Descrição de chapéu Selic juros

Arcabouço não estabiliza dívida a longo prazo, diz Solange Srour

Para economista-chefe do Credit Suisse, críticas aos juros estão deslocadas e autonomia do BC é crucial para crescimento

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São Paulo

Pouco mais de três meses após o início do terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o balanço da economista Solange Srour é o de que o governo do petista começou antes mesmo do dia 1º de janeiro, com a aprovação da PEC (proposta de emenda à Constituição) que ampliou gastos. Ela vê uma mudança profunda da agenda econômica, em comparação com o governo anterior, de Jair Bolsonaro (PL).

Para a economista-chefe no Brasil do banco Credit Suisse e colunista da Folha, o Banco Central tem razão ao manter os juros básicos no patamar atual, de 13,75%, e as críticas do governo ao presidente da entidade, Roberto Campos Neto, não podem sinalizar que a autonomia da instituição está em risco.

A economista-chefe do Credit Suisse, Solange Srour
A economista-chefe do Credit Suisse, Solange Srour - Eduardo Anizelli/Folhapress

Ainda na sua avaliação, um dos marcos da atual gestão, o novo arcabouço fiscal apresentado pelo ministro Fernando Haddad (Fazenda) ainda precisa deixar claro se irá alcançar o objetivo de sustentabilidade da dívida. "É um arcabouço que não traz uma estabilidade da dívida a médio e longo prazos. Para isso acontecer, vamos precisar de uma reforma do gasto."

Como avalia os primeiros três meses de governo Lula? O governo começou ainda antes do dia 1º de janeiro, houve um trabalho importante na aprovação da PEC [proposta de emenda à Constituição], que trouxe consequências importantes para a agenda econômica. Foi aprovado um aumento de gasto da ordem de 2% do PIB [Produto Interno Bruto], quando a herança do que seria necessário aprovar para manter o Auxílio Brasil [hoje rebatizado de Bolsa Família] seria da ordem de 0,8%.

O governo entregou boa parte das promessas no campo social e vai tentar trazer isso com mais tributos. A reforma mais importante desse mandato é a tributária, por enquanto, é a única que temos. É um governo que começa desde o resultado das eleições com uma agenda econômica, na minha opinião, bastante divergente da anterior —de maior gasto e um perfil social diferente.

Agora ficou claro que o pilar fundamental da política fiscal para trazer sustentabilidade da dívida vai ser o aumento da arrecadação.

O conjunto proposto no novo arcabouço é positivo? Ainda não está claro se o objetivo da sustentabilidade da dívida vai ser alcançado com o que foi anunciado até agora. São intenções para se alcançar um superávit maior do que aquilo que o mercado estava esperando, mas entre a intenção e a realidade existe uma distância enorme.

A base principal desse arcabouço está no aumento da tributação, não no controle do gasto. Pelo contrário, vamos voltar a ter as regras que existiam antes do teto de gastos para a educação, a saúde. O objetivo do resultado primário ser alcançado vai depender se o Congresso estará disposto a aprovar o aumento da carga tributária.

Mas é um arcabouço que não traz uma estabilidade da dívida a médio e longo prazos. Para isso acontecer, vamos precisar de uma reforma do gasto. Fizemos a reforma da Previdência, mas nenhuma economia que tem os gastos que o Brasil tem hoje se sustenta. Falta muito para trazer os gastos obrigatórios para um crescimento mais próximo daquele do PIB, sem a regra do teto, eles vão crescer acima.

É um retrocesso em relação ao teto? Não era importante pensar em uma forma destravar investimentos públicos, algo que o presidente se queixou ao longo da campanha? Acho que o teto de gastos era uma regra que obrigava o Brasil a fazer escolhas. Entendo que o teto sofreu críticas, pois ele perdeu sentido ao ter sido tão modificado a ponto de abrir espaços para novos gastos. Mas se o caminho era aumentar o gasto social em três vezes no pós-pandemia, essa discussão poderia estar no debate público com alguma reforma de gastos que não seriam primordiais neste momento. Sem ajuste em outros gastos, a solução é aumentar imposto, e a carga tributária já é muito elevada. A discussão forçada pelo teto foi o que acabou levando à aprovação da reforma da Previdência. O teto estava cumprindo seu papel até que passou a ser muito fácil aprovar uma emenda constitucional para aumentar gastos sem discutir reformas.

O arcabouço de Haddad pode ter uma vida mais longa do que teve o teto? Vejo como uma ponte para discutir de novo os gastos, e o timing dessa discussão vai depender muito das condições de mercado, que acabam interferindo diretamente na economia. Sem discutir uma reforma do gasto, vamos precisar ficar aumentando a carga tributária todo ano e a economia não vai se sustentar. Se isso acontecer, o PIB potencial do Brasil, que já não é alto, vai ficar mais baixo, ninguém deseja que o crescimento continue baixo. Creio que será inevitável discutir novamente um arcabouço.

Como avaliar o desempenho de Haddad como ministro? O Ministério da Fazenda está bastante consciente dos desafios que o Brasil tem pela frente. Apesar de todas as surpresas positivas que tivemos nos últimos dois anos, em relação ao resultado primário e as estatísticas da dívida em relação ao PIB, os desafios estruturais estão presentes. O ministério está agindo dentro dos limites políticos do governo. Esse trabalho de trazer a reoneração dos impostos [sobre combustíveis] e alguma previsibilidade em relação à trajetória das contas públicas é bem-vindo. Caso contrário, a incerteza levaria a uma queda mais significativa do PIB.

Pode ser que durante quatro anos o que já foi apresentado seja suficiente, mas ainda não temos como avaliar isso por tudo depender do crescimento econômico, de variáveis que afetam a arrecadação. É um começo de trabalho que é positivo, mas ainda há bastante a ser feito.

O presidente tem reclamado das análises sobre o desempenho da economia, um pessimismo que o Datafolha também captou na população. Esse pessimismo é justificado? O mercado espera uma desaceleração expressiva do PIB do ano passado para este ano, mas não é pessimismo, é a realidade. Estamos com uma taxa de juros alta e que deve ficar assim por muito tempo. No nosso cenário, a Selic [taxa básica de juros] deve ficar estável até o fim do ano.

O Datafolha também mostrou uma insatisfação do brasileiros com os juros. A inflação continua alta, vivemos em um país que tem inércia elevada e existe uma desaceleração da atividade em curso, que poderia ajudar no processo deflacionário e está ajudando, mas não o suficiente para trazer uma previsão de inflação baixa neste ano. Temos a expectativa de que ela fique em torno de 6,5%. Esse é um dos motivos para os juros estarem altos, o Banco Central não pode abrir mão desse objetivo de estabilidade de preços, também por ser algo prejudicial para qualquer governo.

Fora a inércia e a inflação alta, tem todo o questionamento sobre o regime de metas e a própria autonomia de fato do BC, que tem trazido uma expectativa de inflação mais alta para os próximos anos. Os títulos indexados à inflação acabam embutindo uma inflação maior e isso atrapalha a queda de juros. Outra questão é se vai haver um maior protagonismo de empresas estatais e bancos públicos, algo que afeta o investimento privado. Essas questões hoje trazem perspectiva de investimento mais baixo.

O presidente Lula erra ao criticar a política de juros do BC? O BC manter a autonomia de fato é crucial para o crescimento. A história mostra que o crescimento econômico é favorecido no médio prazo, quando o BC atua de forma autônoma. Vemos ataques não só de governos, mas de empresários, economistas e muita gente nos jornais achando que o BC está na contramão.

Na minha opinião, ele está preservando uma conquista importante para o Brasil. A autonomia do Banco Central foi um longo processo e pode ficar em risco, mesmo que o Congresso não aprove o seu fim. O mais importante é a autonomia ser mantida na prática, nenhum país relevante está discutindo mudanças no arcabouço monetário.

Haddad também tem falado sobre o custo do crédito ofertado pelos bancos e o governo prevê um pacote para destravar o crédito. Há espaço para isso? O custo do crédito ser alto é um debate de longa data e não tem a ver com a organização do sistema financeiro. Aumentou muito a competição nos últimos anos, com a entrada de fintechs. É claro que, se a Selic precisa ficar alta para conter a inflação, temos uma elevação da inadimplência e do spread [diferença entre o custo de captação dos bancos e a taxa final cobrada do cliente]. Se isso for atacado de uma forma intervencionista, o efeito pode ser o oposto.

Ao criticar o mercado, Lula chegou a citar o Credit Suisse [o banco passa por um processo de aquisição emergencial na Suíça], dizendo que o banco dava palpite sobre tudo e que havia sido salvo pelo Estado. Não é uma questão. Trabalhamos de uma maneira bastante técnica, todas as nossas projeções, cenários são formados através de modelos econométricos, um arcabouço econômico. Projeção de inflação, de PIB, de Selic, tudo é feito por meio de modelos.

Como deve ser a relação do mercado com o governo Lula? O arcabouço pode acalmar os ânimos? Na verdade, não existe uma relação que tem de ser acalmada. Precisamos de mais informações sobre o que está sendo proposto e entender como vai ser a relação entre o Congresso e o governo.

Como as expectativas vão evoluir é algo que vai depender muito da conclusão desse arcabouço, do que vai acontecer com a política monetária e se o BC vai conseguir atuar de forma autônoma e reduzir a Selic. Também é preciso sempre contextualizar o Brasil no cenário global, a agenda de reformas passa a ser mais ou menos importante a depender da conjuntura externa. Só que ela muito provavelmente não vai ser tão favorável como foi para o Brasil nos últimos anos, o vetor de crescimento externo é menor daqui para frente e o cenário é menos positivo daqui para frente.


RAIO-X
SOLANGE SROUR, 46

Economista-chefe de Brasil do banco Credit Suisse. É mestre em economia pela PUC-Rio

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