Descrição de chapéu Coronavírus

Só ação rápida do governo evitará convulsão social, diz cientista política

Para Marta Arretche, estratégia de Bolsonaro aumenta riscos ao contrariar experiência internacional

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São Paulo

Só ações governamentais rápidas e certeiras poderão evitar o risco de uma convulsão social no país como resultado do avanço do coronavírus e da paralisia da economia nos próximos meses, afirma a cientista política Marta Arretche, professora da Universidade de São Paulo (USP).

"Não sabemos por quanto tempo será necessário manter as políticas de distanciamento social para conter a doença", diz ela. "Não temos ideia do que milhões de pessoas poderão fazer quando houver um súbito crescimento da pobreza absoluta e não houver alternativa de renda à vista."

Ela considera o auxílio emergencial criado para trabalhadores do setor informal um passo essencial para amortecer os efeitos econômicos das medidas de isolamento adotadas para desacelerar a propagação da doença, mas acha que serão necessários ajustes para ampliar o alcance da medida.

Especialista em políticas públicas, a pesquisadora teme o impacto que o aumento do número de pessoas infectadas terá no sistema de saúde pública, que tende a ficar sobrecarregado em muitos estados por causa da insuficiência de leitos para internação prolongada nos hospitais.

A professora da USP Marta Arretche durante evento da Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), em São Paulo - Marlene Bergamo - 16.mai.2019/Folhapress

Para Arretche, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) adotou uma estratégia arriscada ao contrariar a orientação do Ministério da Saúde e a experiência internacional e defender medidas alternativas, com o isolamento apenas de grupos mais vulneráveis ao coronavírus para evitar prejuízos à atividade econômica.

"Eles [Bolsonaro e seus seguidores] não querem ser responsabilizados por uma recessão no curto prazo e estão fazendo um cálculo político muitíssimo perigoso", afirma. "Correm o risco de colher o pior dos mundos: explosão da doença com recessão econômica."

O Brasil está preparado para lidar com essa crise? A pandemia impõe escolhas muito difíceis para qualquer país. No curto prazo, é necessário escolher entre proteger vidas, evitando o colapso dos sistemas de saúde, ou proteger a atividade econômica, evitando uma explosão da pobreza absoluta.

É por isso que a estratégia de isolamento vertical, defendida pelo presidente Bolsonaro, parece tão atraente. Ela supõe que haveria um caminho para isolar apenas os grupos de risco, preservando a atividade econômica. Mas quem adotou essa política na Europa já reconheceu ter cometido um erro.

No Brasil, é ainda mais difícil porque não temos condições de fazer testes em massa para identificar os indivíduos que deveriam ser isolados. Se não conseguirmos reduzir o ritmo de contágio, o impacto sobre o sistema de saúde, em particular quando o vírus se transmitir entre os mais pobres, será muito grande.

No plano econômico, a saída lenta de uma recessão prolongada nos legou dezenas de milhões de desempregados e trabalhadores informais. Não há dúvida de que a pobreza extrema vai aumentar. Nossa melhor estratégia seria assumir esse problema em vez de minimizar seus efeitos potenciais.

O país tem como suportar os custos? As soluções que já estão sendo encaminhadas terão impacto fiscal relevante. Não há como fugir. Há razoável consenso entre os especialistas de que, no curto prazo, a prioridade é minimizar os efeitos da pandemia sobre a saúde da população e a economia.

A melhor estratégia parece ser diminuir a velocidade da expansão da doença e adotar politicas compensatórias para sustentar a renda das famílias e as empresas. As projeções para o número de infectados, o número de pessoas que precisarão de internação prolongada, o número de pobres e trabalhadores formais e informais, para não falar das empresas, necessitando de ajuda governamental, são gigantescas. Será necessário encontrar recursos para isto.

A Câmara dos Deputados aprovou a criação de um auxílio emergencial e o governo promete outras medidas. Serão suficientes? O auxílio é uma medida muito importante. Sua implementação poderá ser rápida com o aproveitamento de recursos institucionais já existentes, como o Cadastro Único dos programas sociais do governo federal.

Para as pessoas que fatalmente cairão na pobreza absoluta no curto prazo, o auxílio sinaliza que terão alguma renda para atravessar o período de isolamento social. Dessa forma, o auxílio favorece a estratégia de isolamento generalizado, atenuando o impacto da paralisia da atividade econômica.

O projeto restringe o acesso num primeiro momento aos que já estão no cadastro dos programas sociais do governo. Acredito que serão feitos ajustes para estender o benefício àqueles que poderão cair na pobreza absoluta no curto prazo, por causa da retração da atividade econômica. Se não atingir os novos pobres, a medida não atenderá seu principal objetivo.

Há sempre alguma demora até que o dinheiro chegue às pessoas, por causa do processo legislativo e das providências burocráticas necessárias para implementar as medidas. A administração pública já está funcionando mais precariamente, por causa do isolamento. Seria muito importante o governo federal ser ágil na implementação da medida.

A sra. vê risco de convulsão social? Esse risco não deve ser descartado. Não sabemos por quanto tempo será necessário manter as políticas de distanciamento social para conter a doença. Não temos ideia do que milhões de pessoas poderão fazer quando houver um súbito crescimento da pobreza absoluta e não houver alternativa de renda à vista.

Estávamos saindo de uma situação de prolongado desemprego e temos milhões de trabalhadores de renda muito baixa no setor informal. Dezenas de milhões de pessoas não têm reservas para sobreviver mais do que alguns dias sem obter nenhuma renda.

É por isso que medidas como a criação do auxílio emergencial são importantes, para dar alguma esperança a essas pessoas. Muitas ficarão sem renda justamente quando o número de infectados estará crescendo, com o sistema de saúde sobrecarregado, o que tornará a situação mais preocupante.

O que aprendemos com a experiência internacional até aqui? Ela mostra que as medidas mais drásticas de isolamento são mais eficazes para conter a velocidade da contaminação, ao contrário do que o presidente Bolsonaro e seus seguidores pensam. Elas são ainda mais recomendadas quando não há condições de fazer testes em massa na população, como é o nosso caso.

As ações dos países ricos mostram também que as soluções precisam ter escala massiva, seja para proteger os doentes, seja para evitar a pobreza absoluta. Os governos têm que sinalizar claramente para as pessoas que perderão renda que haverá ajuda, especialmente para os mais vulneráveis. É melhor pecar por excesso do que deixar muita gente descoberta.

No caso brasileiro, os trabalhadores informais são claramente os mais desprotegidos. Eles não poderão contar com seguro desemprego, adiantamento do 13° ou aposentadoria. O setor formal também tende a enxugar, e muitos negócios irão falir. Mas as pessoas que trabalham no setor formal têm mais margem de manobra.

O sistema de saúde está preparado para lidar com o aumento vertiginoso de casos? Nossa rede de atendimento médico sofreu nos últimos anos um longo período de sucateamento, por causa do subfinanciamento do Sistema Único de Saúde (SUS).

A oferta de leitos para internação prolongada no SUS é muito desigual, o que significa que haverá em muitos estados pessoas batendo à porta dos hospitais sem que a capacidade instalada possa atender tanta gente. Podemos repetir aqui a tragédia que os italianos da Lombardia viveram, com os médicos tendo que escolher qual doente terá aparelhos para respirar.

O que pensar das críticas do presidente às políticas de isolamento, contrariando a orientação do próprio Ministério da Saúde? O presidente está fazendo mais do que criticar as políticas de isolamento horizontal. Ele está mobilizando seguidores em favor de uma estratégia alternativa de isolamento vertical, que é de altíssimo risco nas circunstâncias do Brasil.

O preocupante é que até poucos dias atrás o presidente parecia isolado na defesa dessa estratégia. Mas alguns governadores decidiram reabrir o comércio em seus estados, prematuramente. Eles não querem ser responsabilizados por uma recessão no curto prazo e estão fazendo um cálculo político muitíssimo perigoso. Correm o risco de colher o pior dos mundos: explosão da doença com recessão econômica.

Qual será a consequência política, à medida que a doença avançar? O presidente claramente quer evitar a paralisia da atividade econômica. Seus eleitores mais fiéis parecem acreditar que não serão afetados pela doença e que poderão proteger seus parentes idosos.

Acham que o vírus pode ser controlado e, portanto, sua prioridade é evitar o risco de prejuízos materiais no curto prazo. Seria bom se eles estivessem certos, mas as evidências disponíveis apontam no sentido contrário.

Estudos que comparam cidades e regiões de um mesmo país mostram que a velocidade do contágio só cai com o isolamento geral. Em poucas semanas, teremos oportunidade de encontrar a resposta para o Brasil. A dúvida é se o eleitor saberá distinguir os responsáveis pelos danos sociais.

Como assim? Vamos lembrar da crise que se seguiu às manifestações de junho de 2013. No início, os protestos tinham como alvo os prefeitos que tinham aumentado as tarifas de ônibus. Num segundo momento, os governadores que colocaram a polícia para reprimir os manifestantes viraram alvo, e os protestos ganharam força.

Quando a onda de insatisfação se espalhou pelas maiores cidades, a presidente Dilma Rousseff tornou-se o principal alvo das cobranças da população. Embora ela não tivesse nada a ver com o que havia motivado os manifestantes no início, sua popularidade despencou mesmo assim.

A lição é que, quando há uma grande revolta da população, as pessoas podem se voltar contra todo o sistema político, sem distinguir com muita clareza quem exatamente fez o quê. Nesse sentido, Bolsonaro adotou uma estratégia de altíssimo risco para lidar com a crise.

Os panelaços contra o presidente indicam que ele errou? Os protestos mostram que muitas pessoas são a favor da política de distanciamento social, acham o presidente irresponsável e consideram a resposta do governo lenta, para dizer o mínimo. Mas os críticos ainda parecem confinados a setores de classe média e mais bem informados.

Ainda não sabemos o que irá acontecer quando a insatisfação chegar à massa da população mais pobre e desprotegida. A grande dúvida é para quem eles vão dirigir sua revolta. Saberemos em pouco tempo se o problema é pequeno, como o presidente diz.

Muitos economistas ainda trabalham com a hipótese de uma recuperação da economia no segundo semestre, após a superação da fase mais aguda do contágio. Gostaria que estivessem certos. Mas, do ponto de vista político mais imediato, a notícia tem pouca importância. Só quem tem poupança consegue ficar três, quatro meses sem renda. Para quem não tem nada, é um prazo muito longo. Pode parecer razoável esperar, em termos puramente econômicos, mas é inviável em termos políticos.

A esta altura, não sabemos quanto tempo irá durar a crise. Ainda há muita incerteza sobre a evolução da doença e a eficácia das ações em curso. Na ausência de uma resposta governamental eficiente no curtíssimo prazo, a perspectiva de recuperação da economia lá na frente não quer dizer muita coisa para quem não tem reservas para aguentar até lá.


Marta Teresa da Silva Arretche, 62

Cientista política, é professora da Universidade de São Paulo (USP) e diretora do Centro de Estudos da Metrópole, onde coordena projetos de pesquisa sobre políticas públicas e desigualdade. Publicou "Democracia, Federalismo e Centralização no Brasil" (2012) e foi uma das organizadoras das coletâneas de artigos "Trajetórias das Desigualdades: como o Brasil mudou nos últimos cinquenta anos" (2015) e "As Políticas da Política: desigualdades e inclusão nos governos do PSDB e do PT" (2020).

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