Relator do Carf propõe perdão de multas e juros a dívidas tributárias recuperáveis

Relator também atendeu a pedido da Receita, em derrota para a PGFN

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Brasília

O relator do projeto de lei que altera as regras do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais), deputado federal Beto Pereira (PSDB-MS), inseriu no texto a possibilidade de devedores de impostos terem desconto em multas e juros mesmo que os débitos sejam classificados como recuperáveis pela Fazenda.

O texto abre caminho para uma ampliação significativa da chamada transação tributária, cuja lei foi sancionada em 2020 para negociação de débitos irrecuperáveis ou de difícil recuperação. Os valores a serem transacionados também precisam hoje estar em litígio.

Caso a mudança proposta pelo deputado vá adiante, dívidas recuperáveis e que não estejam em fase de litígio podem receber o alívio. A proposta gerou desconforto entre técnicos do governo, que veem uma nova renúncia de arrecadação e um drible na Lei de Responsabilidade Fiscal –que, em seu artigo 14, estabelece condições para benefícios que reduzem receitas (como compensação orçamentária)

O deputado Beto Pereira (PSDB-MS), relator do projeto que altera as regras do Carf - Gilmar Felix / Agencia Camara

O texto modifica a lei da transação tributária, que prevê descontos em multas, juros e encargos legais para casos em que a Fazenda dificilmente obteria os valores devidos. O deputado adiciona um trecho dizendo que a transação pode ser feita, alternativamente, para "valores que sejam quitados à vista".

Pereira negou que tenha criado uma espécie de Refis (programa de refinanciamento de dívidas, iniciativa que costuma ser criticada por dar vantagens para quem não paga impostos em dia). "O contribuinte leva à Receita o débito que ainda não foi autuado e ganha com isso a possibilidade de ter um parcelamento daquilo que ainda não havia sido lançado à Receita", afirmou.

"Portanto, vai haver com isso, a possibilidade de trazer, à luz do direito, débitos que não estavam ainda e que não foram lançados pela Receita Federal. Isso não é um Refis, porque o débito não está lançado, não existe autuação desse débito, ele inexiste ainda para a Receita Federal."

Ao ser questionado se essa mudança estava acordada com a Fazenda, o relator afirmou que a pasta se "pronunciou de forma favorável com relação a sua concepção", mas que pode existir "algum detalhe que o ministério possa contestar".

O relatório do projeto que muda regras de funcionamento do Carf foi apresentado nesta segunda-feira (3). O Carf é um tribunal administrativo que julga disputas bilionárias entre União e contribuintes sobre o pagamento de impostos.

A previsão inicial era de que o projeto fosse votado ainda nesta segunda, mas o relatório foi apresentado ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), somente no domingo (2) e para a equipe econômica no dia seguinte.

Outra mudança no texto, que deve ser votado no plenário da Câmara dos Deputados nesta terça (4), envolve o chamado voto de qualidade. O projeto prevê condicionantes para a volta do mecanismo –que determina que, em caso de empate nas votações, cabe ao presidente do colegiado (indicado pelo Ministério da Fazenda) o poder de decisão sobre o caso.

Segundo a proposta apresentada, multas e juros serão zeradas.

"Nossa posição é a de que, nos casos de empate nos julgamentos realizados pelo Carf, a Fazenda Pública deve dispor do voto de qualidade. Contudo, o crédito tributário constituído sob tal condição deve receber um tratamento especial e favorecido", diz o deputado no relatório.

O relator da matéria usou como base o acordo feito em fevereiro entre Fazenda, Abrasca (Associação Brasileira das Companhias Abertas) e OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) livrando contribuintes de multas e com descontos nos juros em caso de empate no julgamento do Carf.

O projeto enfrentou resistências duras do Congresso até chegar ao relatório apresentado hoje. O ministro Fernando Haddad (Fazenda) teve que negociar um meio-termo e, depois, transformar a MP (medida provisória) em projeto de lei para atender um desejo da Câmara e ver o texto avançar.

O próprio Haddad dialogou diretamente com o setor privado, com congressistas, com o relator da matéria, Pereira, e com o presidente da Casa, Lira, para negociar a matéria.

O projeto é um dos principais itens do pacote de ajuste fiscal apresentado por Haddad em janeiro para tentar reequilibrar as contas públicas, que vão retornar ao terreno negativo em 2023 após a expansão de despesas articulada durante a transição de governo. O ministro também precisa gerar receitas para compensar a liberação de mais gastos proporcionada pelo novo arcabouço fiscal.

O voto de qualidade foi derrubado em 2020 pelo Congresso, ampliando as perdas da União no tribunal —que já servia como instrumento de manobra de grandes empresas para adiar por anos o recolhimento de tributos.

Outra mudança envolveu o valor mínimo em disputa para que o contribuinte possa recorrer ao Carf. O piso é hoje de 60 salários mínimos (R$ 79,2 mil) e o projeto de Haddad subia esse limite para mil salários mínimos (R$ 1,32 milhão). O relator, no entanto, rejeitou a mudança proposta por Haddad, fixando em 60 salários mínimos.

A avaliação majoritária da Câmara é a de que a mudança proposta pela Fazenda limitava a capacidade de contribuintes de questionarem as infrações lançadas pela Receita Federal.

Ao ser questionado se essa medida não poderia diminuir a eficácia na arrecadação do governo federal, o relator afirmou que o Legislativo tem uma atribuição "que é justamente mediar".

"Não estamos aqui aperfeiçoando a relação do contribuinte do Fisco com o objetivo arrecadatório. Estamos buscando um texto médio que possa dar equilíbrio e garantir, em todas as decisões do Carf, isenção e modulação."

A Casa também reviu a chamada "classificação de conformidade", iniciativa incluída no projeto e que autoriza a Receita a deixar de punir contribuintes que tenham uma espécie de selo de bom pagador de tributos caso eles deixem de cumprir momentaneamente alguma obrigação junto ao Fisco.

A ideia do governo é que o conceito de conformidade seja baseado em critérios como regularidade do cadastro e do recolhimento dos tributos, exatidão das informações prestadas, entre outros itens definidos pela Receita.

O relator do projeto mudou a redação e estabeleceu que a classificação considerará também critérios como "a compatibilidade entre as escriturações e declarações e os atos praticados pelo contribuinte, além de outros definidos pela Receita Federal". Seu objetivo era deixar mais nítidos os critérios para definir quem é um bom pagador.

Inicialmente, o texto havia sido enviado ao Legislativo como uma MP, mas diante da contrariedade de Lira com o rito da tramitação das MPs e sob risco de perda de validade, a matéria foi transformada em um projeto de lei com regime de urgência.

Até maio deste ano, o Carf julgou 5.578 casos dos quais 264 terminaram empatados, necessitando o voto de qualidade, informou o Ministério da Fazenda. Os casos que utilizaram o mecanismo têm um valor somado de R$ 24,8 bilhões.

O relatório determina que será aplicada a mesma regra que valerá daqui para a frente em todas as decisões tomadas com o voto de qualidade durante a vigência da MP. Em caso de mudança na composição do colegiado que tomou a decisão, o julgamento será anulado e um novo será realizado.

O relator também atendeu um pedido da Receita Federal, ampliando os poderes do Fisco em acordos com devedores interessados em quitar débitos, processo chamado de transação tributária —avançando sobre um terreno que hoje é da PGFN (Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional). A PGFN era contra a medida.

Como a Folha mostrou, os representantes da Receita agiram à revelia de Haddad, que já havia pedido internamente aos órgãos que deixassem a questão de lado para não contaminar o projeto.

"A realização de ajustes pontuais na legislação relativa à transação, em especial a inclusão da possibilidade de que ela abranja a cobrança dos débitos administrados pela Receita Federal ainda não inscritos em dívida ativa", diz trecho do relatório.

Questionado sobre esse impasse, Pereira afirmou que não irá arbitrar "essas particularidades de cada uma das corporações".

Como o Carf é uma instância administrativa, é comum que suas decisões sejam questionadas no Judiciário. Em caso de mudança de composição, a decisão será anulada e um novo julgamento será realizado.

A Câmara precisava votar o projeto nesta terça porque o texto está trancando a pauta de votações desde o último dia 21 –dessa forma, nenhum outro projeto de lei poderia ser apreciado em plenário. A Constituição determina que projetos enviados pelo presidente com urgência sejam deliberados em até 45 dias em cada uma das Casas do Congresso.

Esta será uma semana decisiva para os projetos econômicos considerados prioritários pelo governo federal. Também deverão ser votados o novo arcabouço fiscal, que voltou à Câmara com mudanças propostas por senadores, e a reforma tributária. O objetivo de Lira é que todas essas matérias sejam apreciadas na Casa ainda neste primeiro semestre e antes do recesso parlamentar.

Segundo Pereira, a demora em apresentar o relatório se deu pela ausência de parlamentares em Brasília na semana passada —quando não houve sessões da Câmara. O parlamentar afirmou que isso gerou um "prejuízo muito grande" no debate da matéria, e indicou que se reunirá com bancadas nesta terça para discutir o conteúdo do relatório.

Pereira disse que o seu texto ainda poderá sofrer mudanças até ser votado em plenário. Ele afirmou que está aberto para receber sugestões e que avalia que há uma "possibilidade de uma evolução na formatação [da matéria] em plenário".

Ele disse ainda que a pauta da Câmara é decidida por Lira, e que o presidente da Casa quer "dar celeridade às matérias que estão sendo tratadas como prioritárias nesta semana". "Ele tem sido enfático que é uma semana de mobilização em torno dessas matérias."


Entenda o Carf

O que é o Carf?

Tribunal administrativo que decide em segunda e terceira instâncias disputas entre governo e contribuintes sobre pagamentos de impostos.

O que é o voto de qualidade?

Poder de um representante do governo decidir o julgamento (a favor ou contra o contribuinte) em caso de empate.

O que foi feito em 2020?

Foi extinto o voto de qualidade, fazendo com que empates automaticamente dessem ganho de causa aos contribuintes. O governo fala em uma perda anual de R$ 59 bilhões com a medida.

O que o governo Lula decidiu em janeiro?

O governo enviou ao Congresso uma MP (medida provisória) recriando o voto de qualidade, com efeito imediato. A iniciativa precisaria receber aval do Congresso dentro de quatro meses para não perder a validade. Depois, a MP foi transformada em projeto de lei.

O que o governo negociou depois disso?

O Ministério da Fazenda e representantes das empresas chegaram a um meio-termo com uma espécie de "regulamentação" do voto de qualidade: em caso de empate, permaneceria a cobrança do valor principal do débito, mas são cortados multas e juros (desde que a dívida seja quitada ainda em âmbito administrativo).

Qual a situação no Congresso?

Precisa ser votado pela Câmara e, depois, segue para o Senado.

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