Menino que vendia cocadas na rua vira CEO de maior startup que permite visitar imóveis no metaverso

Empreendedor negro fala sobre racismo no setor de tecnologia: "já autorizaram a presença da minha sócia, que é branca, mas não a minha", conta

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São Paulo

Criada em 2022 para substituir a maquete física e os apartamentos decorados, a startup Metamazon Solutions faz uma réplica virtual de casas e prédios, em que o consumidor pode interagir em qualquer dispositivo, ou presencialmente, com óculos de realidade virtual.

Segundo o CEO Alder Lima, 40, a tecnologia reduz custos, e arquitetos e engenheiros podem detectar falhas de design em projetos com mais facilidade.

A empresa, já a maior do segmento, foi apontada pela revista Exame como destaque na WebSummit Rio, megaconferência de tecnologia, e pela Pequenas Empresas e Grandes Negócios, como aposta para aperfeiçoar a construção civil.

O empresário Alder Lima, 40, hoje CEO da Metamazon Solutions, empresa de soluções para o metaverso
O empresário Alder Lima, 40, hoje CEO da Metamazon Solutions, empresa de soluções para o metaverso - Arquivo Pessoal

Em seu relato, Alder conta que enfrentou a resistência de empresários em investir em um negócio liderado por uma pessoa LGBTQIA+ e preta e o racismo no setor de tecnologia, majoritariamente branco.

"Sou filho de um motorista de ônibus e de uma costureira, morávamos em Alcântara, bairro de São Gonçalo, no Rio. Sempre fui instigado a empreender por causa dos meus pais. Passávamos um momento financeiro bem complicado, e a solução era vender coisas.

Eu era o mais novo de três irmãos, o caçula, e vendia cocadas e picolés. Esse foi um gatilho muito importante para a minha vontade de vender e fazer algo diferente —queria mudar a realidade da minha família.

Isso se tornou ainda mais forte quando uma colega da minha mãe, branca, disse que ‘Quem nasceu para ser pano de chão nunca será tapete’. Me lembro da minha mãe chorando e de situações em shoppings onde éramos perseguidos e, muitas vezes, destratados.

Prometi a mim mesmo que quando crescesse, sairia de casa e mudaria a realidade dos meus pais, e seria alguém diferente, circularia nesses ambientes.

O empresário Alder Lima, ainda criança, com seus irmãos mais velhos, em São Gonçalo, no Rio de Janeiro
O empresário Alder Lima, ainda criança, com seus irmãos mais velhos, em São Gonçalo, no Rio de Janeiro - Arquivo Pessoal

Como minha mãe é mineira e sonhava voltar ao estado natal, decidi tentar a vida em Uberlândia (a 537 km de Belo Horizonte).

Fui buscar qualquer oportunidade que me desse renda. Fui operador de telemarketing durante alguns meses, busquei emprego com vizinhos, e um deles tinha uma empresa de cadeiras e mesas para aluguel em festas. Com o tempo, abri uma empresa de cerimonial e eventos em Uberlândia.

O negócio ia bem, mas precisou fechar devido a um fornecedor, que não entregou os itens de vários casamentos, e foi embora com o dinheiro. Tive de ressarcir todos os casais, e fiquei sem dinheiro.

Tive depressão, intensificada pela separação com meu então companheiro. Meses depois, encontrei um conhecido, que trabalhava em uma emissora de TV e me propôs participar de um projeto.

Ali, encontrei ainda mais dificuldades pelo racismo —em um programa de viagens, passei a acessar locais onde o corpo negro não está presente e nem é bem-vindo. Muitos não queriam minha presença, nem patrocínio vingou, e o projeto foi encerrado meses depois.

Era um segundo baque, questionava minha capacidade, a depressão aparecia novamente.

Fui trabalhar cobrando devedores de uma empresa de tecnologia, e lá cresci: tive o cargo de supervisor, trabalhei no RH e fui diretor regional. Aprendi o que era gerenciar e decidi iniciar uma terceira empreitada.

Montei a Ar360, empresa credenciada pelo Google que facilitava a criação dos tours virtuais no aplicativo de mapas, em Fortaleza (CE) e, pela carência desse setor no Nordeste, foi um sucesso, mesmo na pandemia.

Pensava em internacionalizar o negócio, mas mais uma vez, um baque —um funcionário desviou dinheiro das operações, e as dívidas surgiram. Fui chamado de ‘ladrão’, e disseram que ‘só podia ser preto mesmo’ para deixar um negócio desses ir ao chão.

Sem amigos e sem possibilidade de me reerguer, até pensei em tirar minha própria vida. Pensei em voltar ao Rio e meus pais concordaram, se eu ‘abdicasse’ de ser LGBT, como se isso fosse possível.

Tornei-me entusiasta em tecnologia, e quando surgiu o metaverso, antigos clientes e colegas me perguntaram sobre esse novo setor. Fui a Rio Branco (AC), com a ajuda de uma amiga, para fazer uma palestra.

Com o boom do metaverso, pensei em reconstruir minha presença na tecnologia com o que já tinha da Ar360. Mariana Tavares, minha atual sócia, aportou investimentos para a Metamazon Solutions, fundada no Acre.

Apesar do alto custo, pensei em criar uma solução para substituir a maquete física para o consumidor entrar no decorado e visualizar sua possível casa sem a empresa gastar muito material.

O empresário Alder Lima em palestra sobre o metaverso e os impactos no mundo empresarial, na ExpoAcre, em Rio Branco
O empresário Alder Lima em palestra sobre o metaverso e os impactos no mundo empresarial, na ExpoAcre, em Rio Branco - Arquivo Pessoal

E daí vem o racismo, que nos impede de abrir portas com empresas, de negociar com alguns chefes que simplesmente não me deixavam apresentar o projeto. Em uma situação, autorizaram a presença de Mariana —que é branca— , mas não a minha.

Mesmo com vários ‘nãos’, vim para São Paulo, onde as coisas mudaram radicalmente, especialmente quando mais empresários passaram a olhar para a iniciativa e nos convidaram para a Web Summit.

E foi na capital paulista que entendi o peso do racismo nas minhas iniciativas, especialmente quando conheci a Casa Preta Hub, do Instituto Feira Preta. Lá tomei a consciência do quão poucos são os líderes de startups negros e tive contato com outras pessoas pretas inovadoras.

É na Casa Preta Hub que, pela primeira vez, me senti igual a todo mundo e percebi que muitas das minhas quedas envolviam uma questão muito mais profunda —o racismo. É ali que faço amigos sempre, me inspiro, me motivo, e descubro que minha luta estava incompleta por não pensar em questões raciais.

A Metamazon Solutions é um sucesso, mesmo com toda a dificuldade de empreender sendo pessoa preta e estamos em processo de mudança da sede para São Paulo.

Hoje olho para o passado e penso em como o racismo nos coloca na posição de concordar com certas coisas para nos encaixarmos em sociedade, e isso nos degrada como pessoas pretas.

Ainda não consegui melhorar plenamente a vida dos meus pais, apesar do distanciamento por ser LGBTQIA+, mas agora, com estabilidade, devo cumprir isso em pouco tempo. Dali para frente, não espero nada a não ser luta, mas diferentemente de antes, consigo juntar forças com quem passa por desafios muito parecidos.

Aqui, eu tenho os meus."

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