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Relançamentos de Carolina de Jesus mostram tensão com jornalista que a revelou

Passagens inéditas de diários alimentam críticas a papel de Audálio Dantas como primeiro editor da escritora

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A escritora Carolina Maria de Jesus Instituto Moreira Salle/Reprodução

Ricardo Balthazar
Ricardo Balthazar

Na Folha de 2010 a 2022, foi editor de Política e Mercado e repórter especial.

[RESUMO] Relançamento de obras de Carolina Maria de Jesus expõe os atritos da escritora com Audálio Dantas, jornalista que a revelou. Trechos inéditos de diários da autora motivam novas críticas de familiares e pesquisadores ao papel de Dantas em sua trajetória.

A escritora Carolina Maria de Jesus estava furiosa no início de 1961. "É que eu percibi que eles queriam expoliar-me! Que sugeira! Eu dou lucro a imprensa. Era para comprar uma casa limpa para mim porque eu não tenho tempo de limpar", escreveu em seus diários, no dia 12 de janeiro.

Fazia poucos dias que mudara com os três filhos para uma casa que tinha comprado em Santana, na zona norte de São Paulo. Não conseguia se livrar dos móveis dos antigos moradores, que pediam mais dinheiro para levar aquilo embora, e o lugar estava infestado de pulgas. Carolina pensava em sumir.

Estava irritada também com o jornalista Audálio Dantas, que a conhecera numa favela da capital dois anos antes e convencera uma editora a publicar "Quarto de Despejo", seu primeiro livro. Ele ajudava a escritora a cuidar do seu dinheiro, indicara a casa que ela comprou e estava sempre por perto.

Carolina se dizia acorrentada. "Varias pessôas perçebeu que o Audalio colocou‑me num élo", escreveu em 13 de fevereiro. "Ate as minhas cartas ele abre. Isto é ousadia. Isto é falta de iducação. Começo a desgostar. Quando o branco auxilia o preto transforma o desgraçado em escravo."

O jornalista a incentivava a continuar escrevendo seus diários, com o objetivo de reunir material para um segundo livro que se chamaria "Casa de Alvenaria", mas ela estava cansada. "Ele anula todos desejos que apresento-lhe", anotou. Dez dias depois, mandou entregar uma chave a Audálio. "Quando ele quizer entrar na minha casa na minha ausência pode entrar."

Mulher negra, vestida com camisa florida, em primeiro plano olhando a câmera com firmeza. Há outras quatro pessoas ao fundo, uma mulher, um adolescente e duas meninas, todos negros, mas pouco nítidos.
A escritora Carolina Maria de Jesus nos anos 1960, quando publicou "Quarto de Despejo" e "Casa de Alvenaria" - Instituto Moreira Salles/Reprodução

Episódios como esse, em que os dois amigos brigavam num dia e se acertavam no outro, foram comuns nos anos que se seguiram à publicação dos diários que revelaram ao mundo a potência da literatura de Carolina. Muitas desavenças foram públicas, e algumas até transpareceram nas primeiras edições dos seus livros, organizadas pelo próprio Audálio Dantas.

Mas as tensões existentes entre eles nunca foram tão expostas como agora. Com o relançamento da obra da escritora pela Companhia das Letras, passagens dos diários que permaneceram inéditas por décadas começaram a vir à tona, levando familiares a reviver antigas disputas e pesquisadores a fazer questionamentos sobre o papel de Dantas na trajetória da autora.

No prefácio que escreveram para a nova edição de "Casa de Alvenaria", lançada no início do mês, a escritora Conceição Evaristo e a professora Vera Eunice de Jesus, filha de Carolina, sugerem que o motivo principal para ela continuar a escrever os diários foi uma imposição do jornalista, que se opunha à publicação de textos de outros gêneros que ela produzira.

"Não estou tranquila com a ideia de que dêvo escrever o meu Diario da vida atual. Escrever contra a burguesia, eles são poderosos, pode destruir‑me", disse Carolina em 23 de novembro de 1960, numa passagem que constou da primeira edição do livro. "Audálio diz que eu devo escrever Diario, sêja fêita a vontade do Audálio", ela acrescentou no mesmo dia, conforme um dos trechos inéditos revelados agora.

"Eles tiveram um relacionamento de amor e ódio", disse Vera Eunice nesta semana, num encontro online organizado para divulgação do novo livro. "Audálio me disse que queria impor condições a minha mãe, e a minha mãe falava: 'Eu já não me casei para ninguém me impor condições'."

Conceição Evaristo e Vera Eunice são as coordenadoras do conselho criado pela Companhia das Letras para supervisionar as novas edições, composto majoritariamente por pesquisadoras negras como elas e Carolina. Retomar o controle sobre sua obra, publicando os textos na íntegra, com fidelidade à grafia dos manuscritos originais e às escolhas da autora, é parte essencial do projeto.

Mas até admiradores da escritora têm expressado incômodo com o tratamento recebido por Dantas, que morreu em 2018, quatro décadas depois dela. "Carolina não teria tido a menor chance como escritora se ele não tivesse aparecido", diz o jornalista Tom Farias, autor da biografia mais completa de Carolina, resultado de 15 anos de pesquisas. "Não vejo sentido nas tentativas de o demonizar agora e acho isso muito injusto com ele."

Carolina e Dantas se conheceram em maio de 1958, quando ele fazia uma reportagem sobre a favela do Canindé, perto do centro de São Paulo. A escritora vivia ali desde 1948 e ganhava a vida catando papel nas ruas da cidade. "Ela estava muito desiludida, no limite mesmo", conta Farias. "Não suportava mais as dificuldades, os filhos cresciam e ela não via horizonte."

Carolina mostrou ao jornalista dezenas de cadernos com seus escritos. Havia romances, poemas e histórias curtas, mas o que chamou a atenção dele foram os diários que tratavam do seu cotidiano na favela. A escritora permitiu que Dantas levasse meia dúzia de cadernos, e ele publicou alguns trechos na Folha da Noite, jornal que pertencia à empresa hoje responsável por este jornal.

Nessa época, os diários de Carolina tinham apenas 13 entradas. Ela começara as anotações em 15 de julho de 1955 e logo as interrompeu, retomando os registros só em 1958, após o encontro com Dantas, que a estimulou a escrever. "Gostei muito dêle", a escritora anotou. "Espero que a nossa amisade, não murcha igual as petalas de rosa exposta ao sol."

Carolina tivera outros contatos com jornalistas antes. Um dos seus poemas foi publicado pela Folha da Manhã em fevereiro de 1940, e ela visitou vários jornais de São Paulo e do Rio de Janeiro nos anos seguintes. Segundo Tom Farias, a autora chegou a propor a cinco jornalistas diferentes acordos comerciais para publicação de um livro com seus escritos, mas ninguém se interessou.

Foi a repercussão alcançada pela reportagem de Dantas que mudou tudo. Um ano depois do primeiro encontro com Carolina, ele publicou novos trechos dos diários na revista O Cruzeiro, o semanário de maior prestígio da época. Em 1960, o jornalista conseguiu para a escritora um contrato com a Livraria Francisco Alves, então uma das principais editoras do país.

O sucesso de "Quarto de Despejo" foi instantâneo. A tiragem inicial, de 10 mil exemplares, esgotou em uma semana e foi seguida por várias outras, maiores. O livro de estreia de Carolina ficou meses no topo das listas de mais vendidos, à frente de "Gabriela, Cravo e Canela", o romance lançado nessa mesma época por Jorge Amado, que já era um autor consagrado.

"O Brasil vivia um período de grande efervescência política e havia maior abertura para discutir questões sociais", diz a historiadora Raquel Barreto, uma das curadoras de uma exposição sobre Carolina que o Instituto Moreira Salles abre em setembro, em São Paulo. "Foi o que despertou tanto interesse pelos registros do seu cotidiano, marcado por profundas desigualdades sociais."

Homem sorridente, de óculos, cabelos brancos bem curtos, vestindo jaqueta de brim azul escuro sobre camiseta polo da mesma cor, com várias pessoas atrás numa festa.
O jornalista Audálio Dantas na festa que comemorou os 45 anos da TV Cultura, em 2014 - Bruno Poletti - 24.set.2014/Folhapress

Dantas assinou o prefácio do livro e cuidou da edição do material encontrado nos cadernos da escritora. Nos inúmeros depoimentos que deu sobre o assunto em vida, ele sempre preferiu classificar seu trabalho como uma compilação. Dizia ter cortado repetições, preservando o que parecia essencial e fazendo intervenções mínimas, para tornar os textos mais claros.

Mas pesquisadores que tiveram acesso aos cadernos da escritora tempos depois e compararam seu conteúdo com o que aparece nas edições da década de 1960 identificaram mudanças significativas e concluíram que o jornalista acabou desprezando partes relevantes das narrativas de Carolina, que contribuiriam para um entendimento maior de sua visão de mundo.

"O trabalho de Audálio foi importante para conhecermos Carolina, mas ele reduziu sua imagem à de uma mulher que só pensava na fome e na pobreza, muito aquém da complexidade que vemos nos cadernos", afirma Verônica Souza, que faz doutorado sobre a escritora na Universidade Federal da Bahia e ajudou a transcrever seus cadernos para a reedição de "Casa de Alvenaria".

José Carlos Sebe Bom Meihy, professor aposentado da Universidade de São Paulo, calcula que Audálio tenha aproveitado em "Quarto de Despejo" só 4% do material recebido de Carolina. Meihy teve acesso nos anos 1990 a mais de 2.000 páginas dos cadernos originais e prepara nova edição do livro para a editora Ática, que detém os direitos de comercialização da obra até 2026.

Segundo Meihy, o jornalista cortou várias menções que Carolina fez a ele depois de o conhecer na favela e muitas passagens com reflexões da escritora sobre a situação política da época. A Companhia das Letras planeja publicar a íntegra dos diários de Carolina no período coberto por "Quarto de Despejo" em vários volumes, ainda sem data prevista para o lançamento.

A reportagem identificou vários exemplos de mudanças feitas por Dantas ao comparar a nova edição de "Casa de Alvenaria", com dois volumes que somam mais de 700 páginas, e a primeira, que tinha menos de 200. Há até uma passagem que só existe na versão editada por ele, sobre um encontro de Carolina com o ator Grande Otelo. Eles de fato se conheceram, mas não há vestígio do episódio nos cadernos consultados pelos pesquisadores agora.

Segundo a Companhia das Letras, existem várias lacunas nos diários, porque Carolina não fez anotações todos os dias e alguns cadernos não foram encontrados até hoje. Os originais da escritora estão espalhados por várias instituições, incluindo a Biblioteca Nacional, o Instituto Moreira Salles e o Arquivo Público de Sacramento, a cidade mineira onde ela nasceu.

Sempre houve críticas a Dantas e discussões sobre a autoria da obra de Carolina. Em 1993, o crítico literário Wilson Martins, então um dos mais prestigiados do país, chegou a levantar a suspeita de que o jornalista era o verdadeiro autor dos diários. Segundo Martins, era impossível que uma pessoa de origem humilde e pouca instrução formal como Carolina produzisse textos tão elaborados. Dantas rebateu a maledicência várias vezes enquanto pôde.

Desde que os cadernos originais começaram a ser estudados, não há mais como duvidar do domínio que Carolina tinha da linguagem literária e de suas possibilidades expressivas. Mas a publicação integral das obras da escritora tende a gerar novos questionamentos por causa das escolhas feitas por Audálio, que sempre menosprezou as outras partes da obra de Carolina.

"A imprensa dos anos 1960 jogava de forma ambígua e às vezes perversa com Carolina, reiterando estereótipos e questionando seu projeto estético", diz o antropólogo Hélio Menezes, que divide com Raquel Barreto a curadoria da exposição do Instituto Moreira Salles. "Audálio também fez parte disso, ao desincentivar Carolina a escrever qualquer coisa que não fosse o diário."

Segundo o escritor Ricardo Ramos Filho, neto de Graciliano Ramos e presidente da União Brasileira de Escritores, a ideia de que o jornalista impusesse sua vontade a Carolina não faz sentido. "Ela era uma pessoa simples, mas muito inteligente e sabia conseguir o que queria", diz ele, que foi amigo de Audálio Dantas. "Pensar que era uma coitada vitimizada por ele é um desrespeito aos dois."

O primeiro volume da nova edição de "Casa de Alvenaria" começa em agosto de 1960, quando a autora saiu da favela para viver de favor na casa de um empresário em Osasco, na Grande São Paulo, pouco depois da publicação de "Quarto de Despejo". O segundo volume vai até dezembro de 1963, quando Carolina deixou a casa de Santana para viver num sítio em Parelheiros, na zona sul paulistana.

Foi um período tumultuado da sua vida, em que o sucesso do primeiro livro a levou a viajar muito para participar de programas de televisão, sessões de autógrafos e outros eventos sociais. Ela aparece nas páginas dos diários em constante movimento e sempre cercada de atenções, tentando conciliar inúmeros compromissos com a escrita dos diários e os cuidados dos filhos.

Mulher negra de cabelos curtos vestida com casaco elegante, escrevendo com caneta numa das primeiras folhas de um livro. Há outros livros sobre a mesa e uma estante ao fundo, e dois homens ao fundo com o livro, à espera da escritora.
A escritora Carolina Maria de Jesus durante noite de autógrafos do seu livro "Quarto de Despejo", em 1960 - Acervo Última Hora/Folhapress

Carolina e Dantas tinham grandes expectativas para o novo livro, mas o sucesso de "Quarto de Despejo" não se repetiu. Outras iniciativas dessa época resultaram em fiascos. Carolina publicou uma coletânea de provérbios por conta própria e um romance com outro editor, que depois acusou de desfigurar seu texto. Ela também gostava de cantar, e Dantas a ajudou a encontrar uma gravadora, mas o disco tampouco despertou interesse.

Dantas nunca cobrou pela edição dos livros de Carolina para a Francisco Alves, como ela própria diz nos diários. "Não acêita o meu dinheiro", anotou em março de 1961. "Eu quiz dar‑lhe os meus livros para ele edita‑los a meia ele não quiz." A escritora confiava no amigo a ponto de deixar com ele seus talões de cheques, para que Dantas preenchesse quando ela precisasse.

Algumas passagens dos diários que vieram a público agora sugerem que o jornalista recebia alguma participação nas vendas dos livros no exterior e indicam que isso acabou levando os desentendimentos com Carolina a um ponto de ruptura, mas é difícil saber ao certo o que aconteceu, porque as referências são imprecisas e não há notas explicativas para esclarecer.

A primeira tradução de "Quarto de Despejo" foi publicada em 1962 nos Estados Unidos, onde o livro virou "Child of the Dark" e é encontrado até hoje com esse título. Foi uma iniciativa do jornalista David St. Clair, que veio ao Brasil algumas vezes e escreveu sobre Carolina para as revistas Time e Life. Passagens dos diários que estavam inéditas até agora revelam que os dois também tiveram suas brigas, mas chegaram a namorar numa viagem.

Foi a Francisco Alves que negociou os direitos autorais das primeiras traduções com os editores estrangeiros. Os diários de Carolina mostram que muitas vezes era Dantas quem buscava o dinheiro no banco quando chegava algum pagamento para a escritora. Atrasos e dificuldades com operações de câmbio eram constantes e parecem ter alimentado suspeitas.

"O povo fala que o Audálio, ficou rico com o meu livro", ela escreveu em 11 de dezembro de 1963. "Que espoliou a minha ingenuidade. Mas tudo tem o seu dia de libertação. E agora eu estou livre! Mas quem continua recebendo o dinheiro dos dirêitos estrangeiros é o meu sinhô Dantas, quando quem deveria reçeber sou eu que lutei com dificuldades para escrever o livro."

Segundo Tom Farias, a queda das vendas dos livros no mercado doméstico e a insuficiência das receitas do exterior ajudam a explicar as desconfianças de Carolina nessa época. "A falta de transparência da editora podia alimentar dúvidas, mas qualquer pessoa que tenha conhecido Dantas terá dificuldade em aceitar que ele possa ter passado Carolina para trás", diz o biógrafo.

"Pode-se questionar se meu pai foi paternalista com Carolina, ou se seu trabalho merece críticas, mas qualquer acusação de má-fé, ou sugestão de que pudesse ter agido em proveito próprio, é injusta com ele, que sempre se conduziu com dignidade", diz a jornalista Juliana Dantas, filha de Audálio.

De acordo com Farias, os dois deixaram de se falar em 1965 e nunca mais se viram. Carolina morreu em 1977, aos 62 anos. Dantas presidia o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo e foi ao enterro se despedir. Numa entrevista que deu a este jornal alguns meses antes da sua morte, a escritora voltou a reclamar dos pagamentos do exterior, mas não tinha mais queixas em relação ao jornalista. "Audálio foi muito bom, muito correto comigo", disse. "Eu sempre acreditei nele."

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