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Gabriel Trigueiro

Legado de Friedman foi deturpado pela direita e pela esquerda, diz livro

Obra faz defesa por vezes acrítica de teorias de economista que influenciou de Paulo Guedes a Javier Milei

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Rio de Janeiro

"Milton Friedman diz o seguinte: se você realmente quiser ajudar o pobre, não crie empresas estatais, bancos públicos, transferência de renda através de vastos ministérios para [fazer] chegar o dinheiro ao pobre, não. Dê no bolso do pobre a renda mínima, a renda básica. Foi exatamente o que nós fizemos. Quando chegou a pandemia, eu me lembrei disso."

A declaração, feita em 2021, é do ministro da Economia do governo Bolsonaro, Paulo Guedes, que foi aluno de Friedman durante seu doutorado na Universidade de Chicago.

O economista conservador Milton Friedman, vencedor do Prêmio Nobel de Economia de 1976
O economista conservador Milton Friedman, vencedor do Prêmio Nobel de Economia de 1976 - Reprodução

Guedes não foi a única figura da política da América Latina a fazer referência ao Nobel de Economia nos últimos tempos.

Ao ser eleito presidente da Argentina, o ultraliberal Javier Milei —que defende, por exemplo, a defesa da extinção do banco central e a adoção do dólar como moeda nacional— também citou o americano como fonte filosófica para as suas ideias.

Mas quem foi Friedman? E qual é o escopo e a natureza de seu legado?

Essas são perguntas que a historiadora Jennifer Burns, da Universidade de Stanford, busca responder no livro "Milton Friedman: The Last Conservative" (o último conservador), publicado no fim do ano passado.

A tese da pesquisadora é simples: o legado de Friedman foi deturpado tanto pela esquerda quanto pela direita ao longo dos anos. Seu objetivo com a obra é, assim, lançar luz sobre os argumentos e resgatá-los dos ruídos e mal-entendidos do debate público mais pedestre.

Apesar de circunspecto, Friedman obteve notoriedade por sua própria capacidade de comunicação, dedicando-se a popularizar os mesmos argumentos que apresentava em aulas sobre assuntos áridos de macroeconomia lotadas de universitários, em uma coluna regular na revista Newsweek e em um programa de TV na PBS, emissora pública americana.

Ao mesmo tempo que foi economista de estimação de gente como Ronald Reagan e Margaret Thatcher, além de um dos responsáveis pela implosão do consenso keynesiano favorável a gastos públicos, também defendeu um programa de renda mínima e o fim do alistamento militar compulsório.

Burns adota um tom defensivo e acrítico em relação a Friedman em pelo menos dois momentos de seu livro.

Sob o pretexto de debater as ideias do economistas, não o mérito moral delas, a autora acaba por minimizar as implicações políticas delas e presume uma boa-fé por parte dele mesmo em circunstâncias históricas indefensáveis.

Um desses momentos é quando ela menciona a oposição do intelectual à decisão da Suprema Corte no caso de Brown contra a Junta de Educação, um dos marcos do fim da segregação racial no sistema educacional dos Estados Unidos.

O outro é no tocante à posição pública do economista diante da ditadura do general Augusto Pinochet no Chile. No período, Friedman optou reiteradamente por criticar não o regime autoritário que havia acabado de dar um golpe, mas o governo de Salvador Allende, que havia sido derrubado.

Não deixa de ser curioso que Burns enxergue como fonte de moderação alguém que apoiou um regime autoritário e se opôs à luta dos direitos civis. Para a historiadora, no entanto, a trajetória de Friedman deveria influenciar conservadores moderados na oposição ao trumpismo.

Há no livro a idealização de um passado no qual haveria um conservadorismo respeitável, anterior à barbárie trumpista. Mas Friedman, como a própria autora recorda, foi próximo a Reagan, Barry Goldwater e Richard Nixon —políticos que só poderiam ser classificados como moderados se comparados aos populistas radicais de hoje.

O trumpismo não surgiu do nada e não deve ser entendido como um elemento exótico, mas como o desenvolvimento de um fenômeno até pouco tempo atrás confinado às margens.

Friedman emprestou sua pompa de cátedra ao movimento conservador e o legitimou com dignidade intelectual e algum prestígio social, primeiro nos EUA, depois na América Latina e no mundo.

Levando em consideração a relação histórica desse movimento com questões raciais e regimes autoritários, talvez a classificação de Burns obtivesse maior rigor se trocasse o "conservador" do subtítulo por "reacionário", afinal.

Milton Friedman: The Last Conservative

  • Preço US$ 35 (592 págs. - importado)
  • Autoria Jennifer Burns
  • Editora Farrar, Straus, and Giroux
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