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Leonardo Avritzer

Como ultradireita virou obstáculo para paz em Israel

Netanyahu é herdeiro político de estratégia de ataques contra civis palestinos

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Leonardo Avritzer

Professor titular do Departamento de Ciência Política da UFMG

[RESUMO] Guerra em curso em Gaza é o clímax de política da direita israelense radical que aposta na militarização, refutando soluções políticas, e no ataque contra civis para conquistar territórios em Gaza. No entanto, consequências devastadoras do conflito poderão arruinar carreira de Netanyahu e minar seu projeto de enfraquecer a representatividade palestina e internacional na região.

Após cinco meses do início da guerra na Faixa de Gaza, a imagem é devastadora. Ainda em curso, já é o conflito entre israelenses e palestinos que produziu o maior número de mortes, mais de 30 mil, superando, inclusive, os óbitos durante as guerras de 1948, 1967 e 1973, travadas entre exércitos regulares.

Ainda que tenha sido uma reação aos atentados terroristas do Hamas em 7 de outubro, a quantidade de mortes civis em Gaza está diretamente relacionada à estratégia do governo de Israel na região: ataques aéreos com bombas de alto potencial destrutivo em áreas densamente povoadas.

Os palestinos fogem da área após o bombardeio israelense no centro da cidade de Gaza em 18 de março de 2024, em meio às batalhas em curso entre Israel e o grupo militante Hamas. (Foto da AFP)
Palestinos fogem após o bombardeio israelense no centro da cidade de Gaza, em meio às batalhas em curso entre Israel e o grupo terrorista Hamas - AFP - 18.mar.24

O método adotado pelo governo Netanyahu muda a dimensão do conflito entre israelenses e palestinos: até mesmo a guerra do Líbano, que registrou aproximadamente 17 mil mortos em 1982, ainda possuía a característica de uma guerra contra grupos armados com capacidade de retaliação. Assim, a guerra de Gaza constitui o clímax de uma estratégia de ataques contra civis por parte da direita israelense que teve o seu início em 1948 e da qual Benjamin Netanyahu é herdeiro político.

A direita israelense tem sua origem no pensador político Zeev Jabotinsky. Nascido em Odessa em 1880 e marcado pelo pogrom de Kichinev na Romênia (então Rússia) em 1903, Jabotinsky estabelece uma trajetória própria ainda durante a origem do movimento sionista, à medida que ele é crítico das suas principais lideranças, crítico do chamado mandato britânico na Palestina e proponente da presença de um Estado judeu militarizado nas duas margens do rio Jordão.

Jabotinsky influencia alguns intelectuais israelenses ainda nos anos 1930, entre os quais cabe destacar Benzion Netanyahu, o pai do atual primeiro-ministro de Israel. Juntos, eles começam a editar uma revista em Nova York em 1939, na qual o espírito da doutrina militarista da extrema direita israelense vai se desenvolvendo.

Netanyahu pai expressou na revista, chamada Zionnews, sua ideia da justiça "independente de quaisquer preocupações morais". Em 2009, já com 99 anos, Benzion Netanyahu defendeu em uma entrevista a ideia de que os israelenses deviam voltar a Gaza e definiu sua doutrina como "conquistar e manter territórios, mesmo que isso implicasse em anos de guerra".

Durante os episódios que levam à partilha da Palestina pelas Nações Unidas em 1947 e à guerra de 1948, o grupo político fundado por Jabotinsky e apoiado por Netanyahu adquire relevância na radicalização do conflito sob a liderança de Menachem Begin.

Há alguns meses, escrevi um artigo nesta Folha no qual discuti o caso das cidades de Haifa, Yaffo e Jerusalém, nas quais houve fortes conflitos em 1948 entre israelenses e palestinos. Em todos os casos, esses conflitos foram iniciados por um grupo político militar chamado Irgun, chefiado então por Menachem Begin.

No caso de Haifa, no primeiro conflito forte entre israelenses e palestinos, ainda em 1947, ocorre o caso da refinaria, quando o Irgun arremessa granadas na direção de trabalhadores árabes, levando a uma retaliação das forças palestinas e a uma resposta das forças israelenses.

Nesse episódio, condenado pela agência judaica, morreram mais israelenses do que palestinos, mas o que é mais importante frisar é que havia uma relação construtiva entre os dois povos, que o Irgun buscava destruir.

No caso de Yaffo, as atividades contra a população palestina na cidade foram iniciadas pelo Irgun algumas semanas antes do final do mandato britânico, sem o conhecimento prévio das forças ligadas ao que viria a ser o Exército israelense, a Haganá, provocando o êxodo de parte da população palestina daquela cidade.

Vale a pena mencionar aqui dois fatores importantes que ajudam a entender a extrema direita israelense. O primeiro é que, em seu livro de memórias, Menachem Begin jamais realizou qualquer autocrítica ou mostrou qualquer arrependimento por esses atos, tal como mostrou há algumas décadas o ensaísta palestino Edward Said.

Quando, ainda em 1948, Begin viaja a Nova York, um conjunto de intelectuais judeus, liderados por Hannah Arendt e entre os quais se incluía Albert Einstein, escreve uma carta aberta ao jornal The New York Times.

Nela se lê a seguinte afirmação: "Entre os fenômenos políticos mais perturbadores no recém-criado Estado de Israel situa-se a emergência do Partido da Liberdade (Haherut), um partido político similar na sua organização, métodos, filosofia política e apelo social aos partidos nazista e fascista, uma organização continuadora do ‘Irgun Zvai Leumi’, organização terrorista de extrema direita e chauvinista na Palestina. A visita de Menachem Begin, líder desse partido, aos Estados Unidos foi calculada para dar a impressão de apoio americano ao seu partido nas próximas eleições israelenses".

A guerra do Líbano e o projeto Likud 1

Menachem Begin tornou-se primeiro-ministro de Israel em 1977, derrotando o partido trabalhista que havia governado Israel até então. Naquele ano, apesar de transcorrida mais de uma década da Guerra dos Seis Dias, havia cerca de 4.000 colonos judeus que viviam em assentamentos nos territórios ocupados na margem ocidental do rio Jordão, quase todos eles assentamentos fronteiriços.

Begin nomeia Ariel Sharon como ministro da Defesa, e já em 1978 há uma primeira incursão militar no sul do Líbano. Mas o projeto que podemos denominar de Likud 1, que unia Sharon e Begin, envolvia a destruição da OLP (Organização pela Libertação da Palestina) no Líbano e, se possível, a captura do seu líder, Yasser Arafat.

Sharon irá tentar implantá-lo em 1982, a partir de bombardeios da cidade de Beirute e de um cerco militar e naval da cidade. Os Estados Unidos, então presididos por Ronald Reagan, impõem uma solução negociada depois de fortes trocas de insultos entre Reagan e Begin, que levam ao final dos bombardeios, uma saída negociada com a retirada de 14 mil combatentes da Fatah sob a supervisão de uma força internacional constituída por Estados Unidos, Grã-Bretanha e França.

Na esteira da retirada dos palestinos do Líbano, em setembro de 1982, ocorre um dos piores massacres do conflito, o de Sabra e Shatilla, dois campos de refugiados palestinos. Apesar de perpetrado por milícias de cristãos maronitas, as investigações independentes realizadas na época, especialmente as feitas pelos jornais Le Monde e The New York Times, apontavam para a cumplicidade do Exército israelense.

Fortes manifestações do movimento Paz Agora, realizadas em Tel Aviv, demandaram uma investigação independente por parte da Suprema Corte israelense sobre a responsabilidade política pelo massacre. Essas investigações geraram um relatório que responsabilizou Sharon.

Diz o relatório: "A decisão sobre permitir a entrada das [milícias] falangistas no campo de refugiados foi tomada sem qualquer consideração do perigo [...] de um massacre e pogroms contra os habitantes dos campos". A Suprema Corte israelense pediu a demissão do ministro, que ocorreu após algumas semanas de intensas manifestações do movimento Paz Agora.

É possível afirmar que a demissão de Sharon como ministro da Defesa, a sobrevivência da OLP depois da incursão israelense no Líbano e a interferência internacional através do envio de tropas americanas, britânicas e francesas puseram fim ao plano Likud 1, que evidentemente estava em relação direta com as ações do Irgun em 1948 e com a doutrina defendida por seu líder maior, Zeev Jabotinsky.

São essas três derrotas simultâneas que, associadas à primeira Intifada, levam aos Acordos de Oslo, mas também ao surgimento do Hamas em 1987 e à rápida influência que ele adquire na Faixa de Gaza, como consequência da forte repressão às lideranças da OLP.

A Guerra de Gaza e o projeto Likud 2

Benjamin Netanyahu é o líder que chega ao poder, em 1996, na esteira de duas tentativas fracassadas de buscar a paz entre Israel e os palestinos: o fim dos Acordos de Oslo, simbolizado pelo assassinato do primeiro-ministro Yitzhak Rabin, e a doença que acomete Sharon no momento em que ele chegava à conclusão de que não existe solução militar, mas apenas política para o conflito.

Fiel aos ensinamentos de Jabotinsky e ao diagnóstico de seu pai acerca da importância de ações militaristas para a conquista de territórios, Netanyahu, no decorrer do seu longo governo, escolhe três alvos principais. Em primeiro lugar, a OLP, que depois de Oslo se tornou Autoridade Palestina.

Ao longo dos seus 17 anos de governo, em três momentos como primeiro-ministro ele optou por desempoderar a OLP, aumentar os assentamentos na margem ocidental do rio Jordão, que hoje alcançam uma população de quase 700 mil pessoas e, principalmente, em dividir o poder palestino entre a Autoridade Palestina e o Hamas.

Em um discurso feito em reunião dos parlamentares do partido Likud em 2019, Netanyahu fez a seguinte afirmação: "Qualquer um que se oponha a um Estado palestino deve apoiar o envio de recursos a Gaza, porque sustentar a separação entre a Autoridade Palestina e o Hamas irá impedir o estabelecimento de um Estado palestino".

O segundo objetivo de Netanyahu foi atacar o Suprema Corte israelense. Como é sabido, Israel não tem Constituição, apesar de que a própria declaração de independência previa sua elaboração, projeto que foi abandonado no início dos anos 1950.

Nesse período, Israel elaborou algo denominado de leis fundantes ("basic laws"), que estabeleceram alguns princípios básicos de organização do Estado e uma certa pauta de direitos civis. No início dos anos 1990, o presidente da Suprema Corte, Aharon Barak, propôs que as leis fundantes fossem consideradas princípios constitucionais.

Ele também ampliou fortemente o escopo das decisões da Corte, no que ficou conhecido como revolução judicial. Em alguns desses julgamentos, a Suprema Corte obrigou as cortes rabínicas a adotarem o direito consuetudinário em casos de divisão de propriedade entre homens e mulheres e, em outros casos, ampliou direitos individuais —inclusive o de realizar petições à Corte em qualquer caso de violação de direitos.

A revolução judicial capitaneada por Barak incomodou tanto os setores religiosos quanto a direita israelense e está na origem da legislação proposta pelo governo Netanyahu para instituir um poder da maioria no Parlamento, independente da interferência da Suprema Corte.

Por fim, Netanyahu colocou como terceiro objetivo diminuir a influência das agências da ONU e do governo dos Estados Unidos na região. Desde 1947, a direita israelense tem problemas com agências e representantes das Nações Unidas.

Um pouco depois da partilha da Palestina e da declaração de independência de Israel, as Nações Unidas aprovaram uma proposta de cessar-fogo e enviaram a Israel o mediador sueco Folke Bernadotte, um conde no seu país de origem, que realizou os trabalhos iniciais para o estabelecimento da UNRWA, a agência da ONU para refugiados na Palestina.

Bernadotte foi assassinado por um militante do Lehi, uma organização de extrema direita chefiada por Yitzhak Shamir, que se tornou ministro das Relações Exteriores do governo Begin e depois primeiro-ministro.

O Likud nunca aceitou as resoluções 242 e 338 da ONU, sobre retirada de Israel dos territórios ocupados. O governo Netanyahu se diferencia dos anteriores por desafiar constantemente as políticas do Partido Democrata para a região desde o governo Bill Clinton. Assim, o terceiro eixo do projeto Likud 2 é enfraquecer toda a institucionalidade internacional sobre a região.

O projeto esteve muito próximo de ser exitoso. Israel conseguiu de fato isolar a Autoridade Palestina e aprovar a assim chamada reforma judicial. Ainda que as agências da ONU tenham seguido atuando, o bloqueio de Gaza deteriorou as condições de vida da população palestina.

Por fim, Israel conseguiu estabelecer relações diplomáticas com os países do Golfo e chegou perto de estabelecer relações com a Arábia Saudita.

O ataque terrorista do Hamas em 7 de outubro pôs fim ao plano Likud 2 de duas maneiras diferentes e complementares. Em primeiro lugar, arruinou a carreira política de Netanyahu, uma vez que são muitas as declarações do atual primeiro-ministro de Israel defendendo o financiamento do Hamas.

Netanyahu também é diretamente afetado pelo fracasso na reação das Forças Armadas de Israel à invasão do Hamas, uma vez que o emprego de soldados na Cisjordânia para defender os colonos e os assentamentos exauriu a capacidade das tropas israelenses.

A invasão também desestabilizou a política de aproximação de Israel e os países árabes do Golfo, colocando um ponto final na tentativa de isolar os palestinos. Assim, Netanyahu jogou a única cartada que lhe sobrava, a defesa de uma guerra total contra o Hamas, que rapidamente se tornou uma guerra total contra os civis palestinos.

O anúncio pelo governo dos Estados Unidos da instalação de um píer molhado na costa de Gaza parece constituir o início do processo de internacionalização da região e pode vir a ser a semente de uma solução política que passaria pela instalação de um governo multinacional capaz de criar condições para a volta de uma Autoridade Palestina empoderada para o governo da Faixa de Gaza.

Após a guerra, os dois atores que Netanyahu tentou circunscrever, a Suprema Corte israelense e as instituições jurídicas internacionais, deverão se pronunciar sobre as omissões de Israel e os crimes em Gaza. Tudo indica que o projeto Likud 2 chegou ao seu final.

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