Descrição de chapéu Governo Bolsonaro

Governo agiliza digitalização, mas cria brecha para redução de privacidade

Decretos editados por Bolsonaro em 2019 facilitaram a unificação de serviços ao cidadão

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São Paulo

O Brasil tem ao menos 20 bases federais que guardam dados de documentos como CPF, RG, passaporte e cartão do SUS. Um cadastro ligado ao INSS, por exemplo, em breve terá 51 bases replicadas nele, que constam informações laborais da base do FGTS a dados sensíveis, como a biometria.

Considerando 22 ministérios, dezenas de autarquias, institutos e universidades públicas, o número de bases pode ultrapassar 500, de acordo com estimativa de especialistas baseada no Sisp, sistema federal de tecnologia de informação.

O governo pode saber da vida econômica, das relações empresariais, do histórico estudantil, do parentesco e do local onde os cidadãos moram, além da cor da pele e a impressão digital.

A partir das bases já disponíveis, não seria preciso, por exemplo, quebrar o sigilo de dados bancários para combinar a base do CPF com a do Caepf (Cadastro de Atividade Econômica da Pessoa Física) e mapear a atividade econômica de uma pessoa.

Também não seria necessário instalar um sistema chinês de câmeras inteligentes na rua para atrelar essas informações financeiras ao rosto de alguém. Bastaria ligar dados do Caepf à foto da carteira de habilitação —que está disponível à administração pública.

O governo tem informações sobre o piso da casa, se a pessoa faltou ao trabalho, se tem parentesco com presidiário e se a residência dispõe de energia elétrica. Dados desse tipo estão no CadÚnico, um cadastro para fins de assistência social como Bolsa Família.

O cruzamento de informações nesses bancos de dados é necessário para a criação de políticas públicas, e o governo de Jair Bolsonaro decidiu facilitar o fluxo de dados em 2019.

A ação integra uma estratégia que busca digitalizar e unificar os serviços ao cidadão.

Por meio das secretarias de Governo Digital e de Desburocratização, o Ministério da Economia intensificou a pauta no ano passado. Diz ter digitalizado mais de 500 serviços, que podem gerar uma economia de R$ 1,7 bilhão —a meta é chegar aos 100% digitalizados.

Para dar esse serviço na ponta, o governo mexe em pontos estruturais e menos visíveis. Tornou mais fácil para um ministério usar dado de outro e implementou um cadastro cuja plataforma tecnológica estará relacionada a dezenas de bases públicas. 

Uma das ideias é que o cidadão não precise mais atualizar seus dados —seja o nome de solteiro ou um novo endereço— em uma série de órgãos, mas apenas em um. Unindo isso a aplicativos e serviços em um site, o governo quer reduzir filas, custos aos cofres e minimizar fraudes.

“Temos o objetivo de aumentar o compartilhamento de dados dentro do governo. Estamos em um programa acelerado e o dado tem que circular”, diz Luis Felipe Salin Monteiro, secretário do Governo Digital.

Segundo ele, é preciso sincronizar as bases distribuídas, como do Ministério da Infraestrutura e da Receita Federal, por exemplo, para evitar duplicidade. O governo usa o conceito “ask once” (pergunte uma vez, na tradução do inglês).

“Um cidadão que quiser receber benefício do auxílio-desemprego ou licença-maternidade vai conseguir de forma menos burocrática porque diferentes órgãos poderão checar sua biometria, hoje cadastrada em tribunais eleitorais ou na PF para passaporte”, diz.

Os aplicativos federais poderão contar com funções de reconhecimento facial e leitor biométrico para autenticar a identidade dos cidadãos.

Esse é um dos motivos de o governo ter incluído no texto de um dos decretos trechos polêmicos como “formato da face”, “voz” e “maneira de andar” ao descrever o que são dados biométricos.

A previsão de investimento do Ministério da Economia é de R$ 2 milhões para a interoperabilidade das bases, incluindo a implantação do cadastro base, APIs e blockchain.

A pauta avançou, mas não é de hoje. Desde 2010 foram criadas políticas para governança de dados e, em 2016, durante o governo Temer, uma estratégia de governo digital.

“Dilma e Lula pecaram mais por omissão do que por tentar fazer alguma coisa. O Brasil firmou parceria pelo governo aberto em 2011, mas não houve investimento robusto em questões como identidade digital. Alguns exemplos se destacaram, como o Login Cidadão, no Rio Grande do Sul, que conseguiu dar ao cidadão o controle sobre os dados”, diz Adriana Meireles, cientista política da UnB (Universidade de Brasília) e pesquisadora de proteção de dados.

Mesmo com objetivos desejáveis como mais praticidade e diminuição do tempo de espera em filas, algumas medidas encontram resistência dentro do Congresso e na comunidade acadêmica.

“A ideia de ter um governo com acesso a todos os dados, independentemente da finalidade, é absurdo. Isso pode escalar para casos extremos de mau uso para segurança pública, discriminação e vigilância”, acrescenta a pesquisadora.

O ponto crucial do debate é o da finalidade. Apesar de mencionar a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados), o decreto que cria o cadastro base do cidadão minimiza o fato de que as pessoas fornecem uma informação porque sabem que ela será usada para determinado fim, não para outro.

Além disso, os decretos não incluem previsão de um canal de transparência para que os cidadãos tenham conhecimento sobre o uso de seus dados por diferentes órgãos.

Outro ponto de atenção é que, nesse cenário, estatais operadoras de grandes bases de dados, como Serpro e Dataprev, deverão ser privatizadas. Pesquisadores temem que haja abuso do setor privado.

“Vários países têm unificação, já é uma realidade. O que é crítico é que assumiu-se que o comitê gestor [um conselho que vai vigiar o uso de dados do poder público], criado só por pessoas do governo, estaria sob vigilância da recém-criada autoridade de proteção de dados, mas isso não está explícito no texto”, diz Alexandre Barbosa, engenheiro e pesquisador do ITS-Rio (Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro).

A preocupação central é que, se o poder público também não for vigiado, ele terá recurso para saber o que quiser de um cidadão sem prestar contas disso, o que iria contra princípios da LGPD e da OCDE, que recomenda que os propósitos para a coleta de um dado sejam especificados.

Além de identificar um cidadão por dados simples preenchidos em qualquer cadastro, como nome, idade e local de nascimento, o governo pode criar um retrato preciso da vida de uma pessoa. 

“Cria-se uma imensa capacidade de perfilamento com dados de saúde e até de lugares frequentados, porque o cidadão coloca o CPF na nota ao comprar em um supermercado”, afirma José Laranjeira de Pereira, advogado e pesquisador de direito e internet.

"Se dados biométricos forem incluídos no cadastro, como face captada por uma câmera, será possível saber se a pessoa atravessou a rua fora do semáforo, se jogou chiclete no chão, onde vai, com quem vai.”

O governo diz que disponibilizará um mecanismo de transparência para que o cidadão saiba qual o uso de seu dado, incluindo nome do servidor. Afirma, também, que atuará próximo da autoridade de proteção de dados, que as transações serão realizadas com estrita privacidade e que o sigilo será respeitado.

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