Economia da Argentina encolhe quase 10% em 2020 e pobreza no país cresce durante pandemia

'Gastamos todas as nossas economias', diz família sobre impacto de lockdown nas finanças da casa

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Peter S. Goodman Daniel Politi
The New York Times

Antes da pandemia, Carla Huanca e sua família faziam melhorias modestas mas importantes em seu pequeno apartamento numa favela de Buenos Aires.

Ela trabalhava como cabeleireira. Seu companheiro cuidava de um bar em uma boate. Juntos, eles levavam para casa cerca de 25 mil pesos por semana (R$ 1.500) —o suficiente para construir um segundo andar em sua casa, criando espaço extra para os três filhos. Eles também iam rebocar as paredes.

"Então tudo fechou", disse Huanca, 33. "Ficamos sem nada."

Em pleno lockdown, a família precisou de empréstimos de emergência do governo para pôr comida na mesa. Eles se resignaram às paredes sem reboco. E gastaram com serviço de internet sem fio para que as crianças continuassem estudando remotamente.

"Gastamos todas as nossas economias", disse Huanca.

A devastação econômica global que acompanhou a Covid-19 foi especialmente dura na Argentina, país que entrou na pandemia já em uma crise profunda. Sua economia encolheu quase 10% em 2020, marcando o terceiro ano consecutivo de recessão.

A pandemia acelerou o êxodo de investimento estrangeiro, que derrubou o valor do peso. Isso aumentou o custo de importações como alimentos e fertilizantes, e manteve a taxa de inflação acima de 40%. Mais de 40% dos argentinos estão mergulhados na pobreza.

Pairando sobre a vida nacional está uma renegociação inevitável no final deste ano com o FMI (Fundo Monetário Internacional), instituição que os argentinos em geral detestam por ter imposto uma paralisante austeridade fiscal como parte de um pacote de ajuda 20 anos atrás.

Com suas finanças públicas arrasadas pela pandemia, a Argentina precisa elaborar uma nova agenda de repagamentos de US$ 45 bilhões (R$ 248,6 bilhões) em dívidas ao FMI. Esse é o resultado do mais recente socorro do fundo e o maior na história da instituição —um pacote de US$ 57 bilhões (R$ 314,4 bilhões) emprestados à Argentina em 2018.

Agora sob nova direção, o fundo reduziu sua tradicional reverência pela austeridade, aliviando em parte o nervosismo habitual. Mesmo assim, as negociações certamente serão complexas e politicamente tempestuosas.

O governo argentino, liderado pelo presidente Alberto Fernández, nada em discórdia antes da eleição de meio de mandato em outubro. O governo enfrenta um duro desafio da esquerda, com Cristina Fernández de Kirchner —ex-presidente e atual vice-presidente— pedindo uma posição mais combativa com o FMI.

As empresas comentam que o governo falhou em apresentar uma estratégia capaz de gerar crescimento econômico sustentável. Livrar a Argentina da estagnação e da inflação é um objetivo que escapa aos líderes do país há décadas. Em um país que declarou a moratória da dívida externa nada menos que nove vezes, o ceticismo acompanha constantemente as fortunas nacionais, limitando os investimentos.

"Não há plano, não há caminho a seguir", disse Miguel Kiguel, um ex-secretário das Finanças que dirige a Econviews, consultoria baseada em Buenos Aires. "Como você pode fazer as empresas investirem? Ainda não há confiança."

O governo Fernández está apostando nos méritos de uma relação mais cooperativa com o FMI, tentando garantir um acordo com a instituição que poupe o governo dos duros cortes orçamentários e permita que ele gaste para promover o crescimento econômico.

Tais esperanças teriam sido irreais antigamente. Da Indonésia à Turquia e à Argentina, o FMI forçou os países a cortar gastos no meio de crises, removendo o combustível do crescimento econômico e punindo os que dependiam de ajuda pública.

Mas o FMI de hoje, liderado nos últimos dois anos por Kristalina Georgieva, moderou a tradicional obsessão do órgão pela disciplina fiscal. Ela pediu que os governos apliquem impostos à riqueza para financiar os custos da pandemia —medida que a Argentina adotou no final do ano passado.

As análises do fundo sobre a imagem da dívida argentina, e suas conclusões de que a carga não era sustentável, definiram as bases para um acordo com credores internacionais no ano passado. Os investidores afinal concordaram em descontar o valor aproximado de US$ 66 bilhões (R$ 364,7 bilhões) em títulos, superando a oposição do maior gestor de ativos do mundo, a BlackRock.

O governo argentino está seguindo sob a suposição de que poderá obter um acordo do fundo, permitindo que adie de modo significativo suas dívidas, oferecendo alívio dos pagamentos iminentes —US$ 3,8 bilhões (R$ 20,9 bilhões) neste ano e mais de US$ 18 bilhões (R$ 99,4 bilhões) no próximo— sem exigências estritas de que corte seus gastos.

"A liderança do FMI deixou claro que essa é a estrutura", disse Joseph Stiglitz, economista Prêmio Nobel, da Universidade Columbia em Nova York. O novo arranjo refletirá "o novo FMI", disse ele, "reconhecendo que austeridade não funciona e reconhecendo suas preocupações com a pobreza".

A esperada flexibilidade do FMI com a Argentina reflete sua maior confiança em Fernández e seu ministro da Economia, Martin Guzmán, que estudou com Stiglitz.

Na superfície, seu governo representa um retorno ao pensamento que animou a vida pública argentina desde os anos 1940, sob a liderança de Juan Domingo Perón. Sua presidência se caracterizava pela firme autoridade do Estado, a generosidade pública com os pobres e o desprezo por considerações orçamentárias.

Os políticos peronistas desde então despejaram ajuda em comunidades pobres e gastaram à vontade, pagando as contas com a impressão de pesos. Isso frequentemente produziu uma inflação galopante, crise e desespero.

Os reformistas assumiram o poder de forma intermitente, com mandatos para restaurar a ordem fiscal cortando os gastos públicos. Isso enfureceu os pobres, depositando as bases para o próximo levante peronista.

O presidente anterior, Mauricio Macri, assumiu como a suposta solução para esse ciclo de altos e baixos. Os investidores internacionais o comemoraram como a vanguarda de uma nova abordagem tecnocrática à governança.

Mas Macri exagerou ao explorar sua popularidade com os investidores. Ele pegou empréstimos exuberantes, enquanto se indispunha com os pobres com cortes em programas do governo. Sua onda de dívida combinada com mais uma recessão obrigou o país a se submeter à humilhação máxima —pedir ajuda ao FMI.

Nas eleições dois anos atrás, os eleitores rejeitaram Macri e instalaram Fernández, um peronista. Alguns sugeriram que Fernández poderia adotar uma posição dura com os credores, incluindo o FMI. Mas seu governo se mostrou pragmático, conquistando a confiança do fundo, enquanto mantinha a ajuda aos pobres.

"Temos de evitar seguir os antigos padrões que causaram tantos danos", disse Guzmán em entrevista. "Queremos ser construtivos e resolver esses problemas de uma maneira que funcione."

O problema mais pernicioso continua sendo a inflação, realidade que ataca empresas e famílias, aumentando a tensão sobre os pobres com maiores preços dos alimentos.

Nas grandes economias como os Estados Unidos, os bancos centrais geralmente respondem à inflação aumentando as taxas de juros. Mas isso prejudica o crescimento econômico —uma proposta insustentável na Argentina, cujo banco central já mantém as taxas em um nível inacreditável de 38%.

Em vez disso, Guzmán pressionou os sindicatos para aceitarem pequenos aumentos salariais, afirmando que pagamentos menores durarão mais se a inflação for controlada. Ele impôs o controle de preços dos alimentos, enquanto pediu que outras empresas pratiquem preços mais baixos para seus produtos.

O governo também aumentou os impostos sobre exportações, irritando pecuaristas e agricultores.

"Você gasta mais tempo preenchendo planilhas para o governo do que produzindo", disse Martín Palazón, agricultor que planta soja, milho e trigo, e cria gado próximo de Buenos Aires.

Mas os lamentos das empresas argentinas e as tensões cada vez maiores sobre os pobres coincidem com a realidade de que as perspectivas do país já estão melhorando.

A economia argentina deverá crescer quase 7% neste ano, pois as exportações de soja geram crescimento, enquanto os preços das matérias-primas dão ao país uma fonte necessária de divisas.

Muitas empresas argentinas estão em dúvida sobre se a recuperação pode ganhar ímpeto, especialmente quando o banco central mantém as taxas de juros altas.

A Edelflex, companhia próxima a Buenos Aires, cria equipamento usado por cervejarias, processadoras de alimentos e farmacêuticas para lidar com líquidos. Os altos custos dos empréstimos impediram a empresa de melhorar suas fábricas para aumentar o crescimento, disse seu presidente, Miguel Harutiunian.

"Nós inevitavelmente adotamos uma visão de curto prazo e não podemos investir em nova tecnologia", disse ele. "O objetivo final de uma companhia —ou de um país— não pode ser meramente sobreviver."

A Texcom, empresa têxtil com três fábricas na Argentina, produz tecidos para marcas internacionais de artigos esportivos. Em meio à quarentena ordenada pelo governo em março de 2020, a empresa fechou a produção. Em maio, a Texcom reabriu e mudou para uma área de grande necessidade: fornecer material para equipamento de proteção, como máscaras necessárias ao pessoal médico da linha de frente.

Mesmo assim, a produção da companhia caiu pela metade no ano passado, comparado com 2019, e ela espera que sua produção neste ano volte a apenas 70% do nível pré-pandemia.

O presidente da Texcom, Javier Chornik, já está acostumado aos altos e baixos de suas fortunas com as alterações eternamente voláteis da economia nacional.

"A Argentina está num labirinto há anos, e não consegue sair", disse ele. "O país sempre parece crescer. Então vem uma crise, e nós recuamos. Nós vamos e voltamos e nunca chegamos a lugar nenhum."

Na favela ao sul de Buenos Aires, o companheiro de Huanca havia recuperado o emprego na boate, mas o aumento dos preços da comida e do combustível efetivamente reduziu sua renda.

Então veio uma onda de casos de Covid em seu bairro. O governo impôs novas restrições, por temer variantes que se espalham rapidamente no vizinho Brasil. O patrão de seu companheiro reduziu suas horas de trabalho, cortando seu pagamento pela metade.

"Estou com medo do que poderá acontecer agora", disse ela. "Todo mundo está muito preocupado."

Traduzido originalmente do inglês por Luiz Roberto M. Gonçalves

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