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Livro usa até Kafka para discutir ligação da publicidade com a literatura

João Anzanello Carrascoza mostra trocas entre campos que parecem afastados em 'De Macondo à Terra de Marlboro'

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São Paulo

O que obras de autores como Franz Kafka, Fernando Pessoa e Rosa Montero têm a dizer sobre publicidade? A princípio, pode parecer que não muito. Mas um olhar atento revela perspectivas curiosas sobre o assunto.

Essa é a proposta da coletânea "De Macondo à Terra de Marlboro", de João Anzanello Carrascoza, que reúne 11 ensaios publicados em revistas acadêmicas e voltados, em sua maioria, ao conceito de "retextualização".

O termo se refere à transposição de textos de determinado domínio para outro. Nesse caso, da ficção para o contexto científico, com o propósito de relacioná-los com estudos em publicidade.

Barata sentada numa poltrona fuma um charuto enquanto lê livro de economia
Ilustração - Catarina Pignato

No livro, publicado em agosto do ano passado, o leitor pouco familiar com os jargões da área consegue entendê-los com facilidade a partir de trechos de escritores consagrados —com alguns deles até se atendo especificamente ao assunto.

Por exemplo, no artigo "Ervilhas Congeladas", o autor parte de um conto do livro "Nem Vem", de Lydia Davis, para explicar conceitos como fetiche do consumo e "appetite appeal", manipulação do apetite do consumidor a partir de imagens maquiadas dos produtos, os chamados "mock-ups".

"As ervilhas retratadas são três vezes maiores do que as que se encontram dentro do pacote, o que, juntamente com a coloração fosca, torna o conjunto ainda menos apetecível —passa a impressão de que as ervilhas estão maduras demais", escreve Davis.

Há uma ironia no trecho que opera em duas frentes, já que a narradora reclama não da qualidade do alimento, como seria o esperado, mas de sua embalagem. Além disso, aponta que o conteúdo é melhor do que a forma, sendo que, no fim das contas, trata-se de um pacote de ervilhas congeladas, do qual certamente não se pode esperar muito.

"O consumidor reconhece e aceita a imagem de perfeição veiculada pelas mensagens publicitárias, sabendo, contudo, que não corresponde às condições físicas evidentemente imperfeitas do produto", afirma Carrascoza.

Capa do livro 'De Macondo à terra de Marlboro'
Capa do livro 'De Macondo à terra de Marlboro' - Divulgação/Editora Unesp

Enquanto isso, o conto "Um Artista da Fome", de Kafka, é usado para discutir ações de guerrilha publicitária. Já o romance futurista "Lágrimas na Chuva", de Rosa Montero, para refletir sobre a lógica da interrupção e o "product placement" (inserção de produto em conteúdo de programas), cada vez menos discreto, vide o fenômeno do filme "Barbie" no ano passado.

Segundo o autor, da mesma forma que a publicidade se nutriu das artes para a construção de seus fundamentos, vez por outra a arte lança mão dela, em alinhamento ou contraposição a ela.

"A publicidade opera por meio dessa alquimia discursiva, transformando o reino das condições materiais no reino das realizações simbólicas", escreve Carrascoza.

O que às vezes pode até parecer um exagero na verdade vai se revelando aos poucos também como um método alternativo para investigar a literatura de ficção.

A estratégia da retextualização, aliás, funciona em uma via de mão dupla ao mostrar que os objetos publicitários até podem ser lidos como arte, embora seus discursos estejam geralmente fechados à polissemia.

Esses encontros entre literatura e publicidade ajudam a lembrar como leitores e consumidores são influenciados por livros e produtos de forma relativamente parecida. A diferença é que, em teoria, apenas um teria finalidades puramente comerciais.

Retrato do escritor João Anzanello Carrascoza
Retrato do escritor João Anzanello Carrascoza - Marcos Vilas Boas/Divulgação

Um capítulo dedicado ao papel das embalagens mostra como elas têm sido palco, entre vários tipos de discursos, dos valores das marcas que representam.

"As embalagens passaram a ser espaços não só limitados às informações do produto, mas também abertos à divulgação institucional das marcas, de seus compromissos de sustentabilidade e, em especial, de sua corrente discursiva", afirma Carrascoza.

Com públicos-alvo bem delimitados e acessíveis devido aos algoritmos das big techs, empresas hoje estabelecem um diálogo ainda mais direto com seus consumidores.

Em outro exemplo, um conto também de Lydia Davis é usado para discutir o caso dos alimentos de segunda linha semelhantes aos produtos regulares e a redução do peso dos produtos para disfarçar a inflação, processo conhecido como "shrinkflation" (reduflação).

No fim das contas, uma abordagem da literatura para entender a publicidade (e vice-versa) enriquece a relação do leitor com ambos e dá espaço para entender os próprios movimentos do mercado.

"Vi que os senhores alegavam que a porção tinha seis unidades e especificaram que havia em torno de doze porções e meia por porte. Fiz as contas e calculei que o pote deveria conter em torno de 74 unidades. Francamente, não creio que houvesse 74 balas ali", escreve Davis no conto "Carta a uma Fábrica de Balas de Menta". Quem nunca?

De Macondo à Terra de Marlboro

  • Preço R$ 69 (208 págs.)
  • Autoria João Anzanello Carrascoza
  • Editora Unesp
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