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Livro conta como medicina moldou obra de García Márquez

Nobel de Literatura colombiano espalhou referências a doenças, remédios, tratamentos e médicos em toda a sua obra

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Sylvia Colombo

Historiadora e jornalista especializada em América Latina, foi correspondente da Folha em Londres e em Buenos Aires, onde vive.

Buenos Aires

[RESUMO] Pesquisador espanhol detalha em livro a obsessão de Gabriel García Márquez pela medicina. O escritor colombiano, Nobel de Literatura, pesquisou a respeito de doenças e remédios e consultou médicos de diversas especialidades para enriquecer as tramas de seus livros, como o clássico "Cem Anos de Solidão".

"Los Médicos de Macondo - La Medicina en la Obra Literária de Gabriel García Márquez", recém-lançado em edição internacional (em espanhol, pela Fundación Gabo), permite uma completa reviravolta na interpretação da obra do escritor colombiano (1927-2014). Todos os seus textos foram vasculhados pelo prisma da medicina, tarefa empreendida pelo espanhol J.V. Fernández de la Gala.

Como toda obra de arte, o livro possui várias camadas. É possível ficar apenas na premissa original, ou seja, a busca obcecada, que consumiu sete anos de investigação, a todas as referências à medicina na obra de Gabo, apelido do ganhador do Nobel de Literatura em 1982.

Há, contudo, outras leituras interessantes. Fernández de la Gala, que é médico forense, nos traz uma lente para conhecer a conjuntura histórica e as características sociais da Colômbia por meio de remédios, procedimentos médicos, métodos de diagnósticos e recursos operatórios.

O escritor colombiano Gabriel García Márquez, Nobel de Literatura, trabalha em seu escritório, em 2006 - Peter Badge/Papers Credit Harry Ransom Center

"Sempre li Gabo como leitor apaixonado, até que comecei a notar que suas descrições sobre doenças eram de uma minuciosidade e de um detalhismo que apenas alguém da área poderia conhecer", conta Fernández de la Gala à Folha.

Ele decidiu, então, perguntar ao filho do escritor, Gonzalo García Barcha, se o pai tinha algum assessor para temas médicos. E a resposta foi: "Meu pai não tinha um, mas toda uma equipe de assessores médicos que cobriam todas as especialidades: a psiquiatria, a ginecologia, a medicina forense e outras".

Nas páginas do livro vamos percebendo que, de fato, sem a assessoria médica, muitos diagnósticos, dores, mortes, sangramentos e até extrações de dente seriam contados de modo bem menos colorido.

Fernández de la Gal pôde conversar com alguns desses conselheiros médicos e, em outros casos, com seus descendentes, o que lhe permitiu localizar mensagens com as muitas perguntas de Gabo. Por exemplo: "qual a primeira reação visível de um ferimento de arma branca?", "o que sente alguém que toma tal chá?", "como é o aspecto físico de uma pessoa que se intoxica ao longo da vida com tal ou tal substância?", "qual o cheiro do cadáver de alguém que morreu envenenado por cianureto?"

Uma das cenas a que Fernández de la Gala mais se dedicou, por exemplo, foi a da autópsia de Santiago Nasar, que está no livro do médico desenhada em três perspectivas (frente, verso e de modo aberto), com as diferentes incisões por facas dos assassinos descritas por Gabo em "Crônica de Uma Morte Anunciada" (1981). "Na literatura mundial, não há nenhum informe de autópsia incluído na história", afirma.

Santiago Nasar é um jovem de 21 anos condenado por supostamente "desonrar" Ángela Vicario, uma moça do povoado colombiano de Sucre, noites antes de seu casamento. Na versão para o cinema, Nasar foi encarnado por Anthony Delon, filho do ator francês morto recentemente.

Mesmo com um título que já anuncia o seu final, a história é revisitada em todos os seus detalhes e por meio do que sentiram praticamente todos os habitantes do povoado, que sabiam que o caso teria um fim trágico.

Ao dar-se conta de que Vicário não havia chegado virgem à cama matrimonial, o marido enfurecido a devolve à casa de seus pais. Seus dois irmãos, Pedro e Paulo, saem a buscar Nasar. O assassinato tem a cumplicidade do povoado inteiro.

Por meio da descrição literária da cena de violência, e tomando como referência os facões que se usavam na época, Fernández de la Gala reconstrói as feridas, o tempo de sangramento de cada uma e, por fim, quais foram as fatais.

Mas, perguntará o leigo, qual a serventia de saber tal informação? A conclusão nos faz ver a genialidade de Gabo por outro prisma, e novamente, a questionar o rótulo de "realismo mágico" de sua obra. Conhecer exatamente como reagia o corpo humano a armas, remédios, sentimentos e hábitos era uma das obsessões do escritor. Poderíamos dizer, talvez, que o mágico se produzia a partir do realismo, não o contrário. Ou, como o próprio Gabo afirmava, "nada do que está em meus livros é pura invenção".

As 650 páginas da obra de Fernández de la Gala estão repletas de dores de dente, suicídios, descrições detalhadas de mortes de personagens.

Na agônica morte de Simón Bolívar, contada ao longo de "O General em Seu Labirinto" (1989), a medicina está em, praticamente, todas as páginas. O livro trata da longa e última viagem que Bolívar fez, entre maio e dezembro de 1830, desde Bogotá, com destino a Cartagena, na costa caribenha.

Sua intenção, a partir dali, era embarcar para a Europa e terminar seus dias ali, destino ao qual nunca chegou. A tuberculose o acompanhou desde o primeiro dia e vai piorando devido à insistência de Bolívar em não escutar médicos tradicionais e de não querer se cuidar.

Bolívar havia passado sua curta e intensa vida (1783-1830) comandando batalhas do chamado Exército Libertador contra os espanhóis, liberando o que hoje são os territórios de Colômbia, Venezuela, Equador, Peru e Bolívia.

Ao longo da viagem, levava a bagagem de uma enorme frustração, as lutas fratricidas que vinham ocorrendo entre os países que ele havia libertado, causando rompimentos políticos, assassinatos de ex-aliados e a diluição de seu projeto de uma América livre e unificada. Nos povoados a que chegava, era homenageado por muitos, mas também vigiado e ameaçado de morte.

O romance de Gabo traz longas discussões, entre um Bolívar febril e interlocutores que havia conhecido em outras épocas nas Américas, sobre seu legado de lutas.

Fernández de la Gala conta em "Los Médicos de Macondo" a história do francês Alejandro Próspero Révérend, que recebeu Bolívar à beira da morte em uma noite de dezembro de 1830, no hospital da cidade costeira de Santa Marta.

O próprio Révérend já era um personagem singular —sua árvore genealógica está reproduzida no livro. Em 1820, quando era estudante de medicina, teve de deixar a França como refugiado, uma vez que defendia ideais liberais durante um momento de restauração conservadora com a dinastia Bourbon. Passou pela Jamaica, mas acabou optando por radicar-se no litoral da Colômbia.

Quando Bolívar chegou a seus cuidados, havia pouco que pudesse ser feito, mas Révérend o acolheu de modo carinhoso, sentindo-se honrado. Acompanhou-o até o fim com frases de otimismo, sem cobrar pelo trabalho. Depois, também produziu uma autópsia e usou o caso de Bolívar como referência para vários estudos médicos a respeito da tuberculose.

Ao longo da viagem, os sintomas do que sentia Bolívar atravessaram suas ações e seus pensamentos. Ele se mantinha na base de infusões, chás, vomitivos e métodos mais antigos para baixar a febre. Nesses meses, surge, quase que também como um médico, o personagem histórico de José Palacios.

Tendo nascido escravo nas terras dos pais de Bolívar, perto de Caracas (Venezuela), Palacios foi libertado ainda jovem. Transformou-se em uma das figuras mais próximas do revolucionário, seu assistente pessoal, conselheiro e, também, aquele que lhe servia as bebidas, lhe preparava os banhos quentes e não deixava que se resfriasse durante as noites dormidas nos barcos ou a céu aberto.

Uma das referências do jovem Gabo, como ele narrou no autobiográfico "Viver para Contar" (2002), era a farmácia da pequena cidade de Aracataca, no interior da Colômbia, onde nasceu e inspirou-se para criar a Macondo do clássico "Cem Anos de Solidão" (1967). Ali trabalhava o doutor Alfredo Barbosa, que serviu de modelo ao médico homônimo de "A Revoada" (1955).

O pequeno Gabo se encantava com os cheiros dos remédios, do ambiente farmacêutico e com os pequenos frascos em que os elementos eram vendidos. Era uma simples farmácia de esquina, que ainda hoje existe, localizada diante da Casa Museu Gabriel García Márquez —a antiga casa dos avós de Gabo, que o criaram em seus primeiros anos.

"As farmácias fascinavam Gabo e estão presentes em quase todas as suas obras, sua ficção está impregnada do cheiro de balsâmico dos velhos vidrinhos e embalagens de medicamentos da época", diz Fernández de la Gala.

Também da infância, Gabo trouxe as receitas que escutava dos indígenas locais para diferentes tipos de doenças e as crenças de cura deles. A personagem Úrsula, matriarca de "Cem Anos de Solidão", entre outras coisas, era conhecida na região também pelos remédios caseiros que preparava em sua cozinha, misturando tradições locais.

Os livros de Gabo estão cheios de personagens ligados à medicina, como dentistas, farmacêuticos, enfermeiros, curandeiros indígenas e verdadeiros sábios das ciências deste e de outros mundos, como Melquíades de "Cem Anos de Solidão".

Um dos mais famosos é Juvenal Urbino, um dos principais personagens de "O Amor nos Tempos do Cólera" (1985). Ele se casa com Fermina Daza, impedindo a relação desta com Florentino Ariza. Urbino era o retrato da elite de Cartagena: fizera seus estudos em Paris, era poderoso e empreendedor.

Não apenas exercia a medicina como também se preocupava com as obras sanitárias da cidade, como a cobertura do mercado público, para evitar a disseminação de doenças, o primeiro aqueduto da cidade e outras, que lhe deram grande autoridade.

Pois Juvenal Urbino também existiu, e seu verdadeiro nome era Enrique de la Vega. Gabo o conheceu bastante na época em que viveu na cidade costeira, no início de sua carreira como jornalista.

Os filhos do escritor contaram depois a Fernández de la Gala que ficaram surpreendidos com a quantidade de peculiaridades sobre o pai que viram descritas o romance. De la Vega era um dos médicos a quem Gabo também recorria para indagações científicas.

"Los Médicos de Macondo" conta, ainda, de um famoso psiquiatra colombiano a quem Gabo contatou para fazer a seguinte confissão: "Doutor, tenho que matar alguém". O médico levou um susto, respondendo que não conhecia nenhum matador de aluguel. Mas não era nada disso, claro —Gabo queria indagar sobre como o personagem se sentiria ou se comportaria antes e depois de um assassinato.

Para Fernández de la Gala, o Nobel colombiano, no que diz respeito à medicina, possui paralelos com o criador de Sherlock Holmes, o inglês Arthur Conan Doyle, médico e escritor, que parecia ver na arte um caminho "sanar sua própria curiosidade" sobre o ser humano.

"A pesquisa médica que Gabo fez para suas novelas faz parte da linguagem meio encantada que ele usa. Não é um trabalho que apareça à primeira vista, mas que é introduzida com uma sonoridade, hoje obsoleta, de termos, de expressões, que fazem muita diferença. E para quem lê por meio da perspectiva da medicina, o que vai se configurando é um quadro muito preciso da realidade humana", conclui Fernández de la Gala.

Los Médicos de Macondo - La Medicina en la Obra Literária de Gabriel García Márquez

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