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Carlos Adriano

Temporada de Benjamin em Ibiza é alegoria do desamparo do filósofo

Na ilha espanhola, entre ensaios filosóficos e paixões, escritor refletiu sobre sua exacerbada penúria material

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Carlos Adriano

Cineasta e doutor pela USP, realizou pós-doutorado em comunicação e semiótica pela PUC-SP e dirigiu "O que Há em Ti" (2020) e "Santos Dumont Pré-cineasta?" (2010), entre outros filmes

[RESUMO] A temporada de Walter Benjamin em Ibiza, entre os anos de 1932 e 1933, marcou um período de produção intelectual intensa e experiências pessoais significativas para o filósofo. Na ilha espanhola, antes de se exilar em Paris, escreveu "Experiência e Pobreza", criou suas primeiras narrativas ficcionais e viveu uma paixão avassaladora por uma pintora holandesa.

Há 91 anos terminava o começo do exílio de Walter Benjamin (1892-1940). Na então paradisíaca Ibiza, produziu ensaios seminais e as primeiras narrações ficcionais, escreveu para rádio e jornais, tomou um porre com uma puta e se apaixonou perdidamente por uma pintora holandesa. "Experiência e Pobreza: Walter Benjamin em Ibiza, 1932-1933", de Vicente Valero (Duas Cidades / Editora 34) registra seu périplo insular.

Pensador original com legado inconteste, constante e consistente, é autor de "Rua de Mão Única" (1928), "A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica" (1936), "Passagens" (1940) e "Sobre o Conceito de História" (1940). Em termos de vulgarização científica, Benjamin é o Einstein da filosofia (provou a quarta dimensão da relatividade do tempo) e o Freud do marxismo (psicanalisou o materialismo histórico e a imagem dialética).

Walter Benjamin na biblioteca nacional de Paris, em 1937 - Adam Rzepka/Divulgação

Nos anos 1930, ir a Ibiza era literal viagem no tempo, na idealização de um mundo arcaico e intacto. Era meca para artistas, descolados e desocupados que queriam fugir da sufocante Europa. A ilha espanhola epitomizava um tema caro a Benjamin: as relações entre a modernidade e o primitivismo. A condição de ilha é alegoria da insularidade do filósofo, isolado no desamparo, irônico no desespero.

Ibiza antecedeu o exílio definitivo de Benjamin em Paris, capital de suas obsessões como Baudelaire e as figuras das arcadas e do flâneur. Ele fixou-se no povoado de San Antonio. Era talvez o mais pobre morador da ilha, e, em 1933, sua situação era desesperadora. Pela exacerbada penúria material e tristeza manifesta, era chamado de "o miserável" pelos habitantes.

Ibiza foi a Stromboli de Benjamin. No filme (1950) de Rossellini, a ilha italiana é metáfora de convulsão e revelação existenciais entre erupções de vulcão. Um argumento do filósofo para o cineasta: "Talvez existam lugares ocos na lava (se é que a ilha é realmente vulcânica); mas também há quem garanta que são tumbas".

Em crise, Benjamin estava angustiado pelo longo divórcio de Dora Kellner, mãe de seu único filho Stefan Rafael. Escolheu Ibiza pela recomendação de um amigo e a situação de vida barata e simples, perto da natureza aprazível e apaziguadora. Encantado com a modelar moradia de Ibiza, caprichou no arroubo da descrição comparativa: "Os interiores também são todos arcaicos: três cadeiras ao longo do muro do cômodo em frente à entrada se oferecem ao estrangeiro com a força e confiança que teriam três Cranach ou três Gauguin colocados em uma parede."

Sua primeira temporada em Ibiza foi de abril a julho de 1932. Escreveu "Infância em Berlim por volta de 1900", "Crônica de Berlim", "Sequência de Ibiza" e as séries "Autorretratos do Sonhador", "Sombras Curtas (II)" e "Imagens do Pensamento", que incluiu "Conto e Cura", sobre a arte de narrar e a chance de curar doenças. "Sobre Astrologia" trata dos eflúvios da "lua insular" sobre as gentes.

Com a tese de doutorado do filho do amigo Felix Noeggerath, sobre as tradições orais da ilha, Benjamin retomou o interesse pelo artesanato de narrar e produziu suas próprias narrações: "O Anoitecer da Viagem", "O Lenço", "A Sebe de Cactos" e "A Viagem da Mascote". Estas foram tratadas no ensaio "O Narrador" (1936) —"o conto de fadas ensinou há muitos séculos à humanidade, e continua ensinando hoje às crianças, que o mais aconselhável é enfrentar as forças do mundo mítico com astúcia e arrogância."

"Ao Sol" é um dos textos mais espantosos de Benjamin. Na linhagem de Robert Walser e Hugo von Hofmannsthal, é literatura de caminhada e epifania —"O chão aqui soa como se fosse oco; o ruído com que responde aos passos faz bem àquele que está a caminho. Com esse som, a terra coloca a solidão a seus pés." É um chamado para o oráculo do dicionário —"O camponês possui a chave dessa escrita cifrada. A opulência de palavras é a característica apenas daquele que possui o saber sem os nomes, e a plenitude do silêncio daquele que nada tem a não ser os nomes?"

Não sei se os Titãs leram esse texto antes de cantar "Enquanto Houver Sol".

Os equívocos de nomes e lapsos de língua como "capricho incompreensível" do acaso são a base das "Histórias da Solidão" (1933). "O Muro" trata da muralha renascentista de Ibiza. "O Cachimbo" deixaria René Magritte morder o bico de inveja. "A Luz" projeta Vermeer no mediterrâneo.

A segunda temporada em Ibiza foi de abril a setembro de 1933. Escrito diante da esplêndida baía, no dia que chegou a Ibiza (11 de abril), o irônico "Poema Triste" escancara o fracasso e contrasta com os textos otimistas de 1932. Quase mendigo numa morada inacabada, escreveu "Experiência e Pobreza": "Ficamos pobres. Abandonamos uma depois da outra todas as peças do patrimônio humano, tivemos que empenhá-las muitas vezes a um centésimo do seu valor, para recebermos em troca a moeda miúda do ‘atual’."

Benjamin gostava de ir ao bar Migjorn, no porto da capital. Num dia de julho, pediu ao barman Toni um "cóctel negro", de composição ignorada, que bebeu a sangue frio. Chegou uma prostituta, que indagou se ele já tinha bebido a genebra (graduação alcoólica de 74%). Ela entornou duas doses e o desafiou. Ele topou e tomou duas, com rosto impassível de Buster Keaton. Andou até a porta e caiu.

Retomou o tema das "forças miméticas extintas", aludido em "Sobre Astrologia", no crucial "Sobre a Faculdade Mimética". Para ele, "o mundo perceptivo do homem não contém mais do que restos escassos daquelas correspondências que eram familiares aos povos antigos". A grafologia lhe ensinou "a descobrir nos escritos imagens que escondem o inconsciente".

Armou uma "coleção de sonhos" anotados. Fumou haxixe e ópio, o que lhe revelava um estado denso de conhecimento. Em carta (26 de maio de 1933) a Gretel Karplus (esposa de Theodor Adorno), Benjamin comenta as sessões, ou "protocolos" (como chamava), em relatos inéditos até 1970 —"Notas sobre o Êxtase do Haxixe".

Conheceu Paul Gauguin, neto do pintor e "companheiro sonhado". Um de seus textos mais belos escritos em Ibiza é a carta de 10 de junho 1933 a Karplus: "Ali nos foi oferecida uma imagem de perfeição tão completa que produziu em mim algo estranho, embora não incompreensível; fato é que, para dizer a verdade, eu não a via; sua perfeição a colocava à beira do invisível".

Em agosto, começou a paixão avassaladora pela pintora holandesa Toet Blaupot ten Cate. Em idílios no bosque e na praia, ele lia seus textos para ela, que traduziu para o francês "Haxixe em Marselha". Em 13 de agosto, deu-lhe de aniversário o curto texto "Agesilaus Santander". Divulgado por Gershom Scholem em 1972, causou furor perplexo.

Scholem foi amigo íntimo de Benjamin, seu principal interlocutor epistolar e o testamenteiro de sua obra. Para ele, Agesilaus Santander é um anagrama de Angelus Satanás e o texto deve ser lido na "tradição cultural judaica segundo a qual cada homem tem um anjo pessoal que representa seu eu secreto". Para Valero, é "um texto autobiográfico repleto de representações enigmáticas, que pertencem aos segredos íntimos dos amantes".

Em agosto, dedicou dois poemas a Blaupot. Num deles, chama-a de "puta e sibila". Em carta, declarou: "Em seus braços o destino deixaria para sempre de me atingir. Já não seria mais possível me surpreender com horrores nem com a felicidade".

Após contrair malária, deixou a ilha em 26 de setembro e se instalou em Paris —"se tiver sorte, poderei ganhar algum dinheiro elaborando bibliografias ou trabalhando como auxiliar de bibliotecário" (carta a Scholem, 16 de outubro de 1933). Considerou a hipótese de morar na Dinamarca, onde a vida era mais barata, com seu amigo Bertolt Brecht.

A relação com a pintora acabou quando ela foi para o sul da França com o futuro marido, em fevereiro de 1934. Até 1935 Benjamin tentou manter o caso impossível através de cartas, manifestando seus sentimentos e a recusa da renúncia a esse amor: "Sua presença me faz mais falta do que posso dizer e mais do que você pode acreditar".

Noutra missiva, diz: "Sou tomado pela necessidade de estar próximo de você e essa esperança domina o ritmo dos meus dias e do meu pensamento; se neste não perdurasse também um pedaço seu, eu não sentiria tanto a sua ausência." Jamais mandou a ela a última carta (24 de novembro de 1935): "Ainda há dias em que não me entra na cabeça que nunca mais vamos vir a saber um do outro".

Em setembro de 1939, foi levado a um campo de concentração por ser alemão não naturalizado na França. Em agosto de 1940, Max Horkheimer (para quem trabalhava no Instituto de Pesquisa Social), lhe conseguiu um visto para os Estados Unidos. Precisava entrar na Espanha, o que só poderia ser feito a pé através dos Pirineus.

Em 26 de setembro de 1940, tentou passar pela fronteira de Portbou e as autoridades espanholas do regime de Franco exigiram dele um visto francês. Negada a passagem, o retorno à França implicaria um provável confinamento em campo de concentração. Então Benjamin decidiu se matar naquela mesma noite com pílulas de morfina.

Valero especula que, solitário num quarto de hotel em Portbou, Benjamin teria pensado no lema latino do relógio da catedral de Ibiza —Ultima Multis— "que anunciava que cada nova hora também era a última para muitos".

Benjamin se referiu a isso em "O Narrador": "Ora, é no momento da morte que o saber e a sabedoria do homem e sobretudo sua existência vivida —e é dessa substância que são feitas as histórias— assumem pela primeira vez uma forma transmissível".

O estado de exílio às vésperas de guerras —a temporada em Ibiza antecedeu a guerra espanhola e a Segunda Guerra— permite imaginar outras pátrias para o pária Walter Benjamin: Haitiano? Afegão? Mexicano? Sírio?

Exercícios de especulação extemporânea são perigosos, ainda mais em tempos sensíveis e belicosos. Mas um palpite alegórico é que ele, devoto da cabala e outros mitos messiânicos judaicos, seria um crítico lúcido sobre a catástrofe-genocídio de Gaza perpetrada pelo governo militar israelense. Na condição de refugiado irremediável, o judeu Benjamin se assumiria como um palestino.

Experiência e Pobreza: Walter Benjamin em Ibiza, 1932-1933

  • Preço R$ 72 (272 págs.)
  • Autoria Vicente Valero
  • Editora 34
  • Tradução Daniel Lühmann
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