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Rosa Montero faz uma autópsia invertida da loucura e criatividade

'O Perigo de Estar Lúcida' é um inventário de escritores em sofrimento que vira uma preciosa herança para quem lê

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Ludimila Moreira

Historiadora, é doutora em literatura pela Universidade de Brasília

O Perigo de Estar Lúcida

  • Preço R$ 74,90 (272 págs.); R$ 49,90 (ebook)
  • Autoria Rosa Montero
  • Editora Todavia
  • Tradução Mariana Sanchez

"O Perigo de Estar Lúcida", a princípio, pode parecer um livro de entretenimento luxuoso, algo de panorama e compêndio sobre o contágio entre loucura e criatividade, ao leitor que ainda não conhece o multiverso ficcional de Rosa Montero.

mulher idosa de cabelo castanho escuro veste blusa laranja clara e morde dedo mindinho em mão com anel verde no anelar
A escritora espanhola Rosa Montero, autora de 'O Perigo de Estar Lúcida' - Lucas Seixas/Folhapress

A obra, porém, vai se revelando um projeto estético que mescla características do gênero ensaio e da prosa autoficcional que faz lembrar mais os romances de dicção pós-moderna, como os de David Markson, do que um objeto cultural informativo.

A narradora de "O Perigo de Estar Lúcida", que é também a jornalista e escritora Rosa Montero, se lança numa sensível jornada impulsionada pelos estudos tanto da psicologia quanto da neurociência para a composição de um romance sobre "a magnífica família dos nervosos", termo pensado por Marcel Proust e recuperado para falar de escritores e escritoras.

E toda a trama, como uma sonda captadora de geometrias, oscilações e curtos-circuitos neuronais, revela um inventário de autores em sofrimento psíquico e constrói um caminho de escuta e afetação que vai, ao longo do texto, tomando a feição de uma preciosa herança de que vamos ganhando posse no transcorrer da leitura.

Montero conclama para si a tarefa de fazer uma autópsia invertida da criatividade, um movimento para desmistificar e remitificar, em uma perspectiva menos sagrada e sensacionalista, figuras como Scott Fitzgerald, Charles Bukowski, as irmãs Brontë, Virginia Woolf, Laura Albert, Emily Dickinson, entre outros.

A voz narrativa não hesita diante da conversão em texto ficcional, de suas próprias memórias das crises de pânico, na adolescência e juventude, e de seu luto e melancolia pela perda do companheiro.

Sua jornada como colunista do jornal El País e todo o legado sociológico e sentimental dessa produção se entrecruza com o olhar contemporâneo de uma autora que se encara como velha e feminista e vê na escrita um gesto de saúde e persistência diante da morte e do medo da insanidade.

A previsibilidade não é um componente desse arco narrativo. A presença de uma "Outra Rosa Montero", mulher mais jovem que elege a escritora como obsessão e se apropria de sua assinatura em uma espécie de duplo, não é representada inicialmente com toda a carga dramática que emprestará ao romance. Ambivalência, doença e morte são pistas que indiciam a sua real identidade.

O romance não abranda os impactos do patriarcado e das instituições psiquiátricas nos mundos das escritoras que povoam o livro. Escancara o custo corpóreo, que é também subjetivo, de autoras como a poeta italiana Alda Merini, estigmatizada pela bipolaridade e por sua liberdade comportamental, e a neozelandesa Janet Frame, salva de uma lobotomia por um livro que é premiado enquanto ainda estava internada.

Frame, que recebeu um diagnóstico equivocado de esquizofrenia, é uma das artistas que a calibragem historiográfica do texto recupera e apresenta sem baratear a emotividade suscitada pela sua jornada.

Das múltiplas camadas sensoriais que compõem a força da obra, destaca-se a peregrinação narrativa de Montero para alcançar o mundo acossado pela loucura e pelo desejo de escrita de Sylvia Plath. Outro ponto alto é o relato da narradora sobre o encontro com uma baleia na costa oeste do Canadá.

Essas imagens são exemplos de uma trama textual encantatória responsável pela comunicação do nosso corpo e seus neurotransmissores com um extenso legado de alteridade. Enfim, a literatura em seu giro e promessa de criatividade.

É memorável, em sua espessura de concretude material, visual e olfativa, a descrição de Montero diante da jubarte. "Começou a passar um arco imenso de carne, uma carne que na verdade parecia borracha, uma parede viscosa cheia de aderências, de algas e crustáceos; e pouco depois passou o olho, um olho gigantesco que surgiu da água, percorreu todo o arco e afundou de novo no oceano, aquele olho assustador que nos olhava. Especificamente: que me olhou e me viu."

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