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Brasil exclui do consumo idosos 60+, que já superam jovens de 20 anos

Preconceito com a idade torna mais velhos invisíveis para empresas, seja como consumidores, seja como profissionais

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São Paulo

O neurologista Paulo Bertolucci, 68, decidiu trocar de carro no ano passado. O médico, professor titular de neurologia da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), foi com o filho a uma concessionária em São Paulo.

Durante todo o tempo que permaneceu no local, foi solenemente ignorado pelo vendedor, que só se dirigia ao filho de Bertolucci. O filho fez questão de esclarecer, por três vezes, que o carro era para o pai, não para ele. Nada adiantou.

"Eu fiquei de lado, incomodado, porque, afinal, o comprador era eu", disse Bertolucci, que dividiu sua experiência nas redes sociais. "De vez em quando, o vendedor fazia uma gracinha me envolvendo, como quando eu resolvi uma conta simples de cabeça e ele comentou com meu filho: 'Olha, como ele está bom de cálculo!'", afirmou. "Isso me lembrou quando você lida com alguém com deficiência intelectual e ache, erroneamente, que qualquer coisa que aquela pessoa faça merece um destaque efusivo."

mulher branca de 65 anos, de óculos e cabelos castanhos
A professora Gisela Castro, 65, cuja filha foi aconselhada no banco a não incluir a mãe no financiamento do apartamento: por conta da idade dela, o juro iria disparar. - Danilo Verpa/Folhapress

Depois de fechar o negócio, o carro de Bertolucci ficou na concessionária e o vendedor deu uma carona a ele e ao filho até em casa. Bertolucci foi na frente, explicando o caminho, mas a qualquer orientação dele, como "vire à direita", "siga em frente", o vendedor olhava para trás, para o filho do médico, a fim de se certificar de que o trajeto era aquele mesmo.

"Houve uma época em que o idoso era considerado alguém que acumulou experiências e por isso tinha a capacidade de decidir pelo grupo", disse Bertolucci à Folha. "Mas a cultura da juventude começou a ser enaltecida, o que excluiu o idoso, que passou a ser tratado como incapaz, o que não é verdade na maioria dos casos", afirmou ele, lembrando que limitação física não implica em limitação intelectual.

De acordo com a OMS (Organização Mundial da Saúde), o etarismo ocorre quando a idade é usada para categorizar e dividir as pessoas de maneira a causar prejuízos, desvantagens e injustiças, e para arruinar a solidariedade entre as gerações.

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O termo etarismo, ou idadismo (em inglês, ageism), foi criado em 1969 por Robert Butler, um gerontólogo americano que foi o primeiro diretor do Instituto Nacional do Envelhecimento nos Estados Unidos.

O Brasil tem ficado cada vez mais velho. Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em 1970, 5,1% da população tinha 60 anos ou mais, faixa etária considerada idosa, de acordo com a legislação brasileira.

Hoje, essa fatia triplicou e corresponde a 15,6% do total, ou 33,7 milhões de pessoas —um contingente ligeiramente maior que o dos jovens de 20 a 29 anos, que somam 33,5 milhões.

Na outra ponta, as crianças de 0 a 14 anos hoje representam 20,3% da população. Em 1970, elas somavam 42% dos brasileiros.

No ano passado, a OMS lançou a Campanha Mundial de Combate ao Idadismo, com base em um levantamento, feito com mais de 83 mil pessoas de 57 países de todos os continentes, que apontou que pelo menos uma em cada duas pessoas adotam atitudes preconceituosas em relação à idade.

"A sociedade tem evoluído em relação aos direitos das pessoas negras ou homossexuais, e ninguém acha mais graça nas piadas envolvendo esses públicos", disse Gisela Castro, professora do programa de pós-graduação em Comunicação e Práticas de Consumo da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing).

"Mas muita gente ainda acha graça em piadas envolvendo velhos. É preciso discutir o porquê de a juventude ser o padrão da sociedade, quando vemos que a sociedade tem se tornado cada dia mais velha", afirmou ela, que é doutora em Comunicação e Cultura, com pós-doutorado em Sociologia.

Para Gisela, as pessoas são cobradas a se mostrarem jovens para sempre. "A juventude passou a ser um valor, é preciso exibir um corpo malhado e ser digitalmente fluente em qualquer idade", disse. "O 'envelhecer bem' agora significa atingir um padrão draconiano de virilidade e beleza. As pessoas perderam o direito a envelhecer."

Em uma cultura profundamente hostil ao envelhecimento, é natural vender creme antirrugas para jovens de 20 anos e a considerar quem tem 60 anos ou mais obsoleto e, portanto, incapaz, disse Gisela.

"Você vai se tornando invisível ou um fardo, porque não acompanha os mais jovens nos seus gostos, hábitos e aparência. Os mais jovens não falam mais com os mais velhos, a troca intergeracional deixou de existir nas famílias e nas empresas", afirmou a professora.

'Banco acha que eu não vou viver para quitar o financiamento'

No mercado de consumo, o setor financeiro talvez seja o mais hostil aos mais velhos, segundo Gisela. "Os bancos digitalizaram as suas operações de uma hora para a outra, sem oferecer opção aos idosos", disse.

"Os caixas eletrônicos exigem uma destreza nos movimentos que muitos não têm, o que os tornam reféns de atendentes ou gerentes muitas vezes desqualificados, que já não são os tradicionais e conhecidos gerentes de contas, que atravessavam anos ou décadas no banco. Agora, não raro, essa função é ocupada por jovens sem paciência ou empatia."

Foi o que aconteceu com a revisora Glória Maria Cordovani, 73. Professora aposentada de história da arte e literatura, ela precisou fazer um cadastro biométrico no seu banco. Estava com dificuldades de entender as instruções da gerente da conta, que ela mal conhecia.

"Era para colocar a palma da minha mão no leitor óptico, mas, como ela me explicava, me deixava confusa, eu não estava conseguindo", afirmou. "Até que ela me disse: 'Sai, sai, sai, vou atender outro. Depois a senhora aprende'."

Glória ficou a manhã inteira no banco. "Saí de lá tão desagradada, que acabei encerrando a conta, depois de mais de dez anos como cliente", afirmou.

Quem também ficou arrasada com o tratamento recebido em um banco foi a empresária Etel Kublikowski, 68. O apartamento em que ela morava de aluguel foi solicitado pelo proprietário neste ano. "Decidi vender um imóvel que recebi de herança e usar a metade do valor para comprar um apartamento. A outra metade iria investir", disse ela, dona de uma fabricante de acessórios para decoração.

"Em um imóvel de R$ 830 mil, eu daria R$ 400 mil de entrada e financiaria o resto. Mas o banco só me permitiu financiar R$ 149 mil por conta da minha idade. Eu disse que trabalhava, era ativa, poderia comprovar minha renda, compatível com o financiamento", lembrou ela. Mas nada adiantou. O banco sugeriu que ela colocasse o imóvel no nome da filha.

"Mas o imóvel era meu", afirmou. "Trabalhei desde os 16 anos, abri empresa aos 53, paguei todos os impostos, e eles acham que eu não vou viver o suficiente para quitar o apartamento? Foi um dos piores dias da minha vida, nunca me senti tão insultada", disse ela, dona da Tekart's Laços e Soluções, que tem como fornecedoras mulheres com mais de 50 anos.

Gisela Castro enfrentou um problema semelhante. Mas, no caso da professora da ESPM, ela entraria na compra de um apartamento da filha apenas para compor renda —uma vez que ganha mais do que a filha de 40 anos.

"Mas o banco disse à minha filha que, se eu entrasse no financiamento, o juro iria disparar", contou. "Qual é a lógica? Estou em um momento da vida em que conquistei a estabilidade financeira. E sou penalizada por isso?".

Questionada pela Folha, a Febraban (Federação Brasileira de Bancos) afirmou que as instituições financeiras "seguem as políticas definidas pelo Banco Central para oferta de crédito a todo o tipo de público, de pessoas físicas a pessoas jurídicas". E que os bancos têm "governança interna, na qual são analisadas condições de mercado e perfil do cliente que solicita o crédito".

Segundo a entidade, "são considerados diversos aspectos para a concessão de crédito, o que pode levar ao não atendimento de crédito em alguns casos. Em outros casos, existe o direcionamento para linhas de crédito mais adequadas."

Migração de plano de saúde conforme a idade avança

O segmento de seguros em geral é outro que costuma penalizar os consumidores pela idade. Quanto mais velho o condutor de um veículo, mais caro o seguro, por exemplo. Na saúde, quanto mais velho o cliente fica, mais caro ele paga pelo plano.

mulher de 65 anos, branca, de cabelos encaracolados
Etel Kublikowski se sentiu humilhada ao ver seu pedido de financiamento imobiliário ser negado pelo banco por causa da idade. - Divulgação

Etel Kublikowski relatou uma experiência ruim também com o setor de planos de saúde. Ela contou que tinha um plano numa grande companhia, mas precisou migrar após a mensalidade subir bruscamente assim que completou 60 anos.

Na nova empresa, ela disse que o valor praticamente dobrou quando chegou aos 65, sendo obrigada a mudar novamente para outra prestadora. "Mas não sou bem atendida lá, me sinto picotada: cada médico fala da sua especialidade e ninguém me vê por inteiro", afirmou. "Também não existe uma constância dos profissionais, que mudam com muita facilidade."

Procurada pela Folha, a FenaSaúde (Federação Nacional de Saúde Suplementar), representante das principais operadoras de planos de saúde do país, disse que o valor mais alto do plano de saúde para idosos é "natural, visto que a frequência de utilização a partir dos 60 anos aumenta consideravelmente".

"Em alguns casos, as despesas assistenciais dos beneficiários idosos chegam a ser o dobro da registrada nas faixas etárias anteriores. Beneficiários mais jovens financiam parte desse custo, permitindo assim que todos permaneçam no sistema —o chamado pacto intergeracional", informou, em nota.

Marketing centrado nos jovens impede ver público potencial

Na opinião de Jaime Troiano, presidente da consultoria em gestão de marcas Troiano Branding, existe uma miopia generalizada no mercado de consumo envolvendo quem tem mais de 60 anos.

"São consumidores na maioria das vezes muito bem resolvidos financeiramente, e se mostram muito menos voláteis no consumo de marcas em relação às gerações mais novas", disse Troiano, ele próprio um consumidor de 74 anos, fã de música clássica, esportes e cinema, que aprendeu a selecionar lugares onde se sente acolhido.

Para ele, boa parte deste comportamento da indústria de consumo e serviços está relacionado ao perfil das agências de propaganda e dos departamentos de marketing das empresas. "São apenas jovens trabalhando nestas áreas, não existe diversidade", afirmou.

"É natural que eles encarem o mundo a partir do próprio umbigo, não consigam enxergar quem tem uma idade, experiência e história de vida diferente das que eles têm."

Segundo Troiano, na Europa, onde o envelhecimento do consumidor é uma realidade há muito mais tempo, a atenção dada ao público idoso é diferente.

"Redes varejistas como a Tesco e a Boots, de Londres, por exemplo, têm um atendimento muito mais cuidadoso, assim como gente mais madura trabalhando nas lojas", afirmou.

Quanto faturam os grisalhos

Renda anual da população 50+, segundo levantamento do Data Center Brasil

  1. Aposentados e pensionistas do Regime Geral de Previdência Social (RGPS): R$ 734,3 bilhões

    Fonte: Ministério da Previdência Social

  2. Aposentados dos regimes próprios dos servidores federais, estaduais e municipais: R$ 445 bilhões

    Fonte: Ministério da Previdência Social

  3. Trabalhadores ativos do mercado formal: R$ 630 bilhões

    Fonte: Ministério do Trabalho e Emprego (RAIS)

  4. Microempreendedores individuais: R$ 236,3 bilhões

    Fonte: Receita Federal

  5. Dirigentes de empresas com retirada pró-labore: R$ 240 bilhões

    Fonte: Receita Federal

Para o jornalista Ricardo Mucci, 70, dono da produtora Umana Media House, o mercado de consumo no Brasil parou no público de 40 anos.

"Não tem produto para consumidor sênior no país", disse ele. "A garrafa pet, por exemplo, não é ergonômica para este público. Se eu quero uma camisa ou uma cueca mais folgada, não encontro."

Da mesma maneira, não existem cursos de idiomas que falem com esta faixa etária de um jeito diferente de quem tem 15 ou 20 anos, afirmou Mucci.

"As empresas poderiam pensar em novas soluções, como uma bengala com Wi-Fi, por exemplo. Ou mesmo coisas simples, como cadeiras de rodas e muletas que não sejam feias", disse Mucci, que integra o Conselho Municipal de Direitos da Pessoa Idosa de São Paulo.

Mucci mantém um canal de entrevistas no Instagram, o Muccipliq, em que discute longevidade. Lá, procura derrubar alguns estereótipos e preconceitos envolvendo o público com mais de 60.

Em agosto, por exemplo, entrevistou o casal Liça e Luiz, com 80 e 90 anos, respectivamente, que se conheceram há dez anos por meio de um aplicativo de relacionamentos.

"O Brasil se acostumou tanto a ser um país jovem que tem dificuldades em se ver como um país que envelhece."

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