Cansaço, falta de pessoal e trabalho em excesso: a combinação que ameaça o tráfego aéreo dos EUA

Controladores sofrem com equipes reduzidas, sobrecarga e colegas que dormem no serviço ou trabalham alcoolizados

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Emily Steel Sydney Ember
The New York Times

Um controlador de tráfego aéreo foi trabalhar embriagado neste verão (nos EUA, inverno no Brasil) e brincou sobre "ganhar muito dinheiro bêbado". Outro fumava maconha de forma frequente durante os intervalos. Um terceiro funcionário ameaçou agressão e depois "empurrou agressivamente" um colega que estava direcionando aviões.

Os incidentes são exemplos extremos, mas se encaixam em um padrão que revela vulnerabilidades gritantes em um dos setores de proteção mais importantes do sistema de segurança da aviação dos Estados Unidos.

Nos últimos dois anos, controladores de tráfego aéreo e outros trabalhadores do setor apresentaram centenas de reclamações para a Administração Federal de Aviação (FAA, da sigla em inglês) descrevendo problemas como escassez de pessoal em nível perigoso, problemas de saúde mental e deterioração de edifícios, alguns infestados por insetos e mofo.

Avião se aproxima do aeroporto de San Diego, nos EUA, e voa com altitude baixa a poucos metros acima de uma rodovia
Avião se aproxima do aeroporto de San Diego, nos EUA, um dos locais que sofrem com o número reduzido de controladores do tráfego aéreo - John Francis Peters/The New York Times

Houve pelo menos sete relatos de controladores dormindo durante o expediente e cinco queixas sobre funcionários trabalhando sob a influência de álcool ou drogas. O New York Times obteve os resumos das reclamações por meio de uma solicitação pública.

Controladores de tráfego aéreo, que passam horas por dia grudados em monitores ou vasculhando os céus, são responsáveis pela vida de milhares de passageiros e também a última linha de defesa contra acidentes.

O trabalho é acompanhado de apostas arriscadas e pressão intensa, mesmo nas melhores condições.

No entanto, as situações para muitos controladores estão longe de ser ideais. Uma escassez de pessoal em todo os EUA —causada por anos de rotatividade de funcionários e orçamentos apertados, entre outros fatores— obrigou muitos controladores a trabalhar 10 horas por dia e seis dias por semana.

O resultado é uma equipe cansada, distraída e desmoralizada, cada vez mais propensa a cometer erros, de acordo com a investigação do The New York Times.

Os resultados são baseados em entrevistas com mais de 70 controladores e ex-controladores de tráfego aéreo, pilotos e autoridades federais, além de milhares de páginas de relatórios federais de segurança e registros internos da FAA obtidos pela reportagem.

Embora o espaço aéreo dos EUA seja conhecido pela segurança, acidentes perigosos quase ocorreram em várias oportunidades por semana neste ano, segundo reportagem do New York Times de agosto. Alguns controladores dizem temer que um acidente fatal seja inevitável.

Aumento de 65% nas falhas do controle de tráfego

No ano fiscal que terminou em 30 de setembro, houve 503 falhas de controle de tráfego aéreo que a FAA classificou preliminarmente como "significativas", 65% a mais do que no ano anterior, de acordo com relatórios internos da agência revisados pela reportagem. Durante esse período, o tráfego aéreo aumentou cerca de 4%.

Um banco de dados de problemas de segurança da aviação está repleto de erros recentes cometidos por controladores exaustos.

Em abril, um trabalhador no centro de controle de tráfego aéreo na área de Jacksonville, na Flórida, instruiu um avião a virar na direção de outro. Posteriormente, ele culpou o excesso de trabalho e a fadiga pela falha.

Um controlador no sul da Califórnia disse a um avião para voar muito baixo e, depois, alegou que estava "extremamente cansado" depois de trabalhar horas extras "contínuas".

Outro controlador desabafou e afirmou que se poderia cometer um "pequeno erro", ele também seria passível de ter um erro maior, de acordo com registros no banco de dados mantido pela Nasa.

Muitos controladores são entusiastas da aviação e acabam atraídos para a função devido a possibilidade de poder ganhar um salário anual de seis dígitos. Alguns apreciam a oportunidade de ganhar mais fazendo horas extras.

Mas o New York Times descobriu que a combinação de semanas de trabalho de seis dias e escalas de trabalho ininterruptas fez com que os controladores desenvolvessem problemas de saúde física e mental.

Muitos evitam procurar ajuda profissional porque isso pode comprometer as autorizações médicas necessárias para trabalhar. Alguns recorrem a bebidas alcoólicas ou remédios para dormir para lidar com a situação. Outros pedem demissão ou se aposentam.

FAA admite que faltam controladores

A FAA estimou que mais de 1.400 controladores, cerca de 10% dos profissionais da área, sairiam de seus postos de trabalho neste ano.

Jeannie Shiffer, porta-voz da FAA, afirmou que a agência "mantém o espaço aéreo mais seguro, complexo e movimentado do mundo", mas reconheceu a escassez de pessoal.

"O país definitivamente precisa de mais controladores de tráfego aéreo, e o crescimento da mão de obra resultará em melhores condições de trabalho e mais flexibilidade".

Desde que o governo de Ronald Reagan, que governou entre 1981 e 1989, substituiu milhares de controladores em greve, a agência tem lutado para acompanhar as ondas de aposentadorias.

O problema piorou durante a pandemia de Covid-19, quando a FAA reduziu o treinamento de novos funcionários. Para o atual ano fiscal, a FAA solicitou US$ 117 milhões para treinar controladores e contratar 1.800 novos.

No entanto, o treinamento é difícil; muitos aspirantes a controladores falham. O plano de contratação da FAA deve ter "uma melhoria negligenciável em relação aos níveis atuais de falta de pessoal", com um aumento líquido de ao menos 200 controladores até 2032, disse a National Airspace System Safety Review Team, um grupo de especialistas nomeado pela agência, em um relatório de novembro.

De 2011 a 2022, o número de controladores totalmente certificados diminuiu mais de 9%, mesmo com o aumento do tráfego. De acordo com as metas estabelecidas pela FAA e pelo sindicato que representa os controladores, 99% dos locais de controle de tráfego aéreo dos Estados Unidos têm déficit de pessoal.

Para tentar resolver esse problema, há a sobrecarga de quem está no cargo e 40% dos controladores trabalharam seis dias por semana pelo menos uma vez por mês no ano passado, segundo o sindicato da profissão.

O número de horas extras registradas pelos controladores quase triplicou na última década, de acordo com dados da FAA.

O centro de controle de tráfego aéreo de Jacksonville é um dos mais movimentados do país. No entanto, possui apenas 207 controladores, abaixo da meta de 298 estabelecida pela FAA e pelo sindicato dos controladores.

Torre de controle do tráfego aéreo no aeroporto de Burbank Hollywood, na Califórnia
Torre de controle do tráfego aéreo no aeroporto de Burbank Hollywood, na Califórnia - Getty Images via AFP

O impacto na segurança tornou-se evidente e, em abril, houve o quase acidente causado por um trabalhador cansado.

Em relatório confidencial de segurança no ano passado, um controlador de Jacksonville descreveu que teve hiperventilação e dificuldade para ficar em pé após duas horas de direção de tráfego intenso de aviões.

No relato, ele informa que houve casos de funcionários sofrendo ataque cardíaco e ataque de pânico, colegas perdendo as licenças médicas devido à depressão e outros que optaram por deixar a FAA.

O controlador também questionava se não havia subnotificação de casos de problemas físicos e mentais sofridos pelos profissionais.

Em uma audiência no Senado em novembro, a presidente do Conselho Nacional de Segurança nos Transportes, Jennifer Homendy, afirmou que a escassez de controladores de tráfego aéreo, juntamente com horas extras obrigatórias, havia se tornado uma ameaça à segurança da aviação.

Em entrevistas e reclamações enviadas à FAA, funcionários de tráfego aéreo alertaram que eles e seus colegas estavam se sentindo derrotados.

A porta-voz da FAA disse que a agência investiga todas as reclamações feitas pelos funcionários.

Os controladores disseram que relutaram em buscar ajuda para problemas de saúde física e mental devido às regras da FAA que exigem autorizações médicas.

Ashley Smith trabalhou como controladora de tráfego aéreo por dez anos e pediu demissão após ver que as condições de trabalho não melhorariam
Ashley Smith trabalhou como controladora de tráfego aéreo por dez anos e pediu demissão após ver que as condições de trabalho não melhorariam - Mohamed Sadek/The New York Times

As diretrizes, que visam garantir que os controladores estejam mental e fisicamente saudáveis, proíbem o uso de certos medicamentos que podem causar sonolência ou outros efeitos colaterais. As regras ainda impedem que controladores com certas condições médicas continuem exercendo a função.

Uma consequência não intencional, segundo inúmeros controladores, é que eles evitam tomar medicamentos necessários ou acabam recorrendo ao álcool ou drogas.

Shiffer disse que a agência leva a saúde dos controladores a sério, inclusive oferecendo aconselhamento gratuito.

A ex-controladora de tráfego aéreo Ashley Smith trabalhou por mais de uma década na função na área de Atlanta. Em janeiro de 2022, um erro de um controlador em Atlanta fez com que dois aviões da Delta ficassem perigosamente próximos de uma colisão, de acordo com relatórios internos de segurança da FAA. Um alerta de colisão na cabine fez com que os pilotos de um avião subissem rapidamente e evitassem o pior.

Em uma análise, a FAA reconheceu que o cansaço do controlador poderia ter sido um fator, considerando que a escala de trabalho dele incluía dois turnos extras em cada uma das três semanas anteriores.

Algumas semanas após o quase acidente, Smith enviou um email para Tim Arel, um alto funcionário de tráfego aéreo da FAA. Ela detalhou como vários quase acidentes recentes em Atlanta envolveram controladores que haviam trabalhado repetidamente em turnos extras.

Arel respondeu no dia seguinte, reconhecendo que a agência enfrentava problemas de pessoal.

Três meses depois, Smith pediu demissão, convencida de que nada melhoraria. "Eles estão empurrando o problema com a barriga", disse.

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