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Manuel da Costa Pinto

Noemi Jaffe sintetiza 7 propostas para criação literária

'Escrita em Movimento' expõe desafios à escrita e sublinha a resistência da palavra

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Manuel da Costa Pinto

Mestre em teoria literária pela USP, autor de ‘Paisagens Interiores e Outros Ensaios’ e apresentador do programa ‘Entrelinhas’, da TV Cultura

[RESUMO] Noemi Jaffe reúne em seu mais recente livro sete princípios da produção literária elaborados a partir de suas oficinas de escrita e de sua própria experiência como escritora. A obra, que permite identificar um diálogo com as famosas formulações de Italo Calvino, tem como maior achado o desenvolvimento de um princípio que o italiano não teve tempo de finalizar: a consistência, momento em que as palavras se descolam de sua função utilitária na linguagem comum para adquirir valor literário.

Julgo importante informar ao leitor, antes de tudo, que dou aulas na Escrevedeira, centro literário do qual a autora do livro aqui resenhado é uma das criadoras. Tais aulas são de análise crítica, não tendo relação com as oficinas de escrita ali desenvolvidas e que estão, em alguma medida, na gênese da obra. Dito isso, vamos a ela.

É inevitável lembrar as "Seis Propostas para o Próximo Milênio", de Italo Calvino, ao ler "Escrita em Movimento: Sete Princípios do Fazer Literário", de Noemi Jaffe. Ambos trazem ensaios sobre, respectivamente, "valores ou qualidades ou especificidades da literatura" e "princípios, no sentido de serem disposições mentais para a reflexão e a prática da escrita ficcional", que seus autores gostariam de ver realizados.

A escritora brasileira Noemi Jaffe
A escritora brasileira Noemi Jaffe - Divulgação Cia das Letras

Uma diferença fundamental é que Calvino fez suas formulações em 1985 para uma série de conferências que daria nas Norton Lectures, ciclo promovido pela Universidade de Harvard (EUA), enquanto Noemi Jaffe escreve no milênio em que o escritor italiano projetou seus valores poéticos.

Outra óbvia diferença é que Noemi Jaffe é uma autora com obra em construção, ao passo que Calvino (cujo centenário de nascimento foi celebrado neste mês de outubro) já era então um nome central na literatura italiana do pós-guerra.

Os tais valores explorados por Calvino são: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade e multiplicidade. A última das seis conferências deveria ser sobre a consistência, mas permaneceu apenas indicada em manuscrito, pois Calvino morreu antes de embarcar da Itália para os Estados Unidos.

Ocorre justamente que o maior achado teórico de "Escrita em Movimento" diz respeito à consistência física, material, que as palavras adquirem na literatura. Escreve a autora:

"O instrumento formal com o qual o escritor lida diretamente são as palavras e tudo o que elas implicam: sons, disposição gráfica, ritmo, ordenação sintática, pontuação e tantas outras coisas. Se um escultor precisa, por exemplo, conhecer a resistência que um determinado tipo de pedra oferece a um determinado tipo de instrumento [...], o escritor também precisa se defrontar com aquilo que chamo de ‘a resistência das palavras’".

Ou seja, "todas as linguagens artísticas, de uma forma ou de outra, devem lidar com a resistência dos materiais com os quais trabalham", de tal modo que "um dos papéis mais importantes dos escritores inventivos é recuperar, para a língua, a impenetrabilidade das palavras e mesmo das ideias".

Essa sequência de raciocínios aponta para uma questão essencial, pois destaca uma característica da literatura à qual normalmente não se dá atenção. Estamos habituados a ver as diversas linguagens artísticas –música, pintura, dança, literatura– como manifestações homólogas de um mesmo procedimento expressivo.

A literatura, porém, apresenta uma característica única: utiliza nossa língua natural (aquela com que nos comunicamos e pela qual nos definimos), enquanto as demais usam linguagens próprias, com diferentes graus de representação da realidade (basta pensar na diferença entre arte figurativa e abstrata, ou no caso extremo da música pura, cujas notas não remetem a nada além de si mesmas).

Daí a dificuldade de definir a "literariedade do literário", o momento em que conceitos ou palavras usados na comunicação utilitária assumem sentidos específicos dentro de um poema ou de um romance —que, por serem escritos no mesmo código de documentos, textos de jornal ou livros teóricos, nunca se descolam completamente das referências que têm nesses registros.

É só a partir dessa atenção à especificidade do material literário que, paradoxalmente, podemos entender sua relação com outras linguagens artísticas. Ao sugerir que a escrita de invenção consiste em recuperar a "impenetrabilidade das palavras e mesmo das ideias", portanto, Noemi Jaffe não está defendendo o hermetismo, a opacidade, mas a explicitação tantas vezes esquecida de seu caráter de artefato, de coisa —sua consistência.

Seria esse o significado do termo na conferência que Calvino deixou apenas indicada? Nunca saberemos. O fato é que, em "Escrita em Movimento", essa ideia se conecta a outras.

A mais importante delas é a consciência narrativa, a necessidade de que cada decisão de um escritor, como escolha do foco narrativo, seja tomada de forma "consistente" (agora no sentido lógico do termo), conformando o todo do texto de forma coerente —ou em que as incoerências sejam por sua vez intencionais, também conscientes.

E isso leva a outros princípios —como simplicidade, estranhamento e originalidade— que dizem respeito menos a seu efeito estético do que àquele deslocamento que a literatura opera na linguagem ordinária, dissolvendo os sentidos coagulados e as "adiposidades cerebrais" de que falava Mário de Andrade.

Tais reflexões, derivadas do corpo a corpo com o texto que a escritora mantém em suas aulas e oficinas literárias, não se confundem com o formato normativo dos cursos de escrita criativa norte-americanos, cujas prescrições voltadas à boa acolhida no mercado editorial são sutilmente desmontadas por Noemi Jaffe, em capítulos que trazem também breves e agudas análises literárias, em especial do poema "Áporo", de Drummond, e do conto "Uma Vela para Dario", de Dalton Trevisan.

Livro que expressa os valores literários de uma autora com dicção poética inconfundível, "Escrita em Movimento" oferece ainda a possibilidade de ver como seus pares enxergam seus "sete princípios". Cada parte traz, ao final, depoimentos de escritores como Beatriz Bracher, Milton Hatoum e Edimilson de Almeida Pereira sobre suas experiências com essas propostas para o nosso milênio —que, aliás, as obras da própria Noemi Jaffe realizam plenamente.

Escrita em Movimento: Sete Princípios do Fazer Literário

  • Preço R$ 64,90 (192 págs.); R$ 34,90 (ebook)
  • Autoria Noemi Jaffe
  • Editora Companhia das Letras
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