Descrição de chapéu Saneamento no Brasil

Quem eram os tigres de águas servidas, pioneiros do saneamento no Brasil

País não soube aproveitar pioneirismo de Pedro 2º em meados do século 19 no Rio de Janeiro; siga essa história em 5 capítulos

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São Paulo

A aprovação do marco legal do saneamento básico, em 2020, e os debates sobre o tema que devem ocorrer nos próximos meses, sob o governo Lula, colocam em evidência as iniciativas neste campo ao longo da história do país.

Nota-se desde o Brasil colônia uma trajetória sinuosa, na qual prevalecem apostas mal sucedidas e omissões. Oportunidades desperdiçadas ajudam a explicar a posição do país em um recém-divulgado ranking global de oferta de água e esgoto tratados, com dados da Unicef e da OMS (Organização Mundial da Saúde).

Aqueduto da Carioca em aquarela do barão Henrich Von Howensteer - Reprodução do livro "Rio Antigo de Camões"

A oferta de água potável alcança 86% da população, o que deixa o Brasil na 85ª posição em um ranking de 137 países. O esgoto tratado chega a 49% dos brasileiros, o que nos leva ao 76º lugar entre 129 países.

Oito especialistas —alguns da academia, outros da iniciativa privada— contribuem para essa tentativa de contar a história do saneamento básico no país, dividida em cinco capítulos.

1 - Os tigres das águas servidas

Nos núcleos urbanos do período colonial, uma das obrigações dos escravizados era buscar água limpa nos rios e levá-la em talhas ou jarros para os seus senhores. Também cabia a eles recolher nas casas as "águas servidas", como o esgoto era chamado na época, e despejá-las longe dali.

"Os dejetos domésticos eram depositados em barris armazenados nos fundos das casas e dos comércios. Ou em valas abertas ou cobertas por lajedos, embora proibidos pela fiscalização. Os escravos negros desobedientes e a população branca desempregada [...] eram ‘punidos’ com a função de transportar, quase sempre à noite, esses tonéis de dejetos para as áreas de descarte", escrevem Aspásia Camargo e Márcio Santa Rosa sobre o Rio de Janeiro no livro "A Epopeia do Saneamento".

No século 18, a cidade acompanhou a construção da maior obra de engenharia vista até então na colônia. Concluído em 1723, o Aqueduto da Carioca levava água do Morro do Desterro (atual Santa Teresa) para o centro do Rio. Bem mais tarde, aquela estrutura passou a ser conhecida como Arcos da Lapa.

Naquele período, localidades como Rio e São Paulo ganhavam suas primeiras redes de chafarizes, dando aos seus moradores acesso mais fácil à água potável. Em outras cidades, como Salvador, essas fontes só começaram a ser construídas ao longo dos anos 1800.

"Não existiam mecanismos de bombeamento, como temos hoje. Por isso, buscava-se a melhor solução para que as águas fossem dos pontos mais altos para os mais baixos, fazendo derivações nos chafarizes", explica Edison Carlos, presidente do Instituto Aegea, braço socioambiental do Grupo Aegea, uma das principais companhias privadas de saneamento no Brasil.

A infraestrutura hídrica vivia uma fase de renovação, mas a carga de trabalho pouco mudava. Ainda eram os escravizados que carregavam água para as casas, agora retiradas dos chafarizes, e davam um jeito de se livrar dos dejetos, despejando-os em rios ou em valas.

Levados em tonéis, os excrementos muitas vezes tinham substâncias como a amônia, que, ao respingar sobre as peles negras, deixavam marcas brancas. Por conta da formação dessas manchas, mulheres e homens incumbidos desse serviço pesado passaram a ser chamados de "tigres" ou "tigrados". Lugares como São Paulo e Recife mantiveram esse tipo de trabalho até os anos 1880.

Evidentemente, as populações dessas cidades conviviam com mosquitos e mau cheiro, especialmente nas áreas portuárias. Em passagem por Salvador em 1832, na expedição do Beagle, Charles Darwin ficou maravilhado com a paisagem, mas registrou no seu diário o fedor da Cidade Baixa.

Cartão-postal de 1925 mostra a Cidade Baixa, em Salvador, área criticada por Darwin devido ao mau cheiro - Reprodução do livro "Lembranças do Brasil"

2 - O imperador sanitarista

Até aqui, estamos tratando de uma espécie de pré-história desse tema, na visão de estudiosos como Denise Tedeschi, historiadora especializada na vida urbana do Brasil nos séculos 18 e 19. É só em meados do 19 que, segundo ela, podemos efetivamente falar em saneamento básico no Brasil.

Naquele momento, o país enfrentava novas condições, que exigiam respostas do poder público: as cidades se adensavam; as exportações se intensificavam, um avanço que obrigava os portos a respeitar condições mínimas de higiene; e, principalmente, surtos de doenças, como febre amarela, tornavam-se cada vez mais frequentes.

"Os engenheiros do século 19 começaram a pensar no trânsito das águas para preservar a salubridade dos centros urbanos. A relação entre fornecer e eliminar água passou, então, a ser um assunto central para esses especialistas", diz Tedeschi.

É nesse contexto que dom Pedro 2º tomou uma decisão relevante para o Rio, então capital. Para entender a visão pioneira do monarca, é preciso saber um pouco o que se passava em Londres.

Péssimas condições de higiene, com vias públicas fétidas, impulsionaram surtos de cólera, que provocaram ondas de mortes na capital britânica, sobretudo a partir da década de 1830. Graças às ações de líderes como Edwin Chadwick e às descobertas de médicos como John Snow, Londres conseguiu fazer uma ampla reforma sanitária, que incluía medidas como a abertura de largos e extensos canais subterrâneos, conectados a modernas estações de tratamento de esgoto.

Nas palavras de Aspásia Camargo, socióloga que atuou como secretária-executiva do Ministério do Meio Ambiente no governo FHC, essa é "a revolução que rege a passagem da barbárie para a civilização".

Por conta da perspicácia do imperador, o Rio se tornou, segundo ela, uma das primeiras cidades fora do Reino Unido a adotar essas inovações da engenharia. "Dom Pedro 2º foi um imperador sanitarista. Prometeu que faria uma grande mudança nessa área e cumpriu a promessa", afirma.

Sob o reinado dele, o governo fechou contrato com a City, empresa inglesa de capital privado, e iniciou em 1850 os preparativos para uma reformulação da infraestrutura da cidade. O primeiro sistema de esgotamento sanitário completo foi inaugurado no bairro da Glória 14 anos depois.

Nessa seara, portanto, o Brasil conseguiu se aproximar do Reino Unido àquela altura. Mas a distância entre eles só se acentuou nas décadas seguintes. O ranking de esgoto tratado elaborado pela OMS em parceria com a Unicef mostra os britânicos na 11ª posição, muito à frente do 76º lugar que nós, brasileiros, ocupamos. Ou seja, não soubemos tirar proveito do pioneirismo de Pedro 2º.

A City se manteve à frente dessas operações no Rio de 1857 a 1947. Em São Paulo, essa evolução ocorreu de modo diferente.

Segundo o censo de 1872, a capital paulista tinha 31 mil habitantes, que representavam apenas 11% da população do Rio, com 275 mil. Embora as dimensões fossem bem diferentes, algumas situações das duas cidades se assemelhavam e testavam a paciência da opinião pública, como mostra um registro de outubro de 1862.

"O remedio para este estado de cousas nâo póde ser addiado. Chegou a vez de clamar bem alto que o pôvo exige agua [grafia da época]", publicou o jornal Correio Paulistano.

Assim como o Rio na segunda metade do século 19, São Paulo se viu obrigada a suplantar a rede de chafarizes. O governo paulista incentivou acionistas brasileiros e estrangeiros a se unir em torno da criação de uma empresa de saneamento e, em 1877, nasceu a Companhia Cantareira de Águas e Esgotos.

Vista do Ipiranga, por Miguel Dutra (1847); ao fundo, está a Serra da Cantareira - Reprodução do livro "O Sequestro da Independência" (Companhia das Letras)

A inauguração de reservatórios como o da Consolação, em 1881, inspirou otimismo entre os paulistanos, mas logo vieram as queixas de abastecimento insuficiente e baixa qualidade da água. A iniciativa privada, que se saía razoavelmente bem no Rio, era vista como uma decepção em São Paulo.

Engenheiros influentes como Antônio Francisco de Paula Souza (mais tarde fundador da Escola Politécnica) e Ramos de Azevedo passaram a defender que a empresa fosse encampada pelo governo, lembra Cristina de Campos, professora do Instituto de Geociências da Unicamp e autora do livro "Ferrovias e Saneamento em São Paulo".

Paula Souza defendia que esse fosse um trabalho sob responsabilidade do estado. "A iniciativa privada não levaria esses projetos adiante porque construir redes de água e esgoto não traria retorno financeiro", diz ela. "É curioso comparar aquela realidade com os dias de hoje. Atualmente, esse é um negócio muito lucrativo, a água, infelizmente, virou uma mercadoria. Mas naquele final de século 19, não era interessante sob esse ponto de vista."

Em 1892, o governo assumiu a Companhia Cantareira, reembolsando os seus acionistas. A capital paulista teria, a partir de então, a Repartição de Águas e Esgotos (RAE), que durou mais de 50 anos.

O sanitarista Emílio Ribas e sua mulher, Maria Carolina Bulcão, em foto sem data - Divulgação

Na virada do século 19 para o 20, o Brasil pôde contar com uma geração de médicos notáveis, como Oswaldo Cruz, no Rio, e Emílio Ribas, em São Paulo. Não satisfeitos com suas descobertas científicas, eles se dedicavam a conscientizar a população em relação às medidas para combater as epidemias.

Como se viu posteriormente, o alerta deles não foi suficiente para que o país enfrentasse sua precariedade sanitária com o rigor necessário.

Erramos: o texto foi alterado

A empresa City se manteve à frente das operações de tratamento de esgoto no Rio de 1857 a 1947 e não a partir de 1957. 
 

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