Profissionais negros abrem espaço no mundo dos vinhos

Empreendedores enfrentam dificuldades para entrar e se firmar no mercado

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São Paulo

A inserção em diversos setores do mercado de trabalho brasileiro é um desafio para a população negra. O setor de vinhos apresenta dificuldades adicionais —para começar, os cursos são poucos e, em geral, caros.

Foi pensando nessas adversidades que Silvana Aluá, 37, criou a Confraria das Pretas, três anos atrás.

Moradora da zona leste de São Paulo, ela percebeu que os contratempos para entrar na área e o preconceito que sofreu em adegas e restaurantes coincidiam com as histórias de outras pessoas negras que também gostam de vinho.

Surgiu, então, a ideia de criar um grupo que se reunisse para confraternizar, beber e trocar conhecimento.

"Cada um levava uma taça e a cada vez eu escolhia um tema diferente. Nessas reuniões, eu explicava sobre a uva."

O que começou como um encontro descompromissado cresceu. "A confraria se transformou em uma empresa no começo do ano passado, mas desde 2018 eu já vinha estudando o assunto", diz.

Mulher negra com turbante, olhando para a câmera e segurando uma taça de vinho tinto
Silvana Aluá, 37, sommelière e criadora da Confraria das Pretas, em SP - Bruno Santos/ Folhapress

Um dos serviços oferecidos são os encontros pagos nos quais Silvana explica um pouco sobre a bebida, a harmonização e os tipos de uva.

Segundo ela, os eventos podem acontecer em qualquer lugar —de restaurantes e empresas a lajes. "Não são aulinhas ou cursos. Tento proporcionar uma experiência."

Outro serviço é o Rolê do Vinho, em que Silvana leva um grupo para conhecer wine bars. "Eu recebia muita reclamação de pessoas que diziam: 'Ah, eu vou no bar de vinho, não vejo ninguém preto e acabo não me sentindo bem'. Por isso eu ofereço essa opção, na qual eu levo pessoas pretas para irem juntas conhecer esses lugares."

Com a pandemia, as atividades foram suspensas, e ela tem realizado apenas encontros virtuais e gratuitos.

Formada como sommelier, ela tenta se firmar no mercado desde 2010, mas as oportunidades surgiam apenas na área de vendas. Ao longo desse tempo, a maior dificuldade que sentiu foi por ser negra.

"Em um dos primeiros lugares em que eu consegui trabalhar, um empório, o dono achava que não ficava bem uma mulher negra vendendo produtos tão sofisticados."

Carlos Bezerra do Nascimento, 39, é outro profissional negro do setor. Sommelier em Fortaleza (CE) e certificado pela Fisar (Federazione Italiana de Sommelier Albergatori Ristoratori), é juiz de vinhos Iwto (Internacional Wine Tasters Organization).

"Foi difícil porque não acreditavam muito na minha capacidade", conta Carlos, que está na profissão desde 2015.

Ele se diz otimista em relação ao relacionamento entre o mercado do vinho e a população negra. "Estamos vivendo um momento onde as pessoas negras estão tendo mais contato com a cultura do vinho", diz ele, para quem já é possível ver isso na internet. "Falam sobre a conexão entre nós, negros, e a bebida."

Essa conexão é um dos pontos que empolgam a estudante de enologia Larissa Bezerra, 29. Ela lembra que alguns dos registros mais antigos de produção de vinho são do Egito. "Isso é uma coisa que me emociona. Muito do que sabemos hoje sobre enologia temos que agradecer aos nossos ancestrais, e eles eram negros."

Baiana de Porto Seguro, ela estuda na Universidade Federal do Pampa, em Dom Pedrito (RS). "O mundo do vinho é elitizado, as pessoas nos enxergam como se não entendêssemos do tema, é como se a bebida não fosse para nós", diz.

"Quando eu falo que sou estudante de enologia, muita gente diz que eu não tenho cara de enóloga. A cara do enólogo é muito embranquecida. Nos eventos, os enólogos são geralmente brancos e homens", diz Larissa.

Não há uma definição da quantidade de sommeliers que atuam no Brasil, menos ainda qual é parcela de negros. Já os enólogos são ao menos 300 em todo o país, sendo 60 mulheres, segundo Associação Brasileira de Enologia (ABE). Também não há dados sobre enólogos negros.

"A amplitude geográfica que a bebida ganhou no país abriu espaço para novas pessoas. Isso deixa o vinho brasileiro mais rico", diz o enólogo Daniel Salvador, presidente da ABE.

mulher negra com blusa preta ao lado de notebook
A sommelière de cervejas Sara Araújo, 42 - Arquivo pessoal

Quem trabalha com outras bebidas também sofre preconceito. No mês passado, a sommelière de cervejas Sara Araújo, 42, sofreu agressões de colegas da área em redes sociais.

"Hoje, um bando de homens brancos do mundo da cerveja achou que seria legal levar minha imagem e da cervejaria Implicantes [que homenageia personalidades negras nos rótulos] num grupo para vomitar os seus racismos. O ataque não foi só a mim e a cervejaria. É a todo povo preto", diz a postagem feita no canal do Instagram Negra Cervejas Sommelier, criado por ela.

Sara, que é formada em direito e assessora jurídica na Defensoria Pública do Paraná, decidiu trabalhar com cervejas artesanais após participar de um festival cervejeiro.

"Quando fiz o curso de beer sommelier em 2018, eu fui a única pessoa negra na sala. É desolador", diz.

Ela diz que o mercado ainda não enxerga o consumidor negro, por isso também a dificuldade de dar espaço para os profissionais. "Conheço histórias de empresas nessa área que dizem abraçar a diversidade, mas é só da boca para fora", afirma Sara.

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