Descrição de chapéu The New York Times

Victoria's Secret troca 'angels' por empoderamento feminino

Em crise, marca tenta redefinir sua imagem e até mesmo a ideia do que é sexy

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Sapna Maheshwari Vanessa Friedman
The New York Times

As "angels" (anjos) da Victoria’s Secret, modelos com corpos de Barbie que personificavam os sonhos dos playboys, foram deixadas de lado. Suas asas, feitas de penas e lantejoulas, e com peso que podia chegar aos 13 quilos, estão juntando poeira em um armazém qualquer. O “Sutiã Fantasia”, decorado com diamantes reais, já não existe. No lugar de tudo isso, a empresa escolheu sete mulheres famosas por suas realizações e não por suas proporções.

Entre elas estão Megan Rapinoe, estrela do futebol que usa cabelos cor de rosa e luta pela igualdade de gêneros; Eileen Gu, 17, esquiadora freestyle americana que descende de chineses e defenderá seu país na próxima olimpíada de inverno; Paloma Elsesser, 29, modelo birracial que luta pela inclusão e foi uma das raras mulheres manequim 48 a enfeitar a capa da revista “Vogue”; e a indiana Priyanka Chopra Jonas, 38, atriz e investidora em tecnologia.

Elas servirão de ponta de lança ao que talvez seja a tentativa mais extrema de transformação de marca na memória recente: um esforço para redefinir a versão de “sexy” que a Victoria’s Secret representa (e vende) para as massas.

Por décadas, as top models sumariamente trajadas da Victoria’s Secret, ostentando curvas dignas de Jessica Rabbit, foram o epítome de um estereótipo amplamente aceito de feminilidade.

Mulher com cabelo curto e roxo posa séria para a foto
Imagem fornecida pela Victoria's Secret mostra a estrela do futebol e defensora da igualdade de gênero, Megan Rapinoe - Ryan Pfluger/Victorias Secret -16.jun.21/The New York Times

Agora que esse tipo de imagem está em descompasso com a cultura mais ampla e a Victoria’s Secret enfrenta mais concorrência e problemas internos, a companhia deseja se tornar, nas palavras de seu presidente-executivo, uma grande “advogada” mundial do empoderamento feminino.

As mulheres aceitarão isso?

O lançamento de uma companhia separada, mais de US$ 5 bilhões (R$ 25,1 bilhões ) em vendas anuais, e 32 mil empregos em uma cadeia mundial de varejo que inclui cerca de 1,4 mil lojas dependem da resposta a essa pergunta.

É uma mudança brusca para uma marca que por muito tempo não só vendeu lingerie que expressava fantasias masculinas como também sofreu escrutínio severo nos últimos anos pelo relacionamento entre seu dono e o criminoso sexual Jeffrey Epstein, e por conta de revelações sobre uma cultura empresarial misógina que fomentava o sexismo, preconceitos de idade e preconceitos quanto ao porte físico das mulheres.

“Quando o mundo estava mudando, demoramos demais a responder”, disse Martin Waters, antigo vice-presidente dos negócios internacionais da Victoria’s Secret e indicado para a presidência executiva do grupo em fevereiro. “Precisávamos deixar de girar em torno do que os homens querem e passar a girar em torno do que as mulheres querem”.

Três mulheres negras com corpos diversos posam de lingerie para a foto
Imagem fornecida pela Victoria's Secret mostra três mulheres negras posando com lingeries da marca; ao centro da foto está a modelo e defensora da inclusão Paloma Essler - Zoe Ghertner/Victorias Secret - 16.jun.21/The New York Times

As sete mulheres, que formam um grupo chamado VS Collective, vão assessorar a marca, aparecer em anúncios e promover a Victoria’s Secret no Instagram. Elas estão se tornando parte de uma companhia que tem uma equipe executiva inteiramente nova e está formando um conselho no qual todos os assentos, exceto um, serão ocupados por mulheres.

Raramente uma empresa tão dominante em seu setor foi exposta como tão retrógrada quanto a Victoria’s Secret, depois do movimento #MeToo.

Rapinoe descreve a empresa, sem meias-palavras, como “patriarcal, sexista e como uma organização que não só definia o que é sexy pela ótica masculina e pela lente do desejo masculino como desenhava suas roupas desse mesmo ponto de vista. E seu marketing era claramente direcionado às mulheres mais jovens”. Essa mensagem, ela disse, era “realmente prejudicial”.

Mulher posa para a foto com blusa preta com ombros à mostra
Priyanka Chopra Jonas, atriz e investidora em tecnologia, faz parte do reposicionamento da marca - Andrew Eccles/Victorias Secret - 16.jun.21/The New York Times

A influência cultural da Victoria’s Secret é produto de sua posição no setor.

Embora a fatia da companhia no mercado de roupas de baixo femininas dos Estados Unidos tenha caído a 21% no ano passado, ante 32% em 2015, de acordo com a Euromonitor International, ela continua a ser uma potência. Sua concorrente mais próxima é a Hanesbrands, com fatia de mercado de 16%.

Fundada em 1977 como uma loja na qual homens podiam se sentir confortáveis na compra de lingerie, até mesmo o nome da empresa era uma referência a fantasias masculinas de damas vitorianas pudicas que se tornavam travessas no boudoir.

Leslie Wexner, um bilionário do ramo de varejo, adquiriu a Victoria’s Secret em 1982 e a transformou em um fenômeno que ajudou a determinar a visão da sociedade sobre a sexualidade feminina, e seus ideais de beleza.

Uma peça central da reputação da empresa eram as “angels” —top models como Heidi Klum e Tyra Banks, que posavam exclusivamente para a marca, muitas vezes usando lingerie, saltos-agulha e asas.

Em 1995, a companhia lançou seu desfile de moda, que combinava elementos tradicionais da passarela a características vistas com mais frequência em casas de strip-tease, e que foi transmitido ao vivo em redes abertas de televisão por quase duas décadas.

A Victoria’s Secret precisou de anos para reconhecer que seu marketing era datado. E ao longo desse período, seu valor de marca caiu e diversos concorrentes cresceram, em parte ao se posicionarem como o oposto da Victoria’s Secret, e por produzirem roupas para corpos femininos mais típicos e se concentrarem na inclusão e na diversidade.

Mulher loira posa em pé para a foto com uma roupa preta
Martha Pease, diretora de marketing da Victoria's Secret - Celeste Sloman - 15.jun.21/The New York Times

A marca também foi atacada depois que os elos estreitos entre Wexner e Epstein vieram à luz, em 2019, e uma investigação do jornal The New York Times no ano passado revelou que Wexner e seu antigo vice-presidente de marketing, Ed Razek, comandavam uma cultura de misoginia, intimidação e assédio entranhados.

“Eu sabia que precisávamos mudar essa marca há muito tempo, mas não detínhamos o controle da companhia para poder fazê-lo”, disse Waters. E quanto às "angels"? “No atual momento, não as vejo como relevantes”.

Razek e Wexner não farão parte da nova Victoria’s Secret, que será cindida da L Brands e da Bath & Body Works e se tornará uma companhia separada, no terceiro trimestre (a pandemia torpedeou uma venda a um grupo de capital privado e custou US$ 2 bilhões (R$ 10 bilhões) em faturamento à empresa).

Há mais mulheres em posições de comando, entre as quais uma nova vice-presidente de marketing, Martha Pease, que comandava a Collective Initiative.

As lojas que sobreviveram a um ano de fechamentos estão se tornando mais leves e mais iluminadas, e os manequins –que tipicamente tinham busto tamanho 32B –virão em novas formas e tamanhos.

As imagens associadas às "angels", que no passado eram exibidas até nos televisores dos banheiros das lojas, serão descontinuadas. A companhia venderá produtos como tangas e lingerie de renda, mas sua linha vai se expandir, e abarcar áreas como as roupas esportivas.

“No passado, a marca da Victoria tinha uma só lente, a lente definida como ‘sexy’”, disse Waters. E embora isso tenha vendido bem durante décadas, também impediu que a empresa oferece produtos como sutiãs para amamentação ou sutiãs para mulheres que sofreram mastectomias (porque peças como essas não eram consideradas sexy).

Outra decisão foi a de vender sutiãs esportivos com armação (que eram sexy mas não muito populares). A marca tampouco celebrava o Dia das Mães (que não é sexy).

Há muita gente que considera a maternidade como sedutora, mas a miopia da lente da Victoria’s Secret era tamanha que essas pessoas jamais foram ouvidas, quanto mais atendidas.

“Como mulher gay, penso muito sobre aquilo que achamos sexy, e é algo que estamos bem posicionadas para fazer, porque não preciso usar a coisa tradicional para ser sexy, e nem penso que a coisa tradicional seja sexy, para minha parceira ou para as pessoas com quem namorei”, disse Rapinoe. “Acho que funcionalidade talvez seja a coisa mais sexy que podemos realizar na vida. E às vezes um produto só precisa ser cool para ser sexy”.

A Victoria’s Secret, que enfim realizou uma campanha de Dia das Mães no mês passado e publicou fotos de uma modelo grávida, em breve começará a vender sutiãs de amamentação. Também anunciou que trabalharia com novos parceiros, como Rapinoe e Chopra Jonas, em linhas de produtos que serão lançadas no segundo trimestre de 2022.

Embora “provavelmente fosse hora de acabar com as 'angels'”, a grande força do mercado de lingerie terá de encontrar um equilíbrio entre ir em frente e manter os clientes existentes, disse Cynthia Fedus-Fields, que foi presidente-executiva da divisão de vendas por catálogo da Victoria’s Secret.

“Se a empresa era um negócio de US$ 7 bilhões (R$ 35,2 bilhões) antes da Covid, e se boa parte desses US$ 7 bilhões (R$ 35,2 bilhões) foi construída com base em uma abordagem escancaradamente sexy, é preciso cuidado com o que vai ser feito”, ela disse.

Homem posa em pé para a foto em um local luxuoso
Raúl Martinez, diretor criativo da Victoria’s Secrets, disse que sua filha de 15 anos o convenceu a trabalhar para a marca - Celeste Sloman - 15.jun.21/The New York Times

De acordo com Raúl Martinez, contratado como diretor de criação da empresa em janeiro, todos os aspectos da marca estão sendo reconsiderados.

“Ela tem de ter um propósito, uma razão, e estar lá para que o consumidor possa ver que estamos evoluindo”, ele disse, reconhecendo que foi sua filha de 15 anos de idade que o convenceu a aceitar a proposta da Victoria’s Secret.

“Ela disse que eu devia aceitar por eles, pela Geração Z”, afirmou Martinez.

Mas resta a questão: por que mulheres como Rapinoe e Chopra Jonas arriscariam seus nomes e emprestariam sua credibilidade à Victoria’s Secret? A linha entre se vender ao inimigo ou se infiltrar nele pode ser difícil de distinguir.

“Com certeza vai haver pessoas que não entenderão o sentido disso”, disse Rapinoe, que admitiu que, quando abordada inicialmente, “eu mesma achei absurdo, e não entendia por que eles quereriam trabalhar comigo”.

Ela disse que foi convencida pela disposição dos executivos da marca a reconhecer seus erros e a história, e pelo fato de que seu papel não se limitaria ao de um tradicional “embaixador de marca”, mas se estenderia a consultoria sobre a linguagem que a empresa usa, a variedade de produtos que oferece e a narrativa que ela propõe.

Elsesser disse que sua decisão de colaborar com a Victoria’s Secret vem da “escala bruta da situação”.

“Não me tornei modelo só para fazer coisas bacanas. Eu queria mudar o mundo”, ela disse. “Com plataformas como a VS, por meio das quais você entra nas casas das pessoas, é possível promover mudanças radicais”.

Ela considera que parte de seu papel é fazer lobby para que a Victoria’s Secret aumente sua linha até o tamanho XXXXXL, disse —no momento, a empresa oferece sutiãs até o tamanho 42G e roupas de dormir até o tamanho XXL.

O VS Collective também inclui a modelo trans brasileira Valentina Sampaio; a modelo e refugiada Adut Akech, do Sudão do Sul; e Amanda de Cadenet, fotógrafa e criadora do #Girlgaze, plataforma digital para mulheres fotógrafas. Todas elas, nas palavras de Rapinoe, são pessoas que “não eram um público-alvo típico da marca no passado”.

Quanto ao desfile anual da empresa, Waters disse que era muito provável que ele voltasse em 2022, com formato muito diferente. O que a marca deve começar a oferecer em breve é um podcast, uma mídia que não requer visual, com as mulheres do coletivo.

“Mudar a marca vai requerer muitos passos, para garantir que eles tenham a confiança dos consumidores, e que não estejam só se disfarçando com um banho de inclusão”, disse Erin Schmidt, analista sênior da Coresight Research.

A Victoria’s Secret está apostando uma parte de seu orçamento de marketing em que persuadir personalidades tão inesperadas a aderir à sua causa tornará mais fácil convencer os consumidores e os potenciais investidores a acreditar na mudança, o que daria novo significado ao termo “efeito halo”.

Como disse Rapinoe, “eu não sei se Victoria ainda tem um segredo”.

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci

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