Descrição de chapéu Financial Times China

Nova moeda digital chinesa visa controle sobre economia e sociedade

E-yuan permitirá extrair e analisar enorme conjunto de dados sobre cidadãos; projeto é forte golpe às fintechs do país

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James Kynge Sun Yu
Financial Times

As celebrações na China pela chegada do Ano-Novo, o Ano do Boi, iniciado em 12 de fevereiro, foram contidas, por conta da pandemia do coronavírus. O número de pessoas que viajaram para visitar parentes caiu acentuadamente este ano, e isso tornou as reuniões familiares um pouco menos alegres.

Mas nem tudo é desânimo. As autoridades de diversas cidades distribuíram dezenas de milhões de yuan como “pacotes vermelhos” de presente de Ano-Novo, que podem ser baixados por smartphones. Pequim e Suzhou distribuíram 200 mil pacotes vermelhos, cada qual em valor de 200 yuan (R$ 168), por meio de uma loteria.

Um cliente faz um pagamento eletrônico via Alipay em um restaurante em Pequim, China - Nicolas Asfouri - 29.out.2020/AFP

Gestos filantrópicos como esse ocultam uma agenda mais séria. Ao distribuir os tradicionais pacotes vermelhos em forma de “yuan digital”, as autoridades da China estão conduzindo testes para uma tecnologia nova e crucial que pode resultar na adoção mundial de moedas digitais, e estabelecer padrões para o planeta.

Ainda que não tenha sido anunciada uma data oficial de lançamento, a China está determinada a se tornar a primeira grande economia do planeta a introduzir uma moeda digital, demonstrando sua posição de líder mundial em tecnologia de pagamentos na Olimpíada de Inverno que o país sediará no ano que vem. O Camboja lançou uma moeda digital, chamada bakong, no final do ano passado.

“As autoridades econômicas chinesas são de longe as mais avançadas em seu pensamento sobre uma moeda digital”, diz o chefe de operações asiáticas de um grande banco de Wall Street, que pediu que seu nome não fosse mencionado. “Estão pensando em coisas sobre as quais o resto do planeta nem está perto de começar a pensar”.

“O yuan digital colocará todas as transações digitais no radar do Banco Popular da China” [o banco central chinês], o financista acrescenta.

O plano digital da China se encaixa bem às ambições mais amplas do país para sua moeda, e Pequim espera que a tecnologia ajude a promover o yuan internacionalmente e enfraqueça a supremacia do dólar americano. Embora profissionais de finanças digam que o foco inicial será o uso da moeda digital no mercado interno, dentro de alguns anos ela deve passar a ser usada para a realização de transações de comércio internacional, segundo diversos analistas chineses.

Mas os demais objetivos por trás da moeda virtual chinesa apresentam um forte contraste com a discussão pública sobre o assunto em muitas outras partes do mundo. Enquanto nos Estados Unidos as criptomoedas são debatidas com o jargão do movimento libertário, na China o projeto de moeda digital está vinculado aos esforços do Partido Comunista para manter o controle sobre a sociedade e economia do país. A tecnologia foi concebida em parte como forma de reforçar o Estado de vigilância.

As criptomoedas costumam ser descentralizadas; não são emitidas por governos e não contam com a adesão deles. O yuan digital, em contraste, é parte do sistema chinês de controle, imposto de cima para baixo. O banco central emite e regulamenta a moeda, e seu status como meio circulante é garantido pelo Estado chinês.

Códigos de pagamento do Alipay e do Wechat em um mercado em Xangai, China - Hector Retamal - 27.out.2020/AFP

O formato digital da moeda permite que o banco central rastreie todas as transações em nível individual, e em tempo real. Pequim usa esse recurso para combater a lavagem de dinheiro, a corrupção e o financiamento do “terrorismo” no país, e ele reforça ainda mais os poderes de vigilância já formidáveis do Partido Comunista.

Analistas dizem que Pequim também espera usar o yuan digital como meio de reafirmar o controle do Estado sobre o setor de tecnologia financeira e o vasto mercado de pagamentos eletrônicos, dominado por duas grandes empresas privadas, o Ant Group e o Tencent. A nova tecnologia pode, na prática, se tornar rival das plataformas de pagamento dos dois serviços, que substituem o dinheiro em papel.

O governo chinês já está envolvido em um esforço de múltiplas frentes para controlar do poder dos novos serviços de pagamentos, o que levou o Ant Group a cancelar sua abertura de capital, que teria sido realizada no final do ano passado.

Samantha Hoffman, analista sênior do Australian Strategic Policy Institute, diz que o controle social é uma prioridade para Pequim. “O [yuan digital] gira pesadamente em torno da capacidade do partido para exercer controle”, ela diz.

Tomada de controle do setor de tecnologia financeira

A estratégia da China é popularizar a moeda digital ao conduzir testes em nível municipal este ano e no ano que vem, e tê-la pronta para uso amplo no momento em que o país sediar a Olimpíada de Inverno, no final de 2022, disseram integrantes do governo. Esse cronograma coloca Pequim muito adiante da longa fila de governos nacionais que estão começando a conduzir experiências sobre a mesma ideia.

Cerca de 60% dos mais de 60 bancos centrais pesquisados pelo Banco de Compensações Internacionais (BIS) disseram estar “conduzindo experimentos ou testes” com moedas digitais no ano passado, ante 42% em 2019. Entre eles, 14% estão avançando na direção de programas piloto, a pesquisa constatou.

Uma cliente mostra a confirmação de pagamento eletrônico via Alipay uma loja de bebidas em Pequim, China - Nicolas Asfouri - 29.out.2020/AFP

Na China como em outros países, as ramificações de adotar uma moeda digital são imensas. Não é só que o yuan digital vá substituir o dinheiro em papel; ele também pressagia a construção de um novo sistema de pagamentos que solapará a posição do Alipay e do WeChat Pay, as duas plataformas de pagamentos mais populares do país, ambas privadas, controladas pelo Ant Group e Tencent, respectivamente.

O principal motivo para isso é que o yuan digital é distribuído diretamente às carteiras digitais dos usuários por bancos estatais, o que estabelece canais de pagamento que não passam pelo Alipay e WeChat Pay.

Em testes conduzidos até agora, usuários puderam sacar o yuan digital em caixas automáticos ou baixar a moeda virtual para as carteiras digitais de seus celulares.

Os consumidores então pagam por compras segurando o celular perto de um aparelho de ponto de venda habilitado para o yuan digital. Um sistema como esse representa uma alternativa clara ao Alipay e WeChat Pay, cujas bases mundiais de usuários ativos, somadas, são estimadas em 1,9 bilhão de pessoas.

“O uso generalizado do yuan digital afetará a posição de mercado e o modelo de lucro de plataformas terceirizadas de pagamentos como o Alipay e o WeChat Pay”, diz Wang Yongli, antigo vice-presidente do Bank of China, um dos maiores bancos estatais chineses.

E isso não é pouco. O Alipay e o WeChat Pay não só formam a espinha dorsal do sistema de pagamentos chinês, em uma economia na qual o dinheiro em papel cada vez circula menos, como seus negócios também sustentam os preços das ações do Tencent, uma das 10 maiores companhias do planeta, com capitalização de mercado de mais de US$ 920 bilhões (R$ 5 trilhões), e do Alibaba, que controla uma participação no Ant Group.

A sensação de que a popularização do yuan digital pode acontecer em detrimento do Alipay e WeChat Pay é reforçada pelas mensagens de Pequim, divulgadas via mídia estatal. Em uma reportagem nas ruas de Pequim, durante a comemoração do Ano-Novo chinês, um jornalista da CCTV, a rede oficial de televisão chinesa, disse que usar o yuan digital era “mais conveniente” do que usar outros sistemas de pagamento.

“A moeda digital será um golpe contra o Alipay e o WeChat, porque pode substitui-los”, diz o diretor de um grande banco estatal chinês. “É provável que o governo use seu poder administrativo a fim de promover o uso do yuan digital a fim de solapar o monopólio sobre os dados de consumidores mantidos pelas empresas de tecnologia”.

Na verdade, esses poderes administrativos são inerentes ao yuan digital. Porque ele é aceito como moeda oficial, nenhum comerciante pode recusá-lo, e portanto todos serão obrigados a instalar terminais de pagamento e sistemas de caixa que o incorporem, quando a moeda for lançada formalmente. O mesmo não se aplica ao Alipay e WeChat Pay, que os comerciantes têm o direito de recusar.

Um cliente digitalizando um código de pagamento QR para fazer um pagamento eletrônico em uma loja de doces em Pequim, China - Nicolas Asfouri - 29.out.2020/AFP

Reportagens na mídia estatal também trombeteiam uma função do yuan digital que dizem torná-lo tão versátil quanto o dinheiro em papel: a capacidade de ser usado em pagamentos offline. Se não houver conexão com a internet, os usuários poderão ainda assim transferir dinheiro entre dois aparelhos desconectados, usando o que a mídia estatal descreve como “tecnologia offline dual”.

O sistema usa uma tecnologia de comunicação em curta distância parecida com o Bluetooth, dizem analistas. Ainda não está claro se esses sistemas –ou o yuan digital de modo mais amplo– são confiáveis, mas Mu Changchun, que comanda o Instituto de Pesquisa de Moeda Digital do banco central chinês, disse que a tecnologia “offline dual” se provou “comparativamente bem sucedida”.

A China considera seu sistema bancário centralizado como instrumento crucial para o poder econômico do partido e Estado. Sempre que esse controle é ameaçado, como aconteceu quando o setor de pequenos empréstimos pessoais online começou a se desenvolver aceleradamente, em 2016, as autoridades agem de forma decisiva a fim de reafirmar sua influência. Depois de uma campanha de limpeza conduzida por Pequim, restam apenas 29 empresas nesse segmento, que um dia contou com mais de 6.000 companhias. Da mesma forma, o sucesso extraordinário do Ant Group, antes do cancelamento de sua oferta pública inicial de ações, era visto como ameaça pelo poderoso lobby dos bancos estatais chineses.

Embora seja claro que o ecossistema de pagamentos com o yuan digital foi projetado para operar independentemente do Alipay e WeChat Pay, é provável que as duas plataformas privadas de pagamentos sejam usadas para transações com a moeda, dizem analistas. Assim, pelo menos por algum tempo, as plataformas privadas serão usadas para promover a ascensão do yuan digital.

“O crescimento da fatia de mercado do yuan digital acontecerá à custa do Alipay e WeChat Pay”, diz Zou Chuanwei, especialista em moedas digitais no Wanxiang Blockchain, um instituto de pesquisa em Xangai. “O governo está apertando o controle regulatório sobre os grupos de tecnologia financeira e a substituição do Alipay e WeChat Pay pela nova moeda digital prejudicará seus negócios de empréstimos ao consumidor”, ele acrescenta.

Ferramenta de controle

Quinze séculos depois de a China ter inventado as cédulas bancárias, a natureza do dinheiro está a caminho de uma mudança fundamental. Naquela época, durante a dinastia Tang (que reinou sobre o país entre 618 e 907), o dinheiro em papel era pouco mais que um vale e se tornou conhecido como “dinheiro voador”, porque, ao contrário das moedas metálicas, tinha a tendência de ser arrastado pelo vento.

Mas o yuan digital representa uma mudança de passo. A nova moeda é muito mais que um meio de troca. Pequim a vê como baluarte contra a intervenção potencial de moedas digitais estrangeiras, como o diem, um projeto comandado pelo Facebook, e como ferramenta para facilitar a vigilância em massa sobre a população da China.

Na metade de 2020, Mu, do Instituto de Pesquisa de Moeda Digital, argumentou que o yuan digital poderia impedir que a libra –o nome original da moeda do Facebook– ocupasse espaço no sistema monetário chinês. Esse raciocínio se seguiu a considerações semelhantes em 2018, quando pesquisadores do banco central chinês advertiram que a chegada de moedas privadas –conhecidas como “stablecoins”– vinculadas ao dólar dos Estados Unidos poderia prejudicar os esforços de Pequim para internacionalizar o yuan.

Mas além de agir como baluarte contra criptomoedas estrangeiras indesejadas, o yuan digital carrega expectativas, da parte das autoridades do país, que derivam de um impulso arraigado de buscar controle social, dizem analistas.

Um cliente escaneia o código de pagamento Alipay em um mercado em Xangai, China - Hector Retmal - 27.out.2020/AFP

“O yuan digital provavelmente beneficiará a vigilância do Partido Comunista chinês sobre a economia e a interferência do governo na vida dos cidadãos chineses”, escreveram Yaya Fanusie e Emily Jin em um relatório publicado no mês passado pelo Centre for a New American Security, uma organização de pesquisa de Washington.

Os autores afirmam que a adoção do yuan digital permitirá que o banco central chinês explore um grande repositório de dados sobre as atividades econômicas de seus cidadãos. Isso se enquadra a um plano do governo para o setor de tecnologia financeira, lançado no final de 2019, que previa uma fusão de dados financeiros a fim de promover a construção de “um grande centro integrado nacional de big data”.

“Se o banco central for capaz de lançar com sucesso o yuan digital, ele seria de fato uma ferramenta crucial para o controle interno”, disse Jin. “As pessoas ainda poderiam tentar contornar a capacidade de monitoração do governo [sobre a moeda], mas imagino que isso seria incrivelmente difícil, se considerarmos que o sistema permitiria que o banco central rastreie transações em tempo real”.

Se essas capacidades não se materializarem, o banco central chinês pode receber poderes ampliados para disciplinar os mercados e teria a capacidade de impor medidas punitivas por meio do bloqueio de transações, em base de caso a caso.

Hoffman, do Australian Strategic Policy Institute, que publicou um dos primeiros estudos aprofundados sobre o yuan digital, no ano passado, diz que a moeda expandirá significativamente a capacidade de vigilância do partido.

"Por meio da moeda virtual, o Estado e partido poderiam visualizar todas as transações financeiras”, ela afirma. “As transações são completamente rastreáveis, e não haverá qualquer traço de anonimato para os usuários”.

Isentos de escrutínio?

O nível de anonimato que os cidadãos chineses terão ao usar a moeda digital continua a ser uma área cinzenta, em termos oficiais. Mu, falando em uma conferência em Singapura no ano passado, disse que um sistema de “anonimato controlado” seria adotado gradualmente.

“Sabemos que a demanda do público geral é pela manutenção do anonimato, expresso pelo uso de dinheiro em papel e moedas... concederemos às pessoas que assim exigirem o anonimato em suas transações”, disse Mu na conferência.

“Mas ao mesmo tempo, manteremos o equilíbrio entre ‘anonimato controlável’ e o combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento para o terrorismo, e também levaremos em consideração as questões tributárias, jogos de azar online e quaisquer atividades criminosas eletrônicas”, ele acrescentou.

Hoffman diz que essa ambiguidade causa preocupações. “Requerimentos como o combate ao financiamento de terrorismo e à lavagem de dinheiro são normais nos bancos centrais, mas o que é diferente na China é quem se torna alvo de escrutínio”., ela afirma. “A definição de terrorismo inclui os oponentes políticos do partido”.

Um QR Code da Alipay doe Wechat em um mercado em Xangai, China - Hector Retmal - 27.out.2020/AFP

Preocupações como essas podem prejudicar as aspirações duradouras de Pequim a promover o uso da moeda chinesa internacionalmente, como parte da ambição do país de se libertar da obrigação de liquidar a maior parte de suas transações internacionais em dólares americanos.

“Se o partido comunista tiver informações sobre todas as transações que fizermos usando o yuan digital, acho que muita gente fora da China não vai querer usar a moeda”, diz um empresário em Hong Kong, que pediu que seu nome não fosse mencionado.

Mesmo assim, a China continua a promover com entusiasmo sua campanha de internacionalização. No mês passado, o país chegou a um acordo com a Swift, uma empresa sediada na Bélgica que opera um sistema de pagamentos internacionais, em uma decisão que segundo observadores tem por objetivo promover o uso do yuan digital.

A nova entidade criada pela parceria, chamada Finance Gateway Information Services, tem por objetivo integrar sistemas de informação a fim de facilitar o lançamento da moeda digital, disseram pessoas informadas sobre o projeto. Um dos demais acionistas do empreendimento é a Cross-Border Interbank Payment System (Cips), da China, concorrente da Swift que opera com compensação de transações denominadas em yuan. Segundo a Swift, o foco da parceria não é o yuan digital, mas “questões fiscalizatórias”.

No entanto, mesmo financistas de dentro do sistema bancário chinês, dominado pelo Estado, dizem que é preciso temperar o otimismo quanto à adoção internacional do yuan digital. “Para nós, um objetivo mais importante é desafiar o domínio do dólar americano sobre a compensação de transações comerciais internacionais”, diz o diretor de um grande banco estatal chinês. “Mas o progresso nessa direção será apenas gradual”.

As razões para expectativas de progresso lento como as descritas derivam de um problema antiquado e analógico. Os estrangeiros têm pouco incentivo para deter posições em yuan enquanto o acesso aos mercados financeiros chineses continuar complicado e opaco para os investidores não especializados.

“[Um yuan digital] não eliminaria muitos dos problemas que desestimulam o uso mundial mais amplo da moeda chinesa”, disse Maximilian Kärnfelt, especialista que trabalha para o instituto de pesquisa Merics, de Berlim, cuja especialidade é a China. “Boa parte do mercado financeiro da China continua fechada aos estrangeiros, e os direitos de propriedade ainda são frágeis”.

Tradução de Paulo Migliacci

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