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Manoel Pires

Um balanço dos últimos dez anos de política fiscal

Para prosperar no país, ajuste deve combinar medidas de receita e despesa e ações a curto e longo prazo

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Manoel Pires

Coordenador do Centro de Política Fiscal e Orçamento Público do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia) e professor da FGV EPPG (Escola de Políticas Públicas e Governo) e da UnB (Universidade de Brasília)

[RESUMO] Depois da vigência de um teto de gastos baseado integralmente na redução de gastos públicos e da estabilização de indicadores fiscais, sob Bolsonaro, com o esgarçamento do tecido social, o governo Lula busca lidar com a questão da dívida dando mais peso ao crescimento econômico. Autor sustenta que um programa crível de ajuste fiscal, que completa dez anos no país, deve evitar a contração da economia no presente sem adiar ações indefinidamente e ter uma composição pragmática de medidas de receita e de despesa.

Ao final de 2024, se completarão dez anos do início do ajuste fiscal, definido aqui como o período em que governos de várias linhas ideológicas implementaram políticas com o objetivo de melhorar o resultado primário em meio ao crescimento da dívida pública.

A reversão da política fiscal se iniciou em dezembro de 2014, quando o governo Dilma Rousseff (PT) apresentou medidas de ajuste do seguro desemprego, do abono salarial e de pensões por morte. Ao longo de 2015, medidas adicionais buscavam produzir um resultado primário positivo.

Homem com camisa branca, gravata vermelha e paletó escuro olha para o lado esquerdo da imagem
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad - Ton Molina - 13.mai.24/Fotoarena/Folhapress

Eis o quadro fiscal que justificou a reorientação: o resultado primário de 2014 foi deficitário, pela primeira vez desde o início do século, em 0,54% do PIB. O déficit nominal atingiu 5,95% do PIB, e a dívida líquida do setor público, de 32,6% do PIB, havia crescido depois de anos seguidos de queda.

A ideia era produzir uma recuperação dos indicadores fiscais e reorganizar a política econômica, que dava sinais de ter atingido limites importantes. O crescimento daquele quadriênio desacelerou bastante e havia pressões inflacionárias persistentes. Era o clássico freio de arrumação.

No entanto, 2015 e 2016 foram anos recessivos. A receita do governo caiu de expressivamente, e as medidas de ajuste adotadas se revelaram insuficientes para produzir o resultado desejado. Nessa situação, o ajuste também não ajuda, porque resulta em mais contração. Em 2016, já no governo Michel Temer (MDB), o déficit primário foi de 2,48% do PIB, o déficit nominal, de 8,98% do PIB e a dívida pública líquida acelerou para 46,1% do PIB. A tentativa de ajuste naquele biênio não funcionou.

É muito difícil atribuir a recessão de 2015-16 preponderantemente à política fiscal do período. Os multiplicadores fiscais disponíveis na literatura não dão conta desse efeito. As causas da crise foram mais profundas e envolvem políticas que não atingiram o resultado desejado, a reversão do ciclo de commodities, questões políticas que paralisaram o país e a própria resposta do governo à crise.

Diante de uma situação complexa, a solução veio por um choque de expectativas. Foi criado o teto de gastos, uma regra fiscal simples inserida na Constituição Federal que definia que o gasto primário deveria ser corrigido pela inflação nos dez anos seguintes.

O teto de gastos propunha um ajuste integralmente por meio da redução da despesa, proposta cuja viabilidade dependia de um grande número de reformas fiscais. Explicando: o gasto público é definido por várias leis e dispositivos constitucionais, e muitos benefícios são protegidos por direitos adquiridos. Assim, para conter o crescimento do gasto primário, é necessário reformar os instrumentos legislativos para alinhá-los, de gradualmente, ao que dispunha o teto.

Paralelamente, o governo prometeu reformas para gerar crescimento, entre as quais a redução da participação do crédito público na economia e a reforma trabalhista. Em 2019, durante o governo Jair Bolsonaro (PL), a reforma da Previdência foi aprovada. Paradoxalmente, no mesmo ano, o teto de gastos foi alterado para ressarcir a Petrobras em razão de uma operação de leilão de petróleo conhecida como cessão onerosa.

É importante separar a vigência do teto de gastos antes e depois da pandemia. Em 2019, o quadro econômico era de estabilização, a inflação e a taxa de juros caíram, esta última para mínimas históricas. O crescimento, no entanto, foi pífio e, apesar da queda das taxas de juros, o investimento não reagiu e a taxa de desemprego continuou elevada. Alguns indicadores fiscais melhoraram, mas ainda eram próximos aos observados em 2014: déficit primário de 0,8% do PIB e déficit nominal de 5,8% do PIB. A dívida líquida chegou a 54,7% do PIB.

A pandemia mudou o jogo, primeiro por inviabilizar o difícil cumprimento do teto de gastos, segundo por mudar a preferência política do eleitorado em prol de mais políticas sociais.

No final de 2022, os indicadores fiscais melhoraram em função da elevação da inflação, que ocorreu no mundo inteiro, e do ciclo de commodities em combinação com uma política salarial bastante apertada, compressão de gastos discricionários e o atraso dos precatórios. Essa união de elementos produziu o primeiro superávit primário desde 2013, de 1,25% do PIB, e um déficit nominal de 4,57% do PIB. A dívida líquida, que havia atingido seu ápice de 61,2% do PIB em 2021, caiu para 56,1% do PIB em 2022.

Contudo, ao mesmo tempo, o tecido social ficou esgarçado: funcionários públicos tiveram perda de quase 40% do poder de compra, o Bolsa Família era manejado arbitrariamente, a fila do INSS cresceu e vários órgãos públicos ameaçavam parar por falta de recursos. Com a inflação, as pessoas ficaram mais pobres.

O resultado primário foi atingido com a negação de obrigações básicas do governo. Essa combinação se mostrou insustentável e, diante das circunstâncias, a estratégia tinha que ser alterada. Bolsonaro sai, Lula (PT) volta para um terceiro mandato.

O governo apresentou a PEC da Transição, que suspendia o teto de gastos e ampliava as despesas para o Orçamento de 2023. O objetivo era viabilizar o aumento permanente do Bolsa Família, com o intuito de combater o aumento da pobreza resultante de anos de mercado de trabalho ruim e das sequelas econômicas da pandemia. Além disso, era necessário ampliar o orçamento para alguns órgãos públicos funcionarem. Posteriormente, se decidiu pagar os precatórios atrasados herdados da administração anterior.

Com o fim do teto de gastos, foi necessário apresentar um programa fiscal alternativo. Surgiu o regime fiscal sustentável, um eufemismo para designar um ajuste fiscal que combina mais flexibilidade de despesa, que passa a crescer pela inflação mais 70% do crescimento real de receita federal (expurgando alguns itens específicos), limitada pelo intervalo de 0,6% a 2,5%. Um aumento de carga tributária com foco nos mais ricos e em fechar brechas tributárias foi estabelecido para cumprir as metas fiscais.

O governo criou um regime conhecido como "tax and spend", ou seja, se tributa para gastar. Esse sistema é uma aplicação parcial do conhecido teorema de orçamento equilibrado, um resultado particular em que o aumento do gasto financiado com impostos estimula a economia. O governo tenta, portanto, resolver o problema fiscal dando mais peso ao crescimento econômico.

Em 2024, o objetivo é obter um resultado fiscal limitado a um déficit primário federal de 0,25% do PIB. Diante de dificuldades econômicas e políticas, o governo alterou sua programação fiscal de 2025, reduzindo a meta de superávit de 0,5% do PIB para um orçamento equilibrado, o que motivou questionamentos sobre a viabilidade da estratégia.

Diante da atual encruzilhada, é o momento de fazer um balanço dessa experiência para apontar um caminho coerente e politicamente viável. É importante reconhecer que o estado das finanças públicas merece muito cuidado.

Depois de dez anos de ajuste fiscal, com suas idas e vindas, o déficit primário acumulado em 12 meses até abril de 2024 foi de 2,4% do PIB, o déficit nominal atingiu 9,4% do PIB e a dívida líquida chegou a 61,2% do PIB. Esses são indicadores próximos aos patamares de 2015-16, exceto a dívida mais elevada, com a diferença que a economia não está em recessão, o que torna a possibilidade de melhora cíclica dos indicadores fiscais limitada.

O gasto público ficou mais progressivo. Os gastos com pessoal foram contidos, e o Bolsa Família, ampliado. A Previdência foi reformada, mas outras reformas devem ser realizadas em razão do envelhecimento populacional. O baixo investimento público e a desestruturação das políticas de inovação permanecem como impedimentos ao crescimento. É importante abrir espaço fiscal para a transição ecológica e a adaptação às mudanças climáticas.

A tributação se tornou muito frágil nos primeiros anos. Recentemente, o governo aprovou medidas tributárias progressivas, fechou algumas formas de planejamento tributário e está em vias de implementar uma reforma da tributação do consumo. O desempenho econômico do país melhorou depois da pandemia.

O ajuste fiscal no Brasil é gradual, e a atual mudança da meta, que ocorreu em todos os governos anteriores, é reflexo dos limites institucionais existentes. Por um lado, a despesa é muito rígida e, por outro, a carga tributária, para o nosso nível de renda, também é elevada. Assim, as melhorias fiscais ocorrem lentamente e ficam sujeitas à reversão conforme choques e conflitos políticos ocorrem.

Uma boa estratégia fiscal envolve um programa crível que não se concentra totalmente em curto prazo para não contrair a economia, mas não joga todo o ajuste para o longo prazo, em que haverá dúvidas sobre a sua exequibilidade. Se o ex-senador Pinheiro Machado (1851-1915) estivesse entre nós para analisar o tema, teria concluído que o ajuste fiscal não poderia ser "nem tão rápido que seja impossível, nem tão lento que ninguém acredite".

Estudos associam as políticas de austeridade ao surgimento de governos de direita antidemocráticos. O professor de filosofia de Harvard Michael Sandel argumenta que as políticas concentradas excessivamente em eficiência aumentam o sentimento de injustiça de vários grupos sociais que se sentem excluídos do orçamento público, os levando a questionar a legitimidade do sistema político. O governo deve ter cuidado com o reflexo político do seu programa fiscal, o que mostra a elevada complexidade do tema.

Deve haver maior equilíbrio entre medidas de receita e de despesa. Nos últimos dez anos, o problema do déficit foi utilizado para embalar discussões sobre o tamanho do Estado. A direita usou o déficit para justificar a redução de políticas sociais e mais eficiência do gasto. Criou o teto de gastos para se tornar leniente com a tributação.

A esquerda, por sua vez, usa o déficit para justificar o necessário aumento da progressividade tributária, mas sem atenção para a despesa. Esse ajuste é insuficiente. A despesa primária real, no primeiro quadrimestre de 2024, cresceu o triplo da velocidade permitida pelo novo arcabouço fiscal, gerando dúvidas sobre sua viabilidade. É importante estabelecer mais pragmatismo com relação à composição do ajuste.

A dívida pública é determinada pelo resultado primário, a taxa real de juros e o crescimento econômico. Reformas econômicas que promovam redução da taxa de juros e mais produtividade podem se combinar para gerar uma dinâmica fiscal mais saudável. A melhora recente das notas de crédito atribuídas por agências de rating destaca o melhor desempenho econômico em termos do crescimento, inflação mais baixa, mercado de trabalho e contas externas fortes.

O governo apostou na reforma tributária. Será um legado importante, mas seus resultados são de longo prazo e estão além do horizonte dessas questões. Será importante combinar a agenda de ajuste para alcance das metas com reformas de médio prazo que possam criar um ambiente econômico mais favorável com efeito positivo sobre as expectativas, comprando mais tempo para resolver o problema. A recente mudança da meta fiscal deveria servir para trazer à tona essas reflexões.

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