Descrição de chapéu

Golfinhos, unicórnios e política industrial

Deixar para trás seres da nossa infância pode ser doloroso, mas é necessário

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Leonardo Monasterio

Doutor em Economia, coordenador-geral de Ciência de Dados da ENAP e professor do mestrado profissional em Economia do IDP

Por que muitos à direita, à esquerda e ao centro ainda defendem políticas industriais? Seus argumentos incorrem em dois erros tão frequentes quanto triviais.

Começo pelos golfinhos. Há náufragos que afirmam que golfinhos os empurraram para a praia mais próxima. Será que os golfinhos se importam com a nossa infeliz espécie? Não sabemos. Uns nos salvaram, mas outros talvez levaram náufragos para alto-mar. Náufragos mortos não falam, e assim os golfinhos mantêm a boa reputação.

Os sucessos da política industrial são celebrados por todos: políticos, empresários beneficiados e economistas que as defendem. Já os fracassos são invisíveis. Eles submergem e vão sendo esquecidos. Por vezes, algum pesquisador os exuma e quase sempre conclui que faltou (ainda mais) auxílio do governo.

Os casos bem-sucedidos da política industrial não são argumento suficiente para sua defesa, tampouco o é a cartada “mostre-me um país que tenha ficado rico sem política industrial!”. Esse é um argumento equivalente a “mostre-me um país que tenha ficado rico sem governantes ladrões!”.

Todo país rico teve governantes ladrões, e todo país pobre também. Logo, governantes ladrões não podem ser a chave do desenvolvimento. Se você só considera os resgatados pelos golfinhos, não me surpreende que os tenha em alta estima.

Um argumento mais sofisticado diz que fracassos são normais; o importante é acertar em cheio de vez em quando. Esse ponto se sustenta quando: a) os acertos são de fato consideráveis; e b) a fala vem de um investidor-anjo, usando seu próprio dinheiro, não de um gestor público, sem “skin in the game”, em um país no qual metade da população não tem saneamento apropriado. Erros têm custo. A política de informática dos anos 1980 foi demolidora para a produtividade nacional; o projeto do submarino nuclear brasileiro já ultrapassa quatro décadas, sugou dezenas de bilhões de reais e levou o almirante que o idealizou para a cadeia. Ainda não há sinal de submarino. Talvez esteja nadando com os golfinhos.

A “Falácia do Unicórnio” de Michael Munger é o outro fundamento do otimismo com a política industrial. O unicórnio é um ser mágico, maravilhoso, mas tem um problema: não existe. O Estado com super-habilidades também não. Munger propôs um teste: ao pensar em uma política governamental, substitua “governo” por “políticos que conheço, sujeitos a grupos de interesse que realmente existem”. Se a política ainda fizer sentido, é possível continuar a discussão.

Curiosamente, os mesmos que criticam o irrealismo da Teoria Econômica abandonam essa preocupação e montam no unicórnio do Estado idealizado ao tratar das políticas industriais. Esquecem que o Estado brasileiro é muito menos capaz que o da Alemanha, o da Coreia do Sul ou o de outro país desenvolvido. Qualquer política pública deve levar em conta essa limitação.

A comparação da BBC com a “nossa” EBC ilustra bem as disparidades das capacidades estatais. A primeira é defensável; já a segunda, uma tragédia. Mesmo havendo bases teóricas para as políticas industriais, a mesma teoria abandona essa recomendação quando as instituições forem fracas, e os lobbies, poderosos. Ou seja, a capacidade estatal é essencial para o sucesso das políticas industriais.

Deixar para trás o Flipper, os unicórnios e outros seres da nossa infância pode ser doloroso, mas é necessário. Só assim poderemos discutir as políticas públicas que realmente importam.

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