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Heloisa Pait

Novelo multicultural do Oriente Médio aparece em redes sociais

Perfis de ativistas, jornalistas e pesquisadores de países árabes nos mostram uma região diversa e complexa

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Heloisa Pait

Professora da Unesp

A tragédia de 7 de outubro e a guerra entre Israel e o Hamas reverberam em nossas pequenas telas a cada hora, de manhã até a noite, em línguas e alfabetos distintos (persa, árabe, latino e hebraico) que os aplicativos traduzem automaticamente.

No X, antigo Twitter, novas vozes se fizeram ouvir e se entrelaçaram nesses meses, falando conosco e entre si, distantes geográfica e linguisticamente, ainda que culturalmente próximas dadas nossas origens mediterrâneas. O que falavam fazia sentido, especialmente quando lançavam mão do inglês, língua franca.

Fachada da sede do X, em San Francisco - Carlos Barria - 30.jul.23/Reuters

Pudemos ler fios completos nos apresentando mundos desconhecidos, escritos por egípcios, iemenitas, curdos, palestinos ou iraquianos baseados em países democráticos que lhes permitem falar livremente sobre seus países de origem. Uma verdadeira diáspora.

Quem acompanha a sociedade israelense já sabia de sua enorme diversidade étnica, mas a novidade foram as dezenas de perfis de ativistas, jornalistas e pesquisadores vindos dos países árabes que nos apresentaram uma região diversa, complexa e também viva e pensante, em uma convivência digital diária.

Hussein Aboubakr Mansour, egípcio que ainda jovem se interessou pelo inglês e pelo hebraico, nos apresenta fios sobre a fascinante história do pensamento egípcio, que alimenta as opções políticas árabes atuais.

Mais sóbrio, o iraquiano Hussain Abdul-Hussain imagina os palestinos como atores capazes de decisões, cobrando-lhes solidariedade às causas árabes democráticas.

Com a pesquisadora egípcia Dalia Ziada, vimos que a falta de liberdade de expressão no mundo árabe ainda hoje expulsa seus intelectuais; ela teve que sair do país por apoiar publicamente as ações israelenses contra o Hamas.

De Londres, testemunhamos o desespero de John Aziz com sua terra ancestral e como lida com os questionamentos a sua identidade que emergiram nesse conflito.

O carismático ativista iemenita Luai Ahmed arrumou as malas e foi para Israel, algo impensável para ele antes de emigrar para a Suécia, e nos contou de seus positivos encontros nesse país estigmatizado.

O toque cômico dessa Babel ficou por conta do perfil do árabe-israelense de origem cristã libanesa Jonathan Elkhoury, que se intitula um "gay goy guy" (goy é gentio em hebraico) e posta imagens de seu cotidiano —um show de drag queen em companhia de amigos judeus— entremeadas com posições políticas reveladoras dos conflitos intra-árabes.

Igualmente patriota é Tamer Masudin, um beduíno negro, muçulmano e secular que mora em Tel Aviv, sempre pronto a ironizar os críticos de Israel.

Já o curdo Himdad Mustafa recupera os laços antigos entre o povo judeu e seu povo, mas suas postagens mais urgentes são sobre os curdos condenados à morte pelo governo do Irã. Esse governo, aliás, é apontado como culpado pelo espalhamento de sua ideologia obscurantista pela região, apesar da brava resistência de iranianos e iranianas.

Há dezenas de outros perfis semelhantes, talvez centenas ou milhares, alguns falando anonimamente de seus próprios países. A posição que tomam não vem sem custos. Ataques homofóbicos, acusações de estar a soldo do governo israelense e ameaças não faltam, o que mostra que suas posições liberais e pró-ocidentais não são irrelevantes e talvez reforce uma identidade comum emergente.

Poderíamos ter aprendido sobre essa diversidade com filmes, livros e viagens? Decerto que sim. Mas interagindo com os Luais e Tamers, com Mansours e Hussains, penetramos nesse novelo multicultural que o pesado véu do petróleo e do autoritarismo esconde.

Os judeus, nesse mapa em camadas, passam a ser uma minoria étnica entre tantas da região, servindo como referência a essa dispersa comunidade liberal do Oriente Médio.

Que tipo de ação poderá advir desse encontro digital e que impacto terá em seus países de origem é algo para observar. No mínimo esses ativistas e pesquisadores estão sendo grandes tradutores de uma cultura e uma região que conhecemos mal, por falta de presença em nossos currículos e, já adultos, pela ideologia simplória que informa nossos debates. Mas também para se torcer.

Sim, pois até onde a distância digital permite, considero esses levantinos meus grandes amigos. Eles me emocionam, me instigam, me fazem rir e me fazem chorar.

Sei das suas peregrinações, das lutas de suas mães por seus direitos, do seu amor à terra natal e gratidão à pátria atual. Sei que olham para o Oriente com esperança não de reconquistas, mas de reconstruções. Que veem o patrimônio da cultura ocidental com a mesma perspicácia com que as melhores mentes levantinas o fizeram no passado.

Daqui do meu canto, de um país grande e forte, porém indeciso desde sempre entre a liberdade e o obscurantismo, quero me filiar a essa rica diáspora liberal.

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