Beneficiária do Bolsa Família cria rede de apoio e atende mais de 100 crianças

Dyane Ayala, 41, recebe benefício há cinco anos; na pandemia, montou projeto ao ver a fome chegar: 'Um fortifica o outro'

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São Paulo

Aos 18 anos, quando decidiu sair do Brasil e morar no Paraguai com o então namorado, natural daquele país, a dona de casa Dyane Souza Marinucci Ayala, 41, tinha como sonho construir uma nova vida longe e imaginava para si um destino diferente do de sua mãe e de sua avó, moradoras de uma comunidade na Vila Nova Curuçá, extremo leste da capital paulista.

Era início dos anos 2000 e a jovem, que havia conhecido Flaminio Glicel Ayala, 43, dois anos antes, vivia momentos de felicidade, interrompidos ao saber que um de seus irmãos tinha sido vítima de bala perdida. Voltou para o Brasil, para o bairro onde foi criada.

Dyane Ayala, 41, recebe Bolsa Família há cinco anos; na pandemia, montou uma ONG e, hoje, ajuda mais de cem famílias no extremo leste de São Paulo - Zanone Fraissat/Folhapress

Rafael Souza Ribeiro, 35, o irmão baleado, escapou com vida. Portador de anemia falciforme, ele tem dificuldades de locomoção e precisava de cuidados após nove AVCs (acidentes vasculares cerebrais), que deixaram sequelas. Dyane só queria estar com o irmão e a família.

Na época, a mãe, Rosimeire Dias Souza, 56, e a avó, Elza Gomes Souza, 80, eram responsáveis por uma rede de distribuição de leite em parceria com o governo estadual. O programa Bolsa Família, lançado em 2003 e que hoje atende mais de 20 milhões de famílias, ainda não existia.

A jovem torcia o nariz para o trabalho voluntário da mãe e da avó. "Eu não gostava do social, não", diz, até que a pandemia de coronavírus mudou tudo.

Beneficiária do Bolsa Família, no entanto, desde 2018, a dona de casa viu a fome bater à porta da comunidade com o isolamento social imposto pela Covid. O marido, que fazia bicos como costureiro, perdeu a renda. A mãe ficou desempregada. O negócio informal de venda de bolos de Dyane fechou.

Foi então que ela deu início a um projeto para ajudar as famílias, incluindo a sua, e montou a ONG (organização não governamental) Alegria de Ser Criança.

"Um fortifica o outro" é a frase que usa para contar a história de como ela, beneficiária de um programa social, sem formação acadêmica e sem emprego formal, deu início à rede de apoio que atende hoje a mais de cem famílias.

Durante pouco mais de um ano, a dona de casa conversou periodicamente com a Folha, em entrevistas que tratavam de sua situação econômica, a vida na comunidade, questões políticas, de cunho social e do dia a dia no local.

"Tem muita falta de sensibilidade, temos muitas pessoas com deficiências, mães solos, [filhos] sem pai, muita falta de medicação, de fralda, alimentos. Aí eu criei o projeto com o intuito de ajudar as famílias. Unir força pelo bem maior", afirma.

No início, a ONG Alegria de Ser Criança era um grupo de WhatsApp, que contava com 20 famílias. O projeto foi crescendo e atraindo doações. São alimentos, remédios, enxovais para bebês e gestantes, entre outros itens.

Dyane também realiza eventos para as crianças em datas festivas, com foco especial nas com deficiência. Natal, Dia da Criança e Páscoa são datas que não passam sem festejos.

"O projeto foi criado com o intuito de ajudar as famílias carentes da comunidade. Tem muita falta de sensibilidade, temos muitas pessoas com deficiências, mães solos, [filhos] sem pai, muita falta de medicação, de fralda, alimentos

Dyane Ayala

beneficiária do Bolsa Família e responsável pela ONG Alegria de Ser Criança

Nas conversas com a Folha, Dyane contava o que fazia com o dinheiro recebido do programa assistencial, relatava como as famílias encaravam as dificuldades da pandemia e como a alta inflação corroía a renda.

O primeiro contato com ela foi em 2020, quando o governo Jair Bolsonaro (PL) implementou o auxílio emergencial. Sancionado após lei proposta pelo Congresso, o auxílio foi de R$ 600.

No final de 2020, o valor do auxílio caiu para R$ 300, deixando de ser pago no início de 2021. A retomada foi em abril daquele ano, com o recrudescimento da pandemia, mas em valor mais baixo. No final daquele ano, o Bolsa Família foi substituído pelo Auxílio Brasil, que pagava R$ 400.

Os R$ 600 mensais só voltaram a ser liberados às famílias em julho de 2022, ano eleitoral, quando o governo aprovou um pacote de gastos bilionários na tentativa de se reeleger.

Bolsonaro perdeu a eleição e, em 1º de janeiro de 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) reativou o Bolsa Família, marca dos governos petistas, com o pagamento mínimo de R$ 600 por família e benefícios extras para crianças, adolescentes e gestantes.

A dona de casa ganha hoje, além dos R$ 600, R$ 50 extras pelo filho Thiago, 18, e o auxílio-gás de cerca de R$ 100, a cada dois meses, mas nem sempre consegue quitar todas as despesas da casa. Ela também é mãe da fotógrafa Verônica, 20, já casada, e desde abril, avó de Benjamin, de 5 meses.

História de vida

Dyane não nasceu na comunidade, mas chegou lá ainda bebê. Conheceu o marido, primeiro namorado e único companheiro, aos 16 anos, ao sair para comprar pão.

Foi criada pela mãe e pela avó, assim como os outros quatro irmãos. Tem poucas lembranças do pai, que abandonou a família. Em 30 anos, vi-o apenas quatro vezes. Na vida adulta, ele se tornou mais presente.

Do primeiro casamento da mãe, além de Dyane, nasceu Denis, 39. Do segundo, nasceram mais três filhos, entre eles, Rafael.

A dona de casa parou de estudar quando foi para o Paraguai, onde ficou por apenas seis meses. Ao voltar para o Brasil, conseguiu concluir a oitava série, mas deixou os estudos de novo ao ter os dois filhos.

Na infância de suas crianças, não conseguiu o Bolsa Família, liberado há cinco anos, ao fazer a inscrição para um curso de confeitaria e panificação no Sasf (Serviço de Assistência Social à Família e Proteção Social Básica no Domicílio) do bairro.

"Para fazer o curso, era preciso ter o NIS [Número de Identificação Social], então eu fiz o cadastro no CadÚnico e, pouco tempo depois, estava recebendo o benefício."

Dyane, na rua particular 14, onde vive com sua família; lá moram a mãe, a avó, um irmão, uma irmã, a cunhada, o cunhado e quatro sobrinhos - Bruno Santos/Folhapress

Sempre buscou por cursos gratuitos, que trouxessem aprimoramento para ela e os filhos. Dyane quer cursar assistência social. O ensino médio foi concluído em 2021, na pandemia, quando decidiu voltar a estudar. "Adquiri vários conhecimentos, várias coisas que eu não sabia", afirma.

Dia a dia na comunidade

O dia de Dyane começa cedo, por volta das 7 horas. Às vezes, consegue fazer caminhada. É hipertensa e precisa cuidar da saúde. Ajuda a mãe com Rafael e também cuida da avó. Na rua particular 14, onde mora, vivem ainda mais dois irmãos, dois cunhados e quatro sobrinhos.

As mensagens de WhatsApp não param de chegar. São pedidos de alimentos, remédios e enxoval. Todas as solicitações são compartilhadas no status e também no Instagram, na página da ONG.

Os anúncios rendem efeito e ela consegue atender quem lhe procura. Aos que não pedem, dá bronca.

As dificuldades de Dyane na pandemia foram relatadas pela primeira vez à reportagem em 2020, quando buscou ajuda por falhas no pagamento de seu auxílio emergencial.

Em julho do ano passado, quando o acompanhamento do seu dia a dia começou, a inflação em alta castigava a comunidade. As famílias não conseguiam comprar carne. O leite também havia sido cortado, e itens de higiene pessoal eram raros.

Em agosto daquele ano, a dona de casa estava um pouco mais animada, porque tinha conseguido fazer um bico em um restaurante aos fins de semana. No entanto, marido e filho não conseguiam trabalho.

A eleição de 2022 alterou a rotina na comunidade. Ao mesmo tempo que lhe trouxe a oportunidade de fazer bicos para candidatos em setembro, interrompeu a distribuição de cestas básicas por políticos e pelo poder público por causa da lei eleitoral, e a falta de alimentos pesou.

Segundo Dyane, quando há a doação das cestas, as famílias —incluindo a sua— conseguem usar o dinheiro do benefício para comprar outros itens, como frutas, legumes e verduras.

Em outubro, o debate eleitoral tomou conta, com discussões sobre o futuro dos beneficiários e o valor do benefício. O foco de Dyane, no entanto, era a realização da festa de Dia da Criança na comunidade.

Novembro reservou-lhe uma surpresa. Ao fazer um exame de rotina no posto de saúde, descobriu estar grávida. A gravidez durou pouco. No início de dezembro, em meio à correria para arrecadar itens para a festa de Natal e conseguir o apadrinhamento de crianças, perdeu o bebê.

Mesmo assim, Dyane realizou a comemoração de Natal, ocasião na qual fez questão de se vestir de mamãe noel para entregar os presentes. "Aprendi a dar valor nas pequenas coisas, porque tem gente que tem menos do que eu. Eu aprendi que dar é melhor que receber", diz.

Foi naquele mês que comprou uma geladeira parcelada e ganhou um armário. Chorou com a cartinha de duas crianças que pediam, no Natal, alimentos para a mãe ficar feliz.

O resultado da campanha de fim de ano surpreendeu.

"Fizemos apadrinhamento com cem crianças, a maioria com deficiência. Foram 60 com deficiência. A gente estava planejando umas 50 crianças, mas conseguimos chegar em cem. Teve lanche, saquinho de doce, bolo, refrigerante", conta, na conversa com a reportagem no final do ano.

O medo de receber menos ou perder o benefício deu lugar ao alívio em janeiro e fevereiro, quando os R$ 600 seguiram pagos normalmente, assim como o auxílio-gás. A situação melhorou um pouco, com marido e filho conseguindo bicos.

Dyane Ayala, 41, vestida de mamãe noel para receber as crianças da comunidade; em 12 meses, viveu transformações intensas em sua vida, que aceitou compartilhar com a reportagem - Bruno Santos/Folhapress

Março foi mês de ficar com a filha, que teve complicações no final da gravidez. No mês seguinte, com o nascimento do neto, a recém-avó não cabia em si de felicidade. Em maio, comemorava o fato de o filho Thiago seguir nos bicos, aprendendo a fazer calhas.

A primeira festa junina da Alegria de Ser Criança foi realizada. O sucesso foi grande, e, a pedido da comunidade, fez festa também para os adultos. Reuniram-se em um sábado à noite, com fogueira e comida.

Cada um levou um prato. "Foi festa junina e café da manhã. Sobrou e comemos no outro dia", conta.

A minha vida está melhor, não posso falar que está ruim, porque não está. Dificuldade todos nós sempre temos. Mas, para mim, hoje, a vida está melhor

Dyane

da ONG Alegria de Ser Criança

Dyane viajou em julho para o Paraguai com o marido, que há anos não via a família.

Fez ponderações sobre a situação do país nas conversas em agosto. A comunidade voltou a comer carne e beber leite, mas ainda há dificuldade para comprar itens de higiene, de limpeza e legumes e verduras. A escassez de cestas básicas a preocupa.

Na quarta-feira (27), disse à Folha ser grata porque sua família é unida e falou sobre como, com uma melhora da economia, sente-se mais feliz.

"A minha vida está melhor, não posso falar que está ruim, porque não está. Dificuldade todos nós sempre temos. Mas, para mim, hoje, a vida está melhor."

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