Descrição de chapéu Coronavírus

Do bar hipster à periferia, comércio cria soluções solidárias na pandemia

Delivery para vizinhança e comunicação por WhatsApp viram saída a pequenos comerciantes para sobreviver à crise

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São Paulo

O Café Família, lanchonete próxima à faculdade de direito da FGV, na Bela Vista (SP), costumava estar lotado de universitários disputando mesinhas para beber açaí e comer esfirra de carne durante o intervalo.

Há pouco mais de uma semana, o casal de microempresários Evaristo e Eliete de Lima viu o movimento definhar. Além da universidade, as empresas do entorno da rua Rocha também fecharam, e o trânsito diário de 150 pessoas caiu para 50 em dois dias.

Sem saber que estava incluindo um pilar digital em sua microempresa, Eliete decidiu distribuir o número de WhatsApp em um breve cardápio à vizinhança. O modus operandi na pandemia será ela na operação dos sucos e salgados e Evaristo no delivery.

“App para nós [tipo o iFood] não compensa. O tempo que eu tinha para atender, agora vou usar para a entrega”, diz o comerciante, que vai se limitar às proximidades do bairro.

O movimento de sair na rua, a pé ou de bicicleta para entregar aos vizinhos começa a virar uma tendência entre pequenos comerciantes. Na Santa Cecília, área hipster da cidade, cervejarias artesanais, bares com mesa de pingue-pongue e restaurantes que vendem discos de vinil e roupas de brechó se viram com vouchers, delivery próprio e “take away” (quando o cliente só busca a mercadoria).

“Nossa parada é ajudar a comunidade do bairro”, diz Younes Bari, 28, fundador do Kaia Bar, que criou a “barricada” de sobrevivência ao isolamento. É uma mesa que fica na entrada do restaurante, com álcool em gel, papel-toalha e sabão, e serve apenas para o consumidor pegar o que já pediu pelo WhatsApp ou pelo Instagram.

A ideia repercutiu. “Sempre tivemos cuidado estético nas fotos [de comida], mas abrimos mão. Pensamos: ‘Vamos lançar a real’. Fizemos a foto ‘rasgueira’ da barricada e temos quase 900 curtidas”, diz.

No novo modelo, os cozinheiros não saem da cozinha para evitar contágio. Uma atendente entra no restaurante vazio, higieniza a mão, pega a mercadoria e leva à frente do estabelecimento.

Com o mínimo de contato, o cliente paga e vai embora. Álcool na maquininha a cada transação.

Bari sabe que isso não vai render no curto prazo, mas ao menos paga a conta de luz. Os preços baixaram para que o ganho seja no volume.

“Não queremos que o cliente venha só na terça, mas na quinta e em outros dias. Só a bolha de privilegiados consegue comprar tudo no supermercado no início do mês, e fazer estoque também não é indicado”, afirma.

Os funcionários não foram demitidos, mas estão em casa, e uma tentativa de renegociação com a empresa de maquininha de cartão será inevitável.

A poucos minutos do Kaia, na Cervejaria Central, que produz 2.500 litros de cerveja por mês, o delivery de bicicleta, feito pelos três sócios, é a saída temporária para amenizar a queda no faturamento. Numa terça-feira pré-coronavírus, era de cerca de R$ 3.500; na última, R$ 340.

Pedidos de cerveja especial podem ser feitos pelo WhatsApp e o custo também vai cair para garantir mais saída.

Precursor do movimento #SupportYourLocalBar [apoie seu bar local] nas redes sociais, o bar Cama de Gato, que atrai público jovem e roqueiro embaixo do Minhocão, no centro, passou a disponibilizar vouchers (disponíveis para retirada em julho) que dão direito a recompensas como drinques, camisetas e discos.

Na sexta (20), o valor arrecadado pelo estabelecimento ultrapassava os R$ 17 mil. “A gente chegou a essa ideia depois de muita insônia e desespero”, diz o sócio Bruno Bocchese. “Quando decidimos fechar, ficamos discutindo formas de pelo menos garantir o salário da equipe.”

Outros estabelecimentos seguiram a onda com sistemas de recompensa parecidos: Scar, Regô, Bia Hoi, Fffront e Heute são exemplos.

Cerca de 250 comerciantes de bares e restaurantes modernos de São Paulo se reúnem num grupo de WhatsApp chamado “SOS Rest e Bares” para coordenar os pleitos à administração pública. Nas conversas, surgem formas de organização diante de novos decretos governamentais e debate sobre prorrogação do vencimento de impostos.

A preocupação também acontece do lado de quem consome. Correm dicas em perfis de Instagram e grupos de WhatsApp de classe média sobre como resolver dilemas éticos de consumo na pandemia.

Famílias que contratam diaristas ou babás para os filhos têm dispensado as profissionais e realizado pagamentos adiantados. Também compram vouchers de salões de beleza, que ficaram esvaziados diante da possibilidade de contágio.

Na periferia, pequenos empreendedores buscam soluções solidárias para lidar com a suspensão das atividades.

A Agência Solano Trindade, espaço cultural que conjuga armazém de produtos orgânicos, restaurante comunitário e coworking para mais de 300 microempresas em Campo Limpo, na zona sul de São Paulo, teve que fechar as portas devido à grande circulação no local. Para pagar os custos fixos da casa, lançou um financiamento coletivo que já atingiu “o dobro da meta até agora”, que era de R$ 1.000, segundo o produtor cultural Thiago Vinícius.

Ele também lançou o que chama de “Tinder de doações”, que conecta quem quer doar com quem precisa receber. “Nesta semana [passada], a Casa Natura e o Quitanda [supermercado em Pinheiros] ligaram oferecendo comida. O Instituto ACP vai fortalecer com kits de gás e higiene pessoal”, diz. Com o WhatsApp, mapeia as lideranças comunitárias para saber quem precisa de comida.

A agência integra é o ÉdiTodos, fundo social que apoia empreendedores periféricos junto a organizações associadas como a Feira Preta, Afro Business, Vale do Dendê (BA) e Favela (MG), criado em 2017.

Com a pandemia, o grupo adotou uma estratégia emergencial: o capital mobilizado irá para os empreendedores pagarem suas despesas de emergência como luz, aluguel, alimentação.

“Para que as pessoas pelo menos tenham a tranquilidade de saber que o básico está garantido”, diz Adriana Barbosa, empreendedora social.

Com exceção de farmácias e supermercados, que por enquanto têm picos de movimentação, é difícil encontrar um negócio que sairá imune, de zonas centrais a periféricas.

Especialistas em gestão tentam achar um lado positivo da pós-pandemia. Enio Pinto, gerente de relacionamento do Sebrae, diz que em momentos de crise aguda, como guerras, sempre há “lapidação nos negócios”.

“Microempresas totalmente analógicas estão criando formas de venda digital e novas maneiras de se relacionar com os clientes” diz. Para ele, a transformação digital chega à força até para uma padaria de bairro, que vai começar a avisar pelo Twitter que saiu o pão quentinho.

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