EUA começam a ver ameaça que Trump representa, diz Michiko Kakutani

Crítica literária analisa como ataques à verdade viraram estratégia da direita

Paula Leite
São Paulo

A direita americana, e o governo do republicano Donald Trump em particular, se apropriaram de ideias antes identificadas com a esquerda e, com a erosão gradual do valor dos fatos e do conhecimento, criou o clima de pós-verdade em que se vive hoje, opina a crítica literária americana Michiko Kakutani no livro recém-lançado “A Morte da Verdade”.

A crítica literária Michiko Kakutani, autora do livro "A morte da verdade"
A crítica literária Michiko Kakutani, autora do livro "A morte da verdade" - Divulgação


“A ascensão da subjetividade e os ataques acelerados aos fatos são resultado de várias dinâmicas simultâneas, incluindo o argumento pós-moderno de que não existe verdade objetiva”, diz ela à Folha.
Em sua obra, Kakutani explica a curiosa inversão pela qual os conservadores, antes “guardiões da tradição, da expertise e do Estado de Direito”, hoje usam como uma espécie de base intelectual as ideias derivadas de pós-modernos como Jacques Derrida e Jacques Lacan sobre desconstrução da linguagem e verdades parciais.

Já a esquerda, especialmente nos EUA, passou do polo de desconfiar do “sistema”, do governo e das grandes corporações para o lado em que se vê hoje, identificada com o elitismo intelectual e com o “establishment” da Costa Leste.

No entanto, a jornalista, que foi por mais de 30 anos a principal crítica de livros do The New York Times, afirma que os americanos estão acordando para a ameaça representada por Trump –o fato de o Partido Democrata ter retomado o controle da Câmara dos Deputados nas eleições deste mês seria um indício disso, diz ela.
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A sra. fala no livro sobre o poder das narrativas e sobre como a direita englobou a narrativa da desconfiança em relação a instituições e ao “sistema”, que antes pertencia à esquerda. Quais são algumas das novas narrativas que a direita e a direita alternativa estão tentando emplacar nos Estados Unidos?

O governo Trump e a direita têm espalhado a desconfiança nas instituições que protegem a nossa democracia. Eles têm atacado a imprensa como “inimiga do povo” e “fake news” (quando são Trump e seus asseclas que estão mentindo e espalhando desinformação em uma velocidade sem precedentes), enfraquecendo a independência do Judiciário, desacreditando o FBI e tentando subverter a credibilidade do próprio sistema eleitoral. Os motivos de Trump são tirar o crédito de seus críticos e se inocular contra possíveis acusações criminais. Seus ataques também são uma tática conhecida, usada por líderes autoritários em seus esforços para sabotar instituições que os cobrem sobre suas responsabilidades e para criar tamanha descrença do público em relação ao sistema, de modo que as pessoas parem de participar do processo político.

A prevalência da ideia de que a opinião de alguém é tão relevante quanto fatos jornalísticos ou científicos tem mais a ver com a cultura de narcisismo e com as mídias sociais, ou com a tendência do jornalismo de apresentar “especialistas” com visões extremas e suas opiniões como válidas?

A ascensão da subjetividade e os ataques acelerados aos fatos são resultado de várias dinâmicas simultâneas, incluindo o argumento pós-moderno de que não existe verdade objetiva, só verdades menores e parciais que dependem da perspectiva (como a de classe); e com a crescente polarização da política, que tem encorajado visões tribais e a aceitação de “fatos alternativos” (sobretudo, de mudança climática a  controle de armas).

Toda vitória inesperada de um populista tem sido apontada como resultado de algoritmos, das mídias sociais e de fake news. A sra. acha que o papel desses elementos em decidir eleições está exagerado?

As redes sociais contribuíram para isolar as pessoas em “bolhas”, conversando só com indivíduos que pensam como elas e expostas apenas a informação que tende a ratificar crenças preexistentes. Mas outros fatores deram combustível à ascensão do populismo nesta era em que a globalização, as mudanças tecnológicas e a contínua reverberação da crise financeira de 2008 criaram ansiedades em pessoas que temem perder seu emprego e seu status —ansiedades que as fazem suscetíveis a apelos de políticos inescrupulosos à raiva e ao medo. Além disso, num momento em que estamos atordoados pela sobrecarga de informações, com frequência são vozes demagógicas —as mais altas e estridentes— que têm sucesso em chamar a atenção.

Existe um caminho para o jornalismo profissional nesse cenário? A sra. acha que as pessoas vão perceber em algum momento o valor de fatos?

O papel essencial do jornalismo de revelar verdades e cobrar políticos têm sido mostrado com destaque pelas reportagens investigativas feitas por veículos como o The New York Times, The Washington Post, New Yorker e outros pelo mundo depois da eleição de Trump, do “brexit” e das crescentes ameaças à democracia ao redor do globo. Nos Estados Unidos, há sinais de que as pessoas estão reconhecendo as ameaças representadas pela teimosia de Trump e por seu desprezo ao Estado de Direito, e estão reafirmando a importância de ter pesos e contrapesos no governo —prova disso é o fato de os democratas terem retomado o controle da Câmara dos Deputados [nas eleições legislativas de novembro], com um repúdio à política de medo e desinformação em enclaves republicanos como o Arizona.

A narrativa vendida pelos liberais nas últimas décadas, de uma América globalizada e pós-racial, com empregos para todos apesar dos avanços tecnológicos, não se tornou realidade —a desigualdade aumentou, salários estão estagnados e os americanos estão mais endividados. Isso pode ter feito com que o país ficasse mais receptivo às táticas de Trump?

O “fim da história” e o triunfo da democracia liberal profetizados depois do fim da União Soviética deram lugar, nos últimos anos, a um ressurgimento do autoritarismo ao redor do mundo e à erosão das normas democráticas nos EUA e em partes da Europa, América Latina e Ásia. Descobrimos que os milagres da tecnologia têm um lado escuro, com a inteligência artificial e a automação levando à perda de empregos.
 Ao mesmo tempo, os frutos da globalização e do livre comércio têm sido distribuídos de forma tão heterogênea que há desigualdade crescente em muitos países, o que resulta em ressentimentos contra as elites e os sistemas e instituições estabelecidos. Esses fatores nos lembram de que reformas —econômicas e de justiça social— são uma parte crucial da democracia, assim como a educação para a participação cívica. Conhecer a história não só de nossa nação mas também de outros países ao redor do mundo pode servir de lição sobre a fragilidade da democracia e sobre as consequências devastadoras do fascismo e da autocracia.

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