Descrição de chapéu Reforma tributária

Saúde, educação e alimentos não precisam de imposto menor na reforma tributária, diz especialista

Para Rita de La Feria, desconfiança dos brasileiros é empecilho à reforma tributária

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São Paulo

Em viagem ao Brasil para falar sobre a reforma tributária com representantes do setor público e privado, a especialista em impostos sobre o consumo Rita de La Feria, da Universidade de Leeds, afirma que uma alíquota menor para alimentos, saúde e educação não é a melhor forma de proteger os mais pobres, como mostra o sistema europeu em vigor há mais de 50 anos.

A devolução de impostos para alguns consumidores e o uso desses recursos em políticas públicas seriam a forma mais eficaz de atingir quem precisa ser desonerado.

Ela afirma não ser possível desonerar totalmente um setor com o novo imposto em discussão e que será necessário criar listas de produtos e serviços beneficiados.

mulher de roupa preta e camisa branca
A especialista em impostos sobre o consumo Rita de La Feria, da Universidade de Leeds - Divulgação

"O sistema que funciona bem é com uma só alíquota. Depois pode dar subsídios a alguns setores ou regiões do país que precisam mais, pode ajudar famílias mais carentes, pode beneficiar aquilo que o povo brasileiro acha que é prioritário", afirma a especialista.

Segundo de La Feria, o Brasil tem duas diferenças em relação a outros países que adotaram um IVA (Imposto sobre Valor Agregado), a convivência com um sistema ruim e cheio de benefícios fiscais há muitos anos e a desconfiança de que aquilo que estará na lei não será cumprido. Em especial, a garantia de que o imposto pago na aquisição de insumos poderá ser abatido do valor a ser recolhido na etapa seguinte da cadeia produtiva.

"Percebo que essa desconfiança vem de muitos anos de contencioso tributário. As pessoas perguntam, e se não devolver o crédito? Como não devolve o crédito se está na lei? Há um receio de que mude a lei, mas as práticas não mudem."

O Brasil caminha para ter dois IVAs, um federal e outro de estados e municípios. É possível construir um bom sistema tributário dessa forma?

Sim. Um só IVA é tecnicamente superior. Qualquer situação que tenha mais de um pode criar atrito entre as duas legislações e gerar custos de conformidade. Mas há países que têm IVA Dual, como o Canadá. Já seria um avanço enorme para o Brasil.

Mesmo com alíquotas diferenciadas por setor?

Isso não existe no mundo e nem sequer pode existir no Brasil. Não há forma de fazer esse desenho legislativo. O desenho possível é por tipo de bem ou serviço. Uma lista de bens ou serviços que estão excluídos da alíquota normal. Não há nenhum país que tenha alíquotas reduzidas por setor.

Não há uma alíquota diferenciada, por exemplo, para a agropecuária?

Não existe. Todos os setores podem ter serviços ou bens sujeitos à alíquota reduzida e serviços ou bens sujeitos à alíquota normal. Obviamente isso aumenta os custos de conformidade. Cada empresa vai ter de fazer a diferenciação entre todos os produtos. Esse mito de que vai ter um setor que vai ter uma alíquota reduzida e que vai ser muito simples, vai só se beneficiar, isso não existe em lugar nenhum do mundo. Existe por bens ou serviços, é uma listinha.

Por que o Brasil deveria seguir um sistema diferente do europeu, que adota múltiplas alíquotas?

Cada país europeu tem entre uma e cinco alíquotas. A razão não é técnica, é histórica. A única justificativa técnica para aplicar muitas alíquotas é a diferenciação para os mais pobres. Essa questão dos setores não é uma razão técnica. Nos anos 60, quando o IVA foi introduzido na Europa, a ideia era proteger os mais pobres, então foram introduzidas as alíquotas reduzidas.

Quando chegou nos anos 80 sabíamos que não estava dando resultado. Começamos a verificar que as reduções de alíquota não eram repassadas para os preços. As margens eram absorvidas pelas empresas. Mesmo quando eram repassadas, mesmo nos produtos mais essenciais, sempre quem consome mais são os mais ricos. Então quem se beneficia mais são os mais ricos daquela sociedade. E cria uma série de problemas práticos, de contencioso, de interpretação das listas, de custos e distorções econômicas.

Nos anos 80, a Comissão Europeia tentou pela primeira vez unificar tudo em uma só alíquota, mas isso não passou. E desde então estamos constantemente a tentar. A lição com o que se passou na Europa é que erros no desenho inicial do IVA são muito difíceis de corrigir. Uma vez esses interesses instalados, a tendência é sempre aumentar a lista das alíquotas reduzidas.

Se o Brasil não tiver força política agora para introduzir uma só alíquota, se introduzir uma alíquota reduzida, vai haver muitas pressões nos próximos anos para incluir mais produtos na listagem. Os países desenvolvidos que têm IVAs mais recentes, como Canadá, Austrália, Nova Zelândia, países riquíssimos, têm uma só alíquota e que funciona bem.

O Brasil sempre fez muita política de incentivo setorial e muitas tentativas de redução de desigualdades regionais e de renda por meio do sistema tributário. Como fazer isso com um imposto de alíquota única?

Os impostos sobre o consumo, em geral, não são uma boa forma de se atingir esses objetivos. Há muitas vezes essa confusão entre o objetivo da política e o instrumento para chegar a essa política. O sistema tributário tem outras partes que são mais adequadas a atingir objetivos sociais e distributivos. É o caso do imposto sobre a renda.

[A combinação] imposto mais despesa também faz muito desses objetivos. Recolha o imposto e depois [o governo] pode fazer as políticas sociais e distributivas. O "cashback" é precisamente essa situação: coleta de quem tem mais e devolve para quem não tem. Agora, não faz sentido do ponto de vista tributário isentar aqueles que podem pagar.

Isso vale para educação, saúde, alimentação?

Claramente. No caso de saúde e educação, as pessoas mais pobres não vão ao sistema privado. Não há despesa com hospitais privados nas camadas mais pobres. Eu tenho um estudo com um colega economista. Olhamos para os dados de vários países de diferentes níveis de renda e verificamos que em países que isentam a educação e saúde esse benefício vai para os 20% mais ricos. Verificamos que sempre que há uma distinção entre o público e o privado, seja educação, seja saúde ou seja outra coisa qualquer, quase só exclusivamente os 20% do topo é que utilizam o privado. Quando isenta, está a isentar esses.

No sistema público não se cobra IVA, porque não há preços. É um imposto sobre os preços. Quando estamos falando de isenção para educação e saúde, estamos isentando pessoas que estão no escalão dos 20% mais ricos. Quando se faz isso, a regressividade do imposto aumenta.

A mesma coisa para os chamados bens de mérito, ou seja, livros, atividades culturais etc. Não faz sentido não coletar imposto de quem compra livros, quando pode coletar esse imposto e depois dar de volta na despesa pública como investimento na biblioteca pública, através de subscrições para jornais, revistas etc., para pessoas que neste momento não têm acesso a isso e podem ter se for dado pelo Estado.

Esse mecanismo de devolução de imposto, o "cashback", funciona bem em outros países?

Sim. O primeiro país que introduziu isso foi a Nova Zelândia. De lá para cá foi introduzido em outros países. O Canadá também tem um sistema de "cashback". A diferença principal para o Brasil é que esses sistemas foram pensados ainda na era pré-digital.

O Brasil tem a vantagem de introduzir já na era digital. Nesse paper, propomos um sistema de "cashback" automático, usando tecnologia em tempos real. Isso está sendo tentado no Uruguai. Quando vai à loja, dá o número do CPF, o sistema identifica como pessoa de baixa renda e imediatamente devolve para sua conta o valor do IVA pago. Ele nunca chega a pagar, portanto. É como uma isenção personalizada. Nós chamamos de IVA progressivo.

O mesmo valeria para incentivos que tratem da questão ambiental?

Na Europa há pressão para diminuir a tributação deste ou daquele produto, mas não é um bom instrumento para atingir esse objetivo. Impostos que são desenhados especificamente para diminuir o consumo de carbono, isso está sendo testado e com sucesso. Há propostas de tributação do carbono. É uma vertente diferente. Uma tributação para diminuir as consequências negativas do consumo de certos produtos. Foi assim que tributamos o tabaco, o álcool etc. O carbono não é diferente em termos de objetivos.

Como outros países lidaram com situações como manter uma zona franca?

A situação de Manaus já está equacionada nas PECs, mas ela não é única, muitos países têm regiões específicas que necessitam de mais ajuda porque estão atrasadas em relação ao resto do país.

Quase nada no Brasil é único. Só tem uma coisa diferente dos outros países: vocês têm um sistema ruim há muito tempo.

Algumas questões que se colocam, como certos setores querendo tratamento diferencial, zonas regionais que têm regimes especiais, como a Zona Franca de Manaus, pequenas empresas, os sistemas de devolução, o resto do mundo todo já passou por isso. A diferença é o fato de vocês terem esse sistema há tantos anos.

Há interesses já sedimentados e também outro problema com o qual eu me confrontei, que é diferente do que presenciais em outros países: o nível de desconfiança. As pessoas aqui no Brasil têm muito medo. Percebo que essa desconfiança vem de muitos anos de contencioso tributário. As pessoas perguntam, e se não devolver o crédito? Como não devolve o crédito se está na lei? Há um receio de que mude a lei, mas as práticas não mudem.

Isso me pegou de surpresa. Por que no Brasil estão tão preocupados com a não cumulatividade quando em outros países isso tende a ser uma questão técnica. A mensagem que gostaria de passar em relação a isso é que não há razão para achar que vai falhar no Brasil.

Uma outra questão levantada por alguns empresários é que o IVA seria um imposto antigo e que teria dificuldade de tributar a chamada economia digital.

O IVA é um imposto muito novo. Os impostos sobre a renda são muito mais antigos, e não vejo ninguém dizer que devemos abolir o imposto de renda. O IVA foi inventado nos anos 20, implementado pela primeira vez no modelo como conhecemos hoje em 1954 e depois se espalhou pelo mundo todo. É um fenômeno inédito. Não há nenhum outro imposto que neste período de 70 anos tenha se espalhado assim pelo mundo todo.

Os avanços que têm sido feitos na adaptação do IVA à economia digital têm sido um estrondoso sucesso. Temos esse debate na OCDE para adaptar a tributação sobre o lucro das empresas à economia digital e temos dificuldade de aprovar essas medidas. Se você olhar para o Pilar 1 da reforma sobre a renda, vai ver que está a parte da tributação no destino. Essa tributação no destino é inspirada no sucesso do IVA. Introduziram os "digital services taxes" em vários países europeus, tudo com base no princípio do destino, porque viram qual foi o resultado no IVA.

Há uma pressão muito forte do setor de serviços contra a reforma tributária. Alguns empresários entendem que haverá uma taxação extra sobre o faturamento dessas empresas.

Para todos os prestadores de serviços que tenham transações em que os clientes são outras empresas, a tributação para eles vai ser zero. Tudo o que cobrar vai ser creditado. Em sua maioria, os serviços vão passar de uma alíquota de 5% para zero. Não é o caso quando transmite para o consumidor final.

O que muitos setores colocam como receio é justamente que o serviço prestado ao consumidor seja muito onerado.

Para dizer que será mais onerado, tem de partir do pressuposto que agora está menos. A tributação no Brasil é tão complexa que muda de produto para produto. Tem um monte de imposto embutido. Ninguém pode dizer com certeza que esse serviço tem X ou Y. É impossível dizer qual o ponto de partida. Acho esses cálculos não confiáveis, porque a economia está toda distorcida.

Quanto vai aumentar e se vai aumentar no B2C [venda ao consumidor final], não tenho certeza. E nem acho que vá ser uniforme. Cada serviço tem um ponto de partida diferente do que está agora. Me parece que há muito pânico e preocupação sem fundamento. Mas não é difícil dizer que vai ser zero entre B2B [negócios entre empresas].

O setor de serviços também tem defendido desonerar a folha de pagamento transferindo essa tributação para o consumo ou criando uma nova CPMF, sobre transações financeiras. Como a senhora vê essa proposta?

Quase ninguém tem CPMF e quase todo mundo tem IVA. CPMF distorce a economia. Além de cumulativa, cria distorção entre pagamentos em dinheiro e não dinheiro. Não é um imposto tecnicamente bom. O IVA se espalhou porque é tecnicamente um imposto superior.

A gente tem propostas de uma transição do sistema tributário de seis a dez anos. Outros países tiveram que conviver por tanto tempo com dois sistemas?

A maioria dos países tem um sistema de transição normalmente de dois a três anos. A do Brasil é particularmente longa. Aqui tem um sistema de benefícios tributários de tantos anos que para fazer o desmame vão precisar de mais tempo do que outros países. Do ponto de vista técnico preferiria um período de transição menor, mas compreendo que um país que tem tantos anos precise de mais tempo.

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