Caetano explica a evangélicos por que se reaproximou da religião

Em entrevista, artista comenta motivos que o levaram a cantar a música gospel 'Deus Cuida de Mim'

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Juliano Spyer

Antropólogo, autor de "Povo de Deus" (Geração 2020), criador do Observatório Evangélico e sócio da consultoria Nosotros.

[RESUMO] Em entrevista a um grupo variado de evangélicos, Caetano Veloso comenta a inclusão da música gospel ‘Deus Cuida de Mim’ em sua atual turnê e o aumento exponencial de evangélicos no Brasil, com vastos impactos políticos e sociais. Fala também da formação católica na infância, do ateísmo na fase adulta e de por que vem se reaproximando da religião nos últimos anos.

Tudo corria conforme o esperado na estreia da turnê Caetano & Bethânia no início de agosto no Rio. Rapidamente artistas e plateia entram em sintonia, cantando juntos as músicas famosas e também as menos conhecidas. Apesar de ser uma arena para 20 mil pessoas, o clima é de cumplicidade, como se todos ali se conhecessem.

Até que Caetano Veloso fala pela primeira vez na noite: "O fato de vir crescendo enormemente o número de evangélicos no Brasil é uma coisa que tem imensa importância para mim. Por isso, vou cantar o amado louvor do pastor Kleber Lucas, 'Deus Cuida de Mim'."

O resultado do anúncio não é exatamente um "climão"; talvez seja mais preciso falar em choque de expectativas. Insinuações de vaias, alguns aplausos e, em seguida, um silêncio nervoso acompanharam a canção, criando uma atmosfera que poderia sugerir solenidade, mas traduzia o estranhamento da multidão de fãs.

Caetano Veloso em imagem do fotógrafo Bob Wolfenson em 2022, na série Retratos da Democracia
Caetano Veloso em imagem do fotógrafo Bob Wolfenson em 2022, na série Retratos da Democracia - Bob Wolfenson

A conversa a seguir tenta entender esse trecho do show que viaja pelo Brasil. Por que o artista mais influente e ativo de sua geração incluiu um hit gospel (e dá visibilidade a isso) naquela que pode ser sua última turnê?

Podemos chamar o que vem a seguir de uma "entrevista polifônica". Os autores das perguntas são evangélicos de tradições, gerações e denominações variadas. Eles formularam as questões individualmente, reagindo à repercussão que o caso tomou.

A assembleiana Marina Silva, ministra do Meio Ambiente, participa ao lado do pastor batista Valdir Steuernagel, da historiadora (e adventista) Romilda Motta, da estrela gospel (também adventista) Leonardo Gonçalves. Vários outros também colaboraram, de evangélicos históricos a pentecostais.

A conversa atravessa três eixos: 1) a relação de Caetano com o pastor Kleber Lucas, levando à inclusão da faixa na turnê; 2) as percepções do artista sobre o tema da espiritualidade, da criação dele na Bahia, passando pelo temor da morte desde a infância, até a conversão de seus dois filhos mais novos ao cristianismo evangélico; e 3) o Brasil em transe também por causa do crescimento acelerado de evangélicos, com amplos reflexos políticos e comportamentais.

Por fim, Caetano debate sobre religião, política e arte com Marina Silva.

DEUS CUIDA DE MIM

Daniel Guanaes
pastor

Antes de cantar "Deus Cuida de Mim" na estreia da nova turnê, você mencionou que "o crescimento dos evangélicos é uma coisa que tem imensa importância para você". Qual é essa importância? Do que você está falando?
Parece-me absurdo que, para alguém, tal fato não tenha importância. No meu caso, isso se mostra em forma de respeito a um fenômeno social de grande magnitude. Para outros pode ser algo que mereça oposição. Ou desprezo.

Leonardo Gonçalves
cantor

O seu trabalho é admirado internacionalmente. Já cantou no Oscar e no Grammy, mas também é um vanguardista que não teve medo de se posicionar, mesmo quando isso desagradava as elites culturais. Fez isso com axé, forró universitário e funk. Esse seu aceno para a música evangélica deve ser compreendido como uma continuidade desse mesmo movimento ou há uma motivação diferente para cantar "Deus Cuida de Mim" nessa nova turnê?
Basicamente é um movimento dentro de mim da mesma natureza das outras atitudes críticas que você cita. Mas é claro que, dado o tema, o caso de "Deus Cuida de Mim" leva a dimensões mais sérias. Bethânia e eu já tínhamos definido quase todo o repertório do show. Perto da estreia, recebi a autobiografia de Kleber Lucas e fiquei tão tocado que decidi incluir a canção/louvor no show.

Romilda Motta
historiadora

Tocar essa canção é uma maneira de propor um diálogo respeitoso entre esses lados que estão tão polarizados?
Sim.

Marília de Camargo César
jornalista

Como você reage às afirmações de que estaria sendo oportunista ao usar uma canção gospel para ganhar audiência?
Essa é a única canção que não recebe aplausos entusiasmados. E isso não me surpreende. Para a maioria do público que vai ver Bethânia comigo, o interesse pelo assunto "igrejas evangélicas" não é algo esperado nem desejado. Mas eu sei que pode criar conversas que não costumam se dar.

Valdir Steuernagel
pastor

Sou um velho pastor e a experiência com Deus é fator chave em minha vida, me sintonizo muito com você cantando "Deus Cuida de Mim". Para mim, encontrar-me com o Jesus dos evangelhos é a expressão mais bonita e intensa da experiência com o cuidado de Deus. Como é isso em sua vida?
Quando canto uma canção, a entrega ao espírito dela é decisão tomada sem pensar.

CATÓLICOS DE AXÉ E NEOPENTECOSTAIS

Raphael Khalil
antropólogo

Todas as madrugadas minha mãe acorda mais cedo para orar, meditar e fazer um culto pessoal. Nesse momento ela escuta a sua versão de "Deus Cuida de Mim", junto com hinos mais antigos e tradicionais da igreja e outros louvores gospel. Você em algum momento imaginou que uma música sua seria usada em momentos assim?
Na estreia do show, no Rio, tinha um grupo de jovens que sabiam todas as letras de todas as nossas músicas. Quando cantei o louvor de Kleber, uma delas demonstrou repúdio total. Não foi agressiva. E era uma menina bonita. Separada dela por umas três pessoas estava outra jovem que, sem ter reagido às expressões de repúdio da primeira, cantou todos os versos de "Deus Cuida de Mim", de modo discreto e muito concentradamente. Vi ali o esboço de convivência e mesmo algum diálogo de que as pessoas deveriam ser capazes de ter no Brasil.

Alexandre Gonçalves
pastor

O que você crê sobre espiritualidade?
Fui criado numa casa católica e, embora fosse me sentindo cada vez mais materialista, acompanhei todos os rituais de missas e novenas. Tenho uma fotografia da Igreja de Nossa Senhora da Purificação em todas as casas em que moro ou morei. Minha mãe as pôs lá.

Acho que hoje sou um ex-antirreligioso. A expressão "católico de axé" aparece numa descrição dos brasileiros na música que abre meu mais recente álbum, chamado "Meu Coco". Ela é seguida de "e neo-pentecostal".

Tenho profunda e respeitosa ligação com o candomblé. Tratava-se de interesse social e histórico: a chegada e a presença dos negros africanos aqui no extremo Ocidente é aspecto que me interessa muito desde a infância.

Meu pai era mulato, nascido em 1901. Hoje entendo que a experiência humana não pode ser pensada sem a dimensão religiosa. Gosto muito do pensador Roberto Mangabeira por ele nitidamente pensar a vida humana levando isso em conta.

Valdinei Ferreira
sociólogo

Qual é a sua experiência com a leitura da Bíblia? Há algum livro da Bíblia, personagem ou história que te toca mais?
Católicos não crescem lendo a Bíblia. Ouvíamos as missas em latim e líamos catecismos. Aos 8 anos, vi "Sansão e Dalila" (1949), o filme de Cecil B. DeMille, e fiquei inteiramente apaixonado. Quando cresci, procurei uma Bíblia para ler esse assunto. Mas comecei pelo Gênesis e fiquei fascinado. Depois de reler muito, pulei para Sansão. Gostei do estilo do livro. Voltei várias vezes a trechos que me fascinavam.

Quando meu segundo filho foi crescendo, ele e o caçula se ligaram à igreja evangélica (há um aspecto geracional que não podemos perder de vista). Meu filho mais velho esteve sempre ligado a aspectos de várias religiões —e discordava de meu materialismo. Ele ama as religiões orientais, foi sempre ligado ao hinduísmo e ama as religiões de matriz africana.

Os dois mais novos encontraram-se com o evangelismo. O caçula de todos não seguiu frequentando a igreja, mas o do meio, sim. Aí eu quis ler a Bíblia toda. E assim fiz.

O que é a morte para você?
É aquilo que temo desde a infância.

BRASIL, POLÍTICA E RELIGIÃO

Valdir Steuernagel
pastor

Os cristãos se percebem "enquadrados" por um progressismo patrulhador, expresso especialmente pela chamada "ideologia de gênero". Eles têm razão ou estão vendo fantasmas?
Não é a chamada "ideologia de gênero" que vai representar força social maior do que a adesão ao neopentecostalismo. Mas há várias formas de antirreligiosidade.

Por exemplo: eu mesmo já pensei que o fato de o progresso material ter elevado a expectativa de vida é uma prova de que o pensamento científico se põe acima das religiões. Percebi que essa maneira de pensar é limitadora. O pensador Roberto Mangabeira demonstra entender isso e escreve com coragem.

Temos visto a "igreja evangélica" crescer consistentemente nas últimas décadas. Enquanto a base dessas igrejas é composta majoritariamente de pobres, mulheres e pessoas negras, há uma elite de líderes que parecem famintos de poder. Qual seria o seu conselho para eles?
Não me vejo autorizado a dar conselho a religiosos. Mas meu interesse pelo fenômeno se deve a essa adesão notável de mulheres e negros e pobres. Nada à chamada "bancada evangélica".

Romilda Motta
historiadora

Diante do atual contexto, que às vezes parece de posições irreconciliáveis, você vê possibilidades de estabelecer um ambiente de maior entendimento, respeito mútuo, tolerância entre mundo religioso conservador, muitas vezes refratário às religiões e crenças não hegemônicas?
Não foi um mero acaso que me aproximou de Kleber Lucas. Ele tinha participado, junto a outros líderes religiosos, da defesa de um terreiro de candomblé aqui no Rio. O jornalista Chico Regueira nos apresentou. Daí nasceu a sugestão de regravarmos juntos "Deus Cuida de Mim". E, como já disse, voltei a cantar esse louvor depois de ler sua autobiografia.

VIRADA NOS ATOS DE FÉ

Marina Silva
ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima

Como você separa os erros da religião cristã da grandeza do amor de Jesus para com a humanidade?
Crescendo numa família católica, fui batizado, fiz primeira comunhão e segui as missas, novenas e procissões, mas fui vendo alguma hipocrisia por parte de padres e autoridades eclesiásticas —e, é claro, também por parte de "fiéis".

Tornei-me um adulto indiferente à dimensão religiosa. Tendo crescido ateu, na virada para o tropicalismo, que queria pôr tudo em discussão, gritei num festival de TV: "Deus está solto". Era uma versão desabusada do dito popular "o diabo está solto".

Eu cantava a canção "É Proibido Proibir". O grito significava mesmo uma liberação da religiosidade, que se mantinha reprimida em tantos de nós. A forma como Jesus me aparecia no que é narrado nos Evangelhos, no entanto, foi e é fascinante para mim.

Como você vê a inversão feita por Jesus: em lugar de um Deus que exige sacrifícios das pessoas para poder atender às necessidades dele próprio, um Deus que se sacrifica no lugar das pessoas, para depois ele próprio atender às necessidades delas?
É uma bela virada na estrutura dos atos de fé. Mas eu não me tornei religioso. Apenas acho que o que a negação da dimensão religiosa mais faz é diminuir nossa capacidade de ver a vida, a existência do que quer que seja.

Como a arte e a espiritualidade podem ajudar a recuperar a capacidade transformadora da política, tirando-a do lugar de repetição e estagnação a que está submetida?
Você é um exemplo de espiritualidade se esforçando para fazer a política se mover. A arte também se vira para superar a estagnação. O olhar para a dimensão transcendente é necessário para que os movimentos da política produzam história.

Maria Bethânia e Caetano Veloso durante show da turnê que fazem juntos, no Rio - Lorando Labbe/Fotoarena/Folhapress

O apóstolo Paulo, no livro de Romanos, capítulo 12, versículo 2, diz: "E não sede conformados com este mundo, mas sede transformados pela renovação do vosso entendimento, para que experimenteis qual seja a boa, agradável, e perfeita vontade de Deus". O que te levou a transformar seu entendimento e sua postura em relação à fé cristã evangélica, mesmo com tantos estereótipos e preconceitos da religião para com a arte e da arte para com a religião?
Nunca me identifiquei com preconceitos religiosos ou antirreligiosos. As palavras de Paulo que você cita são extraordinariamente bonitas. "A boa, agradável e perfeita vontade de Deus." Nessa tradução, a escolha da palavra "agradável" soa muito forte.

Não sou um teólogo nem posso dizer que passei por uma mudança em relação ao cristianismo dito evangélico. Apenas fui vendo, pouco a pouco, o quanto ele se tornou presente no Brasil. Por isso canto o louvor de Kleber Lucas na turnê com Bethânia.

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