Como uma cerveja mexicana se tornou campeã de vendas nos EUA

Antes de ser beneficiada pela recente reação contra a Bud Light, marca Modelo já vinha em ascensão

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Madeleine Speed Christine Murray
Londres e Cidade do México | Financial Times

Em 2015, os executivos americanos da gigante de bebidas Constellation Brands notaram algo inesperado: latas de sua Modelo Especial, uma cerveja mexicana pouco conhecida, consumida principalmente por latinos na Califórnia, estavam se tornando populares entre os frequentadores do badalado East Village, em Nova York.

Desde então, a proporção de consumidores de Modelo Especial passou de 80% de hispânicos e 20% de "mercado geral" para perto de 50-50. As vendas mais que triplicaram em menos de uma década, passando de 51 milhões de caixas em 2013 para 187 milhões em 2022.

Em junho deste ano, a Modelo –cujo slogan é "Fabricada para quem tem espírito de luta"– tornou-se a cerveja mais vendida nos Estados Unidos. Ela tirou a Bud Light do primeiro lugar após uma reação conservadora à marca, que usou em sua propaganda uma influenciadora transgênero, o que fez as vendas despencarem.

latas de cerveja em uma prateleira
Cervejas Corona e Modelo em um supermercado em São Rafael, na Califórnia (EUA). - Getty Images via AFP

A ascensão da cerveja mexicana, uma Pilsner servida em garrafa larga com tampa dourada, reflete a crescente influência cultural do consumidor latino nos EUA, mesmo além das comunidades hispânicas, e a ascensão de décadas dos produtores mexicanos, assim como o sucesso de suas campanhas de publicidade a partir de 2016.

Antes de ser adotada pela turma moderna do East Village, os principais consumidores da Modelo no início de 2010 eram mexicano-americanos da Califórnia, disse Jim Sabia, vice-presidente-executivo da Constellation que supervisiona a cerveja. Depois de estabelecer uma base, a empresa, que também produz as marcas mexicanas Corona e Pacifico para o mercado americano, aumentou sua presença no leste do país antes de lançar uma campanha nacional em 2016.

A marca lançou seu primeiro comercial em inglês naquele ano, centrado no slogan "espírito de luta" e apresentando a Modelo como "a cerveja que mais cresce na América".

Um comercial contava a história de um veterano latino que teve que lutar pela cidadania americana e ao mesmo tempo correr perigo, enquanto outro mostrava uma avó mexicana fazendo tortilhas na velocidade de um raio. Ambos têm "The Ecstasy of Gold" de Ennio Morricone, do filme "Três Homens em Conflito", tocando ao fundo.

"Não era como se eles tivessem uma campanha latina e outra não-latina (...) Isso exigiu coragem", disse Alex Lopez Negrete, proprietário de uma agência de publicidade homônima com foco hispânico. "É tão rica em cultura latina sem ter que gritar. Um irlandês-americano vai pensar: ‘Entendi. Eu tenho uma avó assim’."

Nadine Sarwat, analista da Bernstein, disse que o rápido crescimento da Modelo foi "um reflexo de os EUA se tornarem mais hispânicos com o crescimento populacional... mas também como isso está permeando a cultura". Ela acrescentou que a Modelo seguiu uma trajetória semelhante à da tequila, que deverá ultrapassar a vodca como bebida destilada mais vendida nos Estados Unidos este ano, segundo o grupo de pesquisas de bebidas IWSR.

A população latina do país cresceu para 19,1% da população total em 2022, em comparação com 13% em 2000, conforme o último Censo dos EUA.

"Agora temos uma identidade latina nos EUA. Isso faz parte do sucesso da Modelo", disse López Negrete. "Não conheço nenhum profissional de marketing que não tenha dados em sua mesa que digam sim, isso é enorme."

Um canal fundamental para a Constellation chegar ao mercado de massa foram os eventos esportivos, um acordo assinado em 2017 para que a Modelo fosse a cerveja parceira do Ultimate Fighting Championship (UFC) e em 2021 se tornasse patrocinadora oficial da final do campeonato de futebol universitário.

Apesar do desejado domínio "total do mercado" pela Constellation, Sabia insiste que o México permanece no centro da marca. "Esse consumidor hispânico central ainda é de extrema importância. Até a nossa estratégia de inovação se baseia nisso", disse, referindo-se a uma nova linha de bebidas, adaptação das tradicionais "aguas frescas" do México.

copo de cerveja e garrafa long neck
Cerveja Modelo Especial, a marca mais famosa do México. - Ceveza Modelo/Facebook

O sucesso da Modelo Especial nos EUA também é o ápice da ascensão de décadas da indústria cervejeira no México, que é hoje o maior exportador mundial da bebida, expedindo 42 milhões de hectolitros em 2021, um aumento de 11,5% em comparação com o ano anterior, segundo a Cerveceros de México, associação nacional dessa indústria.

Na década de 1920, a cerveja ainda era um produto de luxo para uma população que consumia principalmente bebidas fermentadas, como o pulque, feito com seiva de agave, segundo a historiadora Gabriela Recio. Em 1925, um grupo de imigrantes espanhóis abriu a primeira fábrica do Grupo Modelo, que existe ainda hoje num cruzamento movimentado de uma área nobre da Cidade do México.

A Modelo cresceu de forma constante ao longo do século 20, e na década de 1980 ultrapassou suas principais rivais, pouco antes da abertura da economia do país com o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta), na década de 1990.

"Deixou de ser algo pouco conhecido... [para ser] um produto de consumo de massa, hoje exportado para todos os lugares", disse Recio.

Em 2000, o Grupo Modelo tinha mais de 60% de participação de mercado, e as cervejeiras dominantes no México estavam ganhando força nos EUA e atraindo a atenção de gigantes globais.

A holandesa Heineken adquiriu a Cervecería Cuauhtémoc Moctezuma da Femsa em 2010, e em 2012 a belga Anheuser-Busch InBev comprou a Modelo por US$ 20 bilhões, o maior negócio da história do México.

A AB InBev concordou em 2013 com os reguladores antitruste dos EUA em vender os negócios do Grupo Modelo nos EUA à Constellation por US$ 4,75 bilhões –o que torna ainda mais impressionante o eclipse da Bud Light, fabricada pela AB InBev, neste verão.

Mas embora uma reação conservadora à colaboração da Bud com Dylan Mulvaney, uma figura transgênero do TikTok, tenha dado um impulso à Constellation, Sabia disse que a Modelo não teve de fato muito boicote e se beneficiou do espaço de varejo e promocional que a Bud Light deixou vazio.

"Não estamos atraindo muitos consumidores de Bud Light para a Modelo. Eles permanecerão no segmento dominante", disse ele, acrescentando que a empresa esperava ultrapassar a Bud dentro de dois a três anos sem a disputa.

A questão de um bilhão de dólares, segundo Sarwat, é quanto mais a Modelo crescerá.

A Constellation e a ABInBev, que se beneficia das vendas da marca fora dos EUA, não divulgam a receita da Modelo, mas a cerveja representou cerca de 47% do volume total de cerveja da Constellation no ano passado, segundo Sarwat. Ela acrescentou que a receita de cerveja do grupo foi de US$ 7,5 bilhões no ano encerrado em novembro.

"O bebedor de Bud Light irritado [com a colaboração transgênero] tenderá a ser um homem branco em estados de tendência republicana, com valores conservadores. O bebedor da Modelo ainda superestima o hispânico", disse ela. Mas, devido ao preço premium da Modelo e ao conhecimento relativamente baixo da marca, há muito espaço para crescimento no mercado principal. "Muitos americanos que bebem marcas convencionais vão querer trocar com o tempo", disse ela.

Mesmo depois de anos de campanha, o reconhecimento espontâneo da Modelo –uma medida de quantas pessoas entrevistadas citaram a cerveja sem um estímulo prévio– foi de apenas 10% este ano, de acordo com a Constellation Brands.

Comentaristas americanos apontaram a ironia de que uma reação liderada pelos republicanos contra a Bud Light tenha ajudado uma cerveja mexicana importada a ocupar o primeiro lugar nos EUA, especialmente devido ao fato de alguns políticos republicanos terem como alvo os imigrantes mexicanos.

"Os consumidores estão orgulhosos de que a cerveja número um nos EUA hoje seja do México", disse Sabia. "Você sabe, nós posicionamos essas marcas para todos. Então algumas pessoas dirão: 'Ah... é uma cerveja mexicana? Nós não processamos isso. Nós nos concentramos no que o consumidor quer."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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