Fome bate de porta em porta no comércio paulistano

Nas periferias e na região metropolitana, comerciantes veem mais pessoas pedindo alimentos

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Paulistanos buscam restos de comida em feira no Jaçanã

Paulistanos buscam restos de comida em feira no Jaçanã Rubens Cavallari/Folhapress

São Paulo e Agência Mural

Quem é vendedor na avenida Comendador Sant’Anna, no bairro Jardim São José, no Capão Redondo (zona sul de São Paulo), não passa um dia sem ver pessoas pedindo comida, lanches, salgados, frutas ou verduras nas portas.

"Já vi até clientes pedirem por estarem com menos condições de comprar", diz Marcelo Dionisio, 42, gerente do Vitor Sacolões. O relato não é isolado: a situação foi confirmada por 13 comerciantes da via em pouco menos de 1 km.

A reportagem da Folha e da Agência Mural percorreu bairros da capital e da Grande São Paulo e viu pessoas que pediam dinheiro ou doações de alimentos em portas de comércios, outras que buscavam reaproveitar restos de alimentos que não foram vendidos na feira e moradores em situação de rua procurando comida em lixeiras.

Busca por alimentos descartados no Mercado Municipal de SP
Busca por alimentos descartados no Mercado Municipal de SP - Rubens Cavallari/Folhapress

As cenas contrastam com uma fala recente do presidente e candidato à reeleição Jair Bolsonaro (PL) que, confrontado sobre o agravamento da insegurança alimentar, afirmou não haver "fome para valer" no Brasil.

Morador da comunidade do Pau Queimado, na região do Tatuapé, zona leste de São Paulo, Levi da Silva Bezerra, 40, está desempregado e os dois filhos —um de 1 ano e 8 meses e outro de 4 anos— estão sem leite em casa.

Sem conseguir trabalho, a família foi ficando sem alternativa: "Ficou ruim dessa semana para cá, porque até tinha um dinheirinho guardado. Mas não consegui fazer mais bicos."

Levi conta que se conseguisse moedas, além do leite, levaria salsicha para o jantar. "A gente tenta comer pelo menos uma vez, mas café, almoço e jantar tem dia que não dá", conta.

Atualmente, 33,1 milhões de pessoas vivem em situação de insegurança alimentar grave, segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil.

'É absurdo alguém questionar que a fome exista', diz líder de projeto

Na capital, um dos indicadores que mostram o agravamento das condições sociais é o aumento do número de moradores em situação de rua. Na região da avenida Paulista, a reportagem viu moradores em situação de rua mexendo em lixeiras.

Sentada em uma calçada da avenida, próxima ao Masp, Alda Assunção, 62, observa os funcionários entrando e saindo dos prédios de escritório no entorno, enquanto experimenta a primeira refeição do dia: um copo de café com leite e um pedaço de pão, que pediu na porta de uma padaria da região. "Eu já trabalhei em um desses prédios. Perdi tudo e vim morar na rua", afirma.

Sem celular, ela tenta se manter conectada com o mundo lendo jornais de dias anteriores, que consegue nas bancas da região. Costura em uma mesma frase memórias do pai (que a queria na universidade), reclamações de dores no corpo e trechos de uma reportagem da Folha de 11 de setembro, sobre a vida de Frei Caneca.

"Já dormi várias vezes na rua que leva esse nome [também na região], é como se parte da história dele fosse também minha."

Os comerciantes da região afirmam que os pedidos por alimentos dobraram nos últimos meses. "Depois da pandemia, o número de barracas vendendo alimentos na rua caiu pela metade, mas o número de pessoas pedindo dobrou", diz Rogério Guedes, 45, dono de um ponto de venda de sanduíches na alameda Rio Claro, também na Bela Vista. "Os clientes ficam com pena."

Alda Assunção, em uma calçada na avenida Paulista
Alda Assunção, em uma calçada na avenida Paulista - Rubens Cavallari/Folhapress

Nos fundos do largo de São Francisco, na região da Sé, a Sefras (Associação Franciscana de Solidariedade) também teve de dobrar o número de refeições ofertadas em seu espaço mais conhecido de doação de alimentos, o Chá do Padre.

Mesmo com o fim das medidas restritivas por conta da pandemia, o almoço passou de 400 para 800 refeições. No inverno, cerca de cem pessoas buscam abrigo. E ainda não dá para atender toda a demanda, afirma Dalileia Lobo, coordenadora do projeto.

"A maior dor é dizer a uma família que vem buscar comida que hoje não tem mais. Houve uma mudança de perfil dos que procuram alimentos: antes, geralmente eram homens em situação de rua, mas agora vemos famílias inteiras. São mães com crianças no colo, mulheres trans, imigrantes. É um absurdo alguém questionar que a fome exista", diz.

Na rua há dois anos, Silvio Teles, 54, vive de doações e conta que trabalhava com serralheria e vidraçaria antes de ficar sem moradia. "Enfrentei a pandemia prestando serviços, a gente depende do trabalho para sobreviver, mas e quando não tem?"

O último Censo da Prefeitura de São Paulo indicou aumento na população de rua, que atingiu 31 mil pessoas. Nas periferias da cidade houve distritos em que a alta chegou a seis vezes. Na zona leste, por exemplo, houve aumento de 7.000 para 9.000 pessoas nessa situação.

Na zona norte de São Paulo, no Jardim Brasília, a família de Ednalda Ezilia, 44, tem recebido ajuda em mercados e feiras do bairro. Para sobreviver, busca alimentos perto do vencimento, frutas, legumes e verduras que não estão mais visualmente bonitos para venda.

Ela e o marido conseguem pedaços de frango de uma granja do bairro, além de carcaças de peixe na feira. "Com as doações, sustento minha casa e ajudo as minhas filhas e netos. E também consigo ajudar outra família da região", diz Ezilia.

Em um mercado, é preciso chegar no horário para garantir a doação. "Fora do horário eles brigam e os alimentos vão para o lixo", diz.

Jonathan Brito Campos, 20, do Jardim Noronha, no Grajaú, zona sul da capital, tem recorrido a trabalhos pontuais, conhecidos como "bicos", mas também precisa de ajuda.

Ele veio da Bahia, onde trabalhou como pintor profissional, mas não conseguiu emprego na mesma área. "Aqui em São Paulo, às vezes, as pessoas oferecem trabalho pesado, mas querem pagar uma miséria. Acham que só porque o cara não tem condições, tem de ficar aceitando humilhação."

'É frustrante não poder ajudar sempre', diz atendente

Na padaria Plenitude, também no Grajaú, a atendente Camila Matheus, 29, conta que são dezenas de pessoas por dia que param para pedir ajuda. "Pedem alimentos, vendem balas, sacos de lixo. Uma vez ou outra a gente ajuda, mas é frustrante ter que dizer 'não’ por não poder ajudar sempre", conta a atendente.

Segurança em supermercado St. Marche, em SP
Segurança em supermercado St. Marche, em SP - Rubens Cavallari/Folhapress

Com o aumento da fome, a presença de segurança em supermercados também tem feito parte da rotina de alguns estabelecimentos. Em duas unidades do St. Marche há ronda de seguranças próximos à geladeira onde é guardada a carne.

Procurada, a rede não respondeu até a publicação da reportagem. Em março, a Folha mostrou que algumas redes de supermercado haviam colocado cadeados nas geladeiras.

As feiras livres também são locais onde se busca ajuda, em especial após a xepa. Em duas delas, na zona norte, no Jaçanã e no Tremembé, a Folha viu pessoas tentando aproveitar restos de verduras e alimentos que não foram vendidos.

A atendente Andradina Soares, 37, vive esse cenário.

"Ganho um salário bem baixinho, mesmo assim não tenho condições, então reciclo coisas na feira como resto de comida para levar para minha filha. Levo tomate, cebola e cabeça de peixe", afirma.

Ela mora no Jardim Horizonte Azul, em Itapecerica da Serra, na Grande São Paulo. Mesmo enfrentando essa situação, ela tenta ajudar outras pessoas. "Uma vez estava almoçando perto do mercado e dividi minha marmita com uma senhora sem nada. É difícil", desabafa.

"Quem diz que não existe fome ou que ela acabou não vê quem recicla comida ou quem está passando fome. Mas posso apresentar cada lugarzinho em que as pessoas estão passando fome, levo para conferir se tem fome ou não tem."

Gabriela Carvalho , Karine Gomes , Renata Leite , Tatiane Araújo , Douglas Gavras e Rubens Cavallari
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.