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Fabio Giambiagi

Milei precisará do apoio dos céus se não desatar nó da economia argentina

Primeiro semestre teve avanços pontuais e muito caos, e governo não pode contar com tolerância social por muito tempo

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Protesto contra o governo Milei durante cerimônia de comemoração, em Córdoba, da independência da Argentina Diego Lima - 25.mai.24/AFP

Fabio Giambiagi

Economista especialista em finanças públicas e Previdência Social. Autor, entre outros, do livro "Tudo Sobre o Déficit Público: Um Guia Sobre o Maior Desafio do País Para a Década de 2020" (Alta Books)

[RESUMO] Apesar do duríssimo ajuste fiscal, de cortes em programas sociais e da queda de renda da população, Javier Milei, que completa seis meses na Presidência argentina, mantém um grau de aprovação inimaginável quando assumiu. O governo, no entanto, enfrenta riscos de descontrole do câmbio, falta de apoio no Congresso e indigência administrativa. Se não aproximar a inflação de um dígito anual e promover a recuperação da atividade econômica, escreve autor, o presidente ultraliberal sofrerá quando a maré política virar.

Zeitgeist é um termo alemão que significa o espírito de um tempo histórico. Um símbolo do zeitgeist argentino atual é o que aconteceu no Luna Park há poucos dias, quando Javier Milei, no seu papel de showman e dublê de presidente, apresentou seu novo livro e deu uma aula de duas horas antes de se fantasiar de roqueiro.

Na aula, com ares de chefe de seita, misturando menções a autores da Escola Austríaca que nenhum dos seguidores fanáticos que uivavam seu nome deve ter lido e com alusões pejorativas à "casta política", em um determinado momento criticou Keynes, talvez o economista mais famoso do século 20.

Javier Milei gesticula durante cerimônia de comemoração, em Córdoba, da independência da Argentina - Diego Lima - 25.mai.24/AFP

Foi o que bastou para que 5.000 jovens, em estado de catarse e ignorando quem era o personagem, berrassem: "Key-nes, la-drão! Key-nes, la-drão!", quiçá acreditando que se tratava de algum político envolvido em alguma falcatrua.

Há duas frases-chave para entender a Argentina hoje. A primeira é de um antigo poema de Jorge Luis Borges, que escrevendo sobre Buenos Aires e seus habitantes, diz que "no nos une el amor, sino el espanto/ será por eso que la quiero tanto". Esses versos foram utilizados muitas vezes por analistas locais para explicar alianças entre adversários em função da existência de um inimigo comum.

A segunda é de Julio María Sanguinetti, ex-presidente uruguaio que, depois da vitória de MiIei, disse, com sabedoria de octogenário, que "só pode haver uma coisa pior para a Argentina que a vitória do Milei: seu fracasso".

Milei ganhou as primárias com 30% dos votos e a eleição com 55%: os dele e 25% "emprestados" por um eleitorado antiperonista que topava qualquer negócio para acabar com a hegemonia kirchnerista. Hoje, com seis meses de um ajuste duríssimo em curso, esse eleitor que fez leasing em favor de Milei pode estar não gostando da gestão atual.

Entretanto, quando ele vê os sindicalistas —um mais rico que o outro— fazendo duas greves gerais em seis meses —quando ficaram fazendo cara de paisagem durante todo o governo de Alberto Fernández, em que pesem os problemas da época— e Cristina Kirchner reaparecendo com sua figura espectral, fecha os olhos e, quando inquirido nas pesquisas, responde que apoia o governo e que ele ainda merece crédito, "porque si no vuelven los que estaban antes" (leia-se: "os que destruíram o país").

No Brasil, dizia-se em 2002 que a esperança venceu o medo. Na Argentina, o pânico alimenta a esperança. Pânico de que o governo fracasse, quando tem ainda sete semestres pela frente e sem alternativas claras contra ele. Nas palavras do jornalista Morales Solá, "o vazio é o principal aliado de Milei". Junto com a torcida de que "dessa vez as coisas darão certo, porque é um governo diferente".

Panorama em dezembro

Quando Macri passou o bastão a Fernández em 2019, a última transmissão de mando de um presidente argentino civil não peronista democraticamente eleito que ocorrera na data prevista na sua posse se dera em 1928.

Depois dos golpes contra Frondizi e Illia, da saída apressada de Alfonsín em um país devastado pela hiperinflação em 1989 e do colapso do governo De la Rúa em 2001, com sua fuga de helicóptero diante de uma praça de Maio enfurecida que ameaçava tomar a Casa Rosada, o grande feito de Macri foi concluir o mandato, apesar das cassandras do "clube do helicóptero" que vaticinavam para ele o mesmo destino que o de De la Rúa.

Como foi difícil chegar ao fim! Isso com um presidente que tinha sido duas vezes prefeito da maior cidade do país, comandava um partido nacional e estava alicerçado em uma coalizão com uma força respeitável.

Com esse retrospecto e dado que Milei tinha uma base de apoio de apenas 38 deputados em 257, nenhum governador nas 24 províncias do país e nenhum apoio até então relevante nas bases de sustentação tradicionais na Argentina —os sindicatos, o campo, os militares, a Igreja etc.— era compreensível que não poucos analistas temessem uma rápida debacle do presidente sem base partidária.

Acresça-se a isso uma inflação que, nos 12 meses antes de ele assumir, estava em torno de 160% e ficarão claras as razões do ceticismo acerca das suas chances que reinava entre muitos analistas na sua posse, em dezembro. Foi nesse contexto que "Pepe" Albistur, homem de negócios amigo de Alberto Fernández e esposo de uma conhecida política peronista, no verão, na praia, disse às gargalhadas sua frase golpista de que o governo Milei era "como a Páscoa: não sabemos se cai em março ou em abril".

O "lado cheio do copo"

Passado maio e com Milei firme, o governo pode exibir quatro trunfos. O primeiro é poder afirmar, como na velha frase do teatro espanhol, que "os mortos que você mata estão bem de saúde". O segundo é ter exibido um superávit nominal das contas públicas nos primeiros quatro meses do ano. O terceiro era, até meados de maio, um dólar paralelo "planchado" (parado) em níveis similares aos de dezembro, acompanhado de outros indicadores financeiros positivos, como uma forte queda do risco-país, embora no final de maio tenham ocorrido solavancos. Quarto, o mais importante, uma trajetória declinante da inflação mensal nos primeiros cinco meses do ano.

Com efeito, a inflação de dezembro, de estonteantes 25%, foi sucedida por taxas de 21%, 13%, 11% e 9% nos meses de janeiro a abril, respectivamente, com nova queda esperada para o intervalo entre 4% e 5% em maio. Para um país no qual, em outros episódios de desvalorização inicial da taxa de câmbio oficial, a inflação tinha tido uma trajetória em espiral, escalando rumo a taxas estratosféricas, é uma diferença e tanto.

A explicação de que o estrito controle fiscal é o que está determinando o sucesso da política atual vis-à-vis experiências anteriores pareceria, aparentemente, convincente. Cabe adicionar a isso algo que me foi dito, elogiosamente, por um amigo argentino: "Milei conseguiu a proeza de instalar o debate sobre a necessidade de combater o déficit público em um nível que agora virou tema de conversa de barbearia".

Problemas acumulados

"Eppur si muove" (entretanto, se move), disse Galileu, premido a declarar que a Terra era o centro do universo em torno do qual girava todo o resto. "Eppur non si muove", poderia dizer um crítico daqueles dados, apontando para os sinais de uma economia estagnada.

A rigor, seria uma crítica light, pois longe de "non si muovere", a produção argentina despencou —o outro lado da moeda da desinflação. A indústria e a construção mostraram recentemente quedas interanuais frente aos mesmos meses de 2023 da ordem de 20% e 40%. São níveis de contração dignos de pandemia.

Claro que os serviços servem como elemento amortecedor, mas mesmo assim o índice dessazonalizado da estimativa mensal de atividade econômica exibiu em março a sua sétima queda consecutiva. Mais ainda: essa variável, uma prévia do PIB, indica que o "carry-over" para o ano, ou seja, o número anual na hipótese do último dado disponível se conservar constante até dezembro, será de quase 5% negativos.

Isso em um ano em que a recuperação intensa da agricultura, após a pior seca dos últimos cem anos, deveria augurar um número bom, como no Brasil em 2023, puxado pela taxa fortemente positiva do agro.

A recessão é apenas o primeiro ponto de uma longa lista de problemas e dúvidas que vão se acumulando. A seguir, um resumo deles.

(1) Atraso cambial. Depois da maxidesvalorização inicial, o Banco Central instrumentalizou uma desvalorização nominal de 2% ao mês. É verdade que a inflação cedeu muito mais rapidamente que todos pensavam, mas o fato é que, dado o salto da taxa real no primeiro dia de governo, desde então o câmbio nominal oficial se desvalorizou 2% todos os meses, contra uma inflação que começou em 25% e depois foi caindo, mas em níveis ainda altos.

Isso significa que o câmbio real sofreu uma forte apreciação posterior ao dia da posse, processo que continuará nos próximos meses. Essa é uma história que tanto a Argentina quanto o Brasil conhecem muito —quando as autoridades se enamoram do câmbio apreciado— e que, em geral, não acaba bem. Como diz o economista Roberto Cachanosky, "na Argentina ter um atraso do câmbio é como o filme 'Casablanca': você pode assistir dez vezes, mas o final será sempre o mesmo".

(2) Pedaladas fiscais. É verdade que o governo conseguiu um superávit fiscal no primeiro quadrimestre do ano, mas ele obteve esse resultado não só às custas de uma violenta queda do valor real de todas as aposentadorias —inclusive as de menor valor— como também com diversos calotes, deixando de transferir recursos às províncias com interpretações de legalidade duvidosa ou "pedalando" despesas com entidades privadas, o que não é muito elegante para um governo que defende o "laissez faire".

A essas empresas, o ministro da Economia, Luis Caputo, utilizando o método do "devo, não nego, pago quando puder", impingiu a quitação da dívida acumulada já no governo atual mediante a entrega de títulos cujo valor de mercado é de 50% do valor de face —o que o jargão financeiro qualifica como "default". É por isso que as dúvidas sobre a sustentabilidade fiscal não conseguem ser dissipadas.

(3) Tolerância social. Que o governo conseguiu um grau de aceitação inimaginável no passado é algo que até os seus críticos reconhecem. A dúvida de todo o espectro partidário é: até quando?

Toda política, para ser bem-sucedida, precisa de dois elementos: uma temporalidade dos eventuais sacrifícios e uma perspectiva de futuro. Um aposentado cujo valor real dos rendimentos caiu 30% pode aguentar se tiver a confiança de que verá um país melhor, mas não conservará a docilidade se um ano depois não tiver uma percepção de progresso.

Isso vale para toda a lista de prejudicados pelo ajuste: indivíduos que recebiam "planos sociales", assalariados, funcionários públicos, micro e pequenas empresas etc. "O pior inimigo de Milei é o tempo", diz o consultor Gustavo Córdoba.

(4) Percalços legislativos. Até maio, o governo Milei foi composto de indivíduos com enorme estridência, mas sem a mesma habilidade para transformar sua contundência verbal em leis. Parece um time que opera com dez atacantes trombadores, com um treinador que esqueceu de escalar o meio-campo e a defesa.

(5) Gestão. Um governo não existe apenas para reduzir a inflação. Ele precisa mostrar outros resultados. Nesse sentido, a nova administração se aproxima da indigência. Nas palavras do jornalista Jorge Fernández Díaz, a inépcia passa a impressão de que ao governo "se le escapa la tortuga".

É um caos administrativo, com gente amadora nos mais diversos órgãos, ocupados por pessoas que não têm a menor ideia de como funciona o setor público. Só na semana passada, faltou gás veicular por imperícia administrativa e descobriu-se que o governo não estava distribuindo comida para os "comedores populares" estocada havia meses e a ponto de vencer.

À medida que tais deficiências ficam evidentes, a paciência com os erros tende a diminuir. Macri já anda dizendo: "Temos gente competente, mas ele só coloca os 'boludos'".

Tentando ver na bruma

Milei se elegeu com a bandeira da dolarização, que não foi colocada em prática por falta de matéria-prima (dólares). É claro que ter uma inflação mensal de 4% é melhor que uma de 25%, mas 4% ao mês dá 60% ao ano —e Milei não foi eleito para ter como conquista a segunda maior inflação da América Latina depois da venezuelana.

A Argentina está, há anos, sob a vigência do "cepo", um conjunto de restrições à operação com dólares que procura evitar um estouro da divisa norte-americana. Sair do "cepo" é a prescrição de dez entre dez economistas como base de qualquer política destinada a normalizar as relações com o mundo. Ao mesmo tempo, esse movimento precisa ser bem administrado, porque, se for mal calibrado, o dólar pode disparar e o governo "ir para o saco".

Ou seja, as restrições só poderão ser flexibilizadas quando o governo tiver confiança de que, no dia da flexibilização, não acontecerá nada especial com o dólar. Ao mesmo tempo, com "cepo" é muito difícil haver um boom de investimentos. Nos EUA, diz-se que essa é uma situação do tipo "catch 22". Por aqui, "se correr o bicho pega, se ficar o bicho come". Por enquanto, o "cepo" continua.

Avolumam-se os indícios de que o governo começa a se preparar para ir para o tudo ou nada nas eleições para o Congresso em 2025, quando o partido de Milei renovará apenas 2 cadeiras em 257, já que em 2021 o movimento que levou ele à Presidência estava apenas no começo. Milei aspira fazer tábula rasa, eleger uma grande bancada e ampliar seu grau de liberdade.

É uma estratégia que envolve riscos. Primeiro, porque se o seu crescimento se der às custas do partido do Macri, vai trocar seis por meia dúzia, uma vez que esse partido já vem votando com o governo. Segundo, porque em 2021 o peronismo fez uma eleição ruim, sendo pouco provável que perca muitas cadeiras na renovação parcial de 2025 comparativamente às que teve quatro anos antes. Terceiro, porque há dúvidas sobre até que ponto Milei conseguirá conservar o "momentum" se, até lá, a população não tiver tido uma percepção clara de aumento do emprego e do salário real.

Enquanto isso, Milei anda pelo mundo. Se encontra com Trump e diz que torce para ele reconquistar a Presidência —imagine o leitor a graça que isso causa a Biden—, vai à Espanha para um evento do Vox e diz que a esposa de Pedro Sánchez é corrupta, recebe uma premiação em Israel, esteve com Elon Musk etc.

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Javier Milei e Elon Musk na fábrica da Tesla no Texas - elonmusk no X/Reprodução

Na globosfera da extrema direita mundial, é um popstar. Como mais de um analista notou, "ele parece mais interessado em ter sua imagem projetada para fora que em resolver os problemas do dia a dia dos argentinos".

Para um futuro indefinido, o governo acena com uma competição entre moedas, um mecanismo que todos entendem como uma forma não declarada de dolarização, mas com contornos por enquanto indefinidos. Não fica claro como evitaria um salto da cotação cambial, se houver livre flutuação.

Se Milei tiver sucesso em uma convertibilidade 2.0, seu partido não só ganhará as eleições de meio de mandato como ele provavelmente será reeleito. Entretanto, se o tempo passar, a inflação não se aproximar de um dígito anual e não houver a recuperação "em V" com a qual ele vem acenando, a fila de gente pronta para esperar por ele "na virada da esquina", no Congresso e no exterior, dará voltas no quarteirão.

Milei age como se estivesse condenado ao sucesso. Se estiver certo, seus inimigos políticos estarão liquidados. Se estiver errado, terá que comer vidro quando a maré política virar.

No Brasil, já vivemos a experiência de quem fazia política levando a plateia ao delírio ao xingar os outros. Não se revelou a melhor estratégia para vencer a eleição seguinte. Milei vai pelo mesmo caminho, com um detalhe: ele carece de um centrão para socorrê-lo, se e quando as pesquisas deixarem de lhe sorrir. Restará ver se, nesse caso, as "fuerzas del cielo" que ele tanto cita acorrerão em sua defesa.

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