Entre esperas, gargalos e preocupação com mão de obra, cabotagem tenta crescer no Brasil

Navegação pela costa do país se coloca como alternativa viável ao transporte por caminhões

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Vista do porto de Pecém, no litoral do Ceará - Eduardo Knapp / Folhapress

São Gonçalo do Amarante (CE) e Ipojuca (PE)

"Deu errado porque você bateu fofo."

Nos 228 metros de extensão e 12 metros de altura do navio Fernão de Magalhães, apenas uma sala fazia barulho na noite de 5 de setembro. Dos 23 tripulantes a bordo, quem não se recolheu à cabine (ou "camarote", como chamam) está empenhado em partidas de Pitoco, um jogo de tabuleiro que se assemelha ao ludo.

Quem não dá uma pancada forte na mesa com o copo de madeira em que estão dois dados, "bateu fofo."

"Ajuda a passar o tempo. É preciso uma distração", comenta um dos jogadores.

Tripulantes se divertem jogando pitoco na sala de jogos do navio Fernão de Magalhães - Eduardo Knapp/Folhapress

Com 1.331 contêineres, a embarcação da Aliança Navegação e Logística, empresa do conglomerado dinamarquês A.P. Moller-Maersk, está parada próxima do Porto de Suape, em Pernambuco. Problemas de infraestrutura na operação, preocupações com profundidade, congestionamento de navios e atrasos fazem parte do cotidiano da cabotagem, a navegação que faz rotas apenas dentro do mesmo país.

Tripulantes dizem que o navio não está ancorado e sim, "fundeado". Na linguagem marítima, nem parede se chama parede. É "anteparo". Sala de comando não existe. Há o "passadiço". Para se referir ao trajeto, se diz "derrota". Esquerda e direita são palavras ignoradas. O correto são "bombordo" e "boreste". Frente é a "proa". A traseira é a ‘popa". Fernão de Magalhães é nome muito longo e vira apenas "Ferma".

"É melhor quando está navegando. Ficamos mais ocupados. Parado, assim, é bem pior", constata a primeira oficial Bruna Abadia Simas Farias, 27, uma das duas mulheres a bordo.

A viagem de 800 quilômetros levou cerca de 30 horas porque a política da Aliança para seus nove navios de cabotagem (o mesmo vale para outras empresas do setor) é ir em baixa velocidade para economizar o combustível, um óleo caro, pesado e altamente poluente. O Fernão de Magalhães navega entre 15 nós e 16,5 nós (de 27,75 km/h a 30,5 km/h).

Com o sol amanhecendo e carregado de contêineres, o navio Fernão de Magalhães aguarda na costa de Pernambuco para atracar no Porto de Suape.
O navio Fernão de Magalhães aguarda na costa de Pernambuco para atracar no Porto de Suape - Eduardo Knapp/Folhapress/Folhapress

"Temos uma meta de ser net zero, compensar tudo o que for emitido de CO2, até 2040. Porta a porta [a entrega da carga no endereço do cliente], armazéns, centros de admissão e navios", afirma Luiza Bublitz, CEO da Aliança.

Ser menos poluente do que o transporte por caminhões é um dos atrativos oferecidos pela cabotagem. O transporte de navio de Manaus para Santos (SP), por exemplo, produz pouco menos de 0,5 tonelada de CO2. Se o trajeto fosse realizado apenas com caminhão, o número iria a 3,70 toneladas.

"Eu não ficaria surpreso se mandassem a gente passar pelo porto de Suape e ir direto para Santos. Já estamos atrasados", especula o comandante Antonio Pojo, 70, 44 anos de navegação, todos na Aliança. Depois de trabalhar nas principais rotas entre o Brasil, a Europa e os Estados Unidos, hoje em dia faz apenas cabotagem.

De Suape a Santos seriam mais três dias de viagem. Ele se irrita com a demora. Lembra terem chegado antes do prazo no porto de Itacoatira, no Amazonas. Saíram com um dia de atraso em uma operação que disse ter sido demorada e confusa.

Contêineres no pátio do porto do Pecém, no litoral do Ceará - Eduardo Knapp/Folhapress

Por causa da seca no Rio Amazonas, o Fernão de Magalhães não conseguiu se aproximar do porto de Manaus. Em Itacoatira, as cargas foram carregados ou descarregados e transportados desde (ou para) a capital amazonense por balsas com capacidade para 200 contêineres.

A espera em Suape era pela saída de outro navio da Aliança, o Pedro Álvares Cabral, que ocupava o berço de atracação também reservado para a embarcação de Pojo.

"A cabotagem precisa de mais investimento de infraestrutura nos portos, de equipamentos, de menos burocracia. Isso ajudaria bastante. É uma navegação essencial para o país", diz ele, que desistiu de ser médico para começar a vida na Marinha Mercante. Nunca se arrependeu.

Mesmo com os problemas, esse modal passou por crescimento na última década. Entre 2010 e 2023, o volume de carga subiu 59,3%. Relatório da Antaq (Agência Nacional de Transportes Aquaviários) aponta que a cabotagem movimentou 290,1 milhões de toneladas no ano passado, sendo 36,9% em contêineres. A maior parte, 45%, é óleo carregado pela Petrobras.

"Muitos dos gargalos que a gente tem na história [da cabotagem] persistem. Entre eles, principalmente a falta de infraestrutura portuária.Isso inclui desde a falta de equipamentos adequados até o próprio processo de dragagem, seguido pelas burocracias e regulações. A burocracia faz com que os processos sejam muito complexos", avalia Fagner Evangelista Severo, coordenador do curso de Tecnologia em Logística da Unisanta (Universidade Santa Cecília).

Empresas do setor também reclamam que a tributação é complexa e alta demais. A situação se torna pior quando a capacidade do porto destino ultrapassa os 90% de ocupação. Tudo fica mais lento.

São 58 companhias que atuam na cabotagem no Brasil, sendo 11 operadoras donas de 99 navios capazes de transportar 2,5 milhões de toneladas.

Até a metade da década de 1920, a cabotagem tinha relevância essencial para a movimentação de cargas no Brasil. A malha rodoviária e ferroviária era restrita. Isso começou a mudar na presidência de Washington Luiz (1926-1930), responsável pelo slogan "governar é construir estradas". Os caminhões passaram a ter protagonismo maior, acelerado pela implantação da indústria automobilística no governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961).

Para tentar revitalizar a área naval, a ditadura militar (1964-1985) apostou em forte intervenção estatal. O Estado determinava preços de fretes, financiava a construção de navios por meio de novos impostos e dava autorizações para as rotas a serem navegadas por cada empresa. A combinação de inflação alta, baixo investimento e pequeno crescimento provocou o endividamento das empresas na década de 1980.

Entre 1984 e 1999, a navegação de cabotagem no Brasil caiu de 8 milhões para 2 milhões de toneladas transportadas por ano. Com a privatização de portos e operações a partir de 1997, novos investimentos, desta vez com dinheiro estrangeiro e joint ventures modernizaram o setor. A política passou a ser de atrair investimentos de grandes armadores e operadores de terminais internacionais.

É um viés diferente do empregado pelos Estados Unidos, que veem o tema como assunto de segurança nacional. A preocupação é proteger o mercado e restringir a atuação de companhias estrangeiras.

"Nós dávamos desconto para incentivar a Marinha Mercante brasileira. Mas todas as empresas de cabotagem pertencem a grupos internacionais, então não damos mais", afirma Carlos Alberto de Souza Filho, representante da Práticos de São Paulo, que opera praticagem no Porto de Santos.

O potencial de crescimento é considerável. O Brasil tem um litoral de 7.500 quilômetros e 63 mil quilômetros de rios. Destes, 63.5% são navegáveis. Cerca de 80% da população vive até 200 quilômetros da costa.

"A nossa concorrência não é com outro armador de cabotagem. É com o rodoviário. Quanto eu pago no multimodal [mix de navegação e caminhão ou trem] e quanto eu pago só no rodoviário? A medida que a distância aumenta, maior é a eficiência da cabotagem. Quanto maior o trajeto, maior a nossa eficiência. Se for menos de 2.000 quilômetros, a concorrência é mais acirrada", completa a CEO da Aliança.

A solução que a empresa encontrou foi oferecer um serviço porta a porta, com o compromisso de recolher a carga no local onde foi produzida e entregá-la no endereço do cliente. Para isso, foi necessário estabelecer rotas regulares, pelo menos semanais. A depender da região, diárias. É uma tendência do setor.

Um homem está em pé no convés de um navio, olhando pela janela em direção ao mar. Ele segura um objeto em suas mãos e está vestido com uma camisa preta. O ambiente é moderno, com painéis de controle visíveis ao fundo e janelas amplas que mostram o oceano.
O comandante Antonio Pojo, 70, na cabine de comando do Fernão de Magalhães - Eduardo Knapp/Folhapress/Folhapress

Essas viagens em looping, entre Manaus e Santos, na rota do Fernão de Magalhães, são a rotina dos 23 tripulantes.

"Pode ser muito tempo [embarcado], mas na minha visão, eu trabalho metade do ano e folgo a outra metade", opina o chefe de máquinas Marcelo Lanziotti, 56. Seu trabalho é cuidar para que todo o maquinário funcione. Especialmente o motor, com potência de 30,7 mil cavalos (embora opere a 11 mil), que ocupa quatro andares do navio e faz um barulho ensurdecedor. Também há quatro geradores de energia.

Os ciclos de trabalho a bordo podem ser de 28 dias, a depender da rota. De Manaus a Santos são dez dias. Eles depois recebem o mesmo período de folga. Pojo lembra já ter ficado três meses seguidos embarcado quando comandava graneleiros.

Formado em ciências náuticas, Lanziotti fez cursos da Marinha no Rio de Janeiro e em Belém, os dois únicos centros de formação no país. Para as empresas do setor, era necessário mais.

A avaliação é que em cinco anos vai faltar mão de obra para a navegação de cabotagem se nada for feito. Isso pode se tornar mais um gargalo para a produtividade de um setor que, apesar da evolução, ainda não conseguiu atingir seu máximo potencial.

"São formados 300 profissionais de Marinha Mercante por ano. Estudos indicam que deveriam ser o dobro. É algo que pode impactar a segurança da cabotagem como um todo porque a demanda para petróleo e gás também vem crescendo", alerta Luiza Bublitz.

Os tripulantes se agarram à rotina de trabalho, por isso o tempo fundeado antes da atracação é o pior. Não há nem mesmo a navegação de madrugada, quando oficiais se revezam no passadiço, com todas as luzes apagadas para poder ver o mar apenas com o brilho das estrelas. Não é pela beleza. Serve para detectar se aparece algum pequeno pesqueiro pelo caminho.

"De dia, dá para enxergar baleias também", lembra Bruna.

Uma mulher vestindo um uniforme de trabalho e um capacete de segurança está de pé em um cais, olhando para trás. Ao fundo, há um monitor de controle com a tela em branco e um painel amarelo ao lado. O mar é visível atrás dela, com um céu claro.
Bruna Abadia Simas Faria, 27, é uma das duas mulheres integrantes da tripulação do navio Fernão de Magalhães - Eduardo Knapp/Folhapress/Folhapress

Ela tenta perceber o lado bom de ficar tanto tempo longe de casa. Diz que a faz valorizar os pequenos momentos.

"Tudo ganha um novo significado, seja jantar com o marido, conversar com os amigos, ver um filme debaixo do cobertor… É difícil quando termina [a folga] e tem de embarcar de novo. Bem difícil. Mas é o nosso trabalho e a gente acostuma", se resigna.

Na posição de primeira oficial, está no longo caminho até se tornar comandante. É preciso uma combinação de fatores mas, no geral, leva entre 10 e 15 anos. Pode ser muito tempo, mas não para quem desistiu da faculdade de estatística porque não queria ficar o tempo todo sentada de frente para um computador. Ela desejava a vida ao ar livre.

Ao ser aprovada no concurso da Marinha Mercante, largou a rotina sossegada com os pais em Brasília para morar no Rio de Janeiro.

Foi quando tatuou uma andorinha no braço esquerdo.

"A imagem vale até hoje. É um símbolo de que vou embora e fico muito tempo longe de casa. Mas igual a uma andorinha, eu sempre volto."

O jornalista viajou a convite da Aliança Navegação e Logística

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