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Guerreiro Ramos (org. Muryatan Barbosa)
  • Editora Zahar
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