Após quase dois meses de estranhamentos, os militares e a área mais radical do bolsonarismo no governo têm na crise da Venezuela seu principal enfrentamento. Até aqui, os sinais dão vantagem aos fardados na disputa.
Recapitulando. Desde a formação do governo, a ala ideológica do bolsonarismo se aglutinou em torno de três ministérios: Relações Exteriores, Educação e Direitos Humanos.
Nos dois últimos, a agenda conservadora defendida por Jair Bolsonaro na campanha eleitoral ganha contorno de polêmicas frequentes, mas que acabam submetidas ao sistema de freios e contrapesos: discussões no Congresso, reações da sociedade civil ao que parecer abusivo.
Mas o Itamaraty é outra história, e lá a ascensão do desconhecido Ernesto Araújo da condição de diplomata blogueiro e fiel seguidor de Olavo de Carvalho a chanceler pegou muita gente de surpresa.
Na corporação, qualquer um que assumisse atrairia críticas e ciúmes na mesma proporção que novos aliados, isso é do jogo, ainda que o discurso inaugural no qual falou de sua cruzada contra o globalismo marxista seja algo inaudito no país.
A turma "olavista" do setor, formada por Araújo e seu fiador político, o filho de Bolsonaro e deputado federal Eduardo (PSL-SP), além do assessor internacional do presidente, Filipe Martins, assumiu bandeiras complexas na área internacional.
Cumprir a promessa do então candidato ao seu público evangélico e mudar a embaixada do Brasil em Israel para Jerusalém tem implicações políticas e práticas, como danos ao comércio de proteína "halal" com países muçulmanos. Críticas diretas à ida da China à "xepa" da infraestrutura brasileira, idem. O resultado: ambas as coisas estão cada vez mais relegadas à retórica.
Mas foi no declarado alinhamento às políticas do presidente americano Donald Trump, expresso por Bolsonaro e Araújo, que a coisa desandou. Isso porque confrontou o grupo diretamente com o núcleo mais poderoso nessa largada de governo, os militares —sejam eles o vice Hamilton Mourão, os influentes generais da reserva no ministério ou os comandantes da ativa.
Primeiro, Bolsonaro e Araújo falaram em uma base militar americana no Brasil, só para terem a ideia jogada no lixo pelo ministro Fernando Azevedo (Defesa). Depois, mais grave, a questão da Venezuela que ora cresce para uma crise imprevisível.
Como a Folha relatou desde o começo deste mês, Araújo teve suas iniciativas relativas à Venezuela tosadas pela área militar, que o submeteu a uma espécie de tutela antecipada. Nada de cortar cooperação militar com Caracas, fonte de informações de inteligência, muito menos abraçar a pressão americana por uso de tropas brasileiras ou, pecado dos pecados, americanas num envio forçado de ajuda humanitária aos opositores liderados por Juan Guaidó.
De quebra, a crise ocorre no momento em que os militares no governo buscam colocar freios à influência dos três filhos políticos de Bolsonaro no governo, explicitada na turbulenta demissão do então ministro Gustavo Bebianno na segunda (18).
Mas a situação está longe de resolvida. A pressão americana segue, e há o temor que uma ação direta de agentes americanos como o assessor de Segurança de Trump, John Bolton, sobre o presidente. Um recrudescimento da crise nas fronteiras, que agora chegou às vias de fato em Roraima com o fechamento determinado pela ditadura de Nicolás Maduro, pode levar a desenvolvimentos insondáveis.
Se a situação evoluir para algum tipo de escaramuça ou confronto, é provável que ocorra do lado colombiano, ainda que tudo indique que o que está em campo é tão somente um jogo de pressão sobre o ditador. Mas erros acontecem, tiros são dados, e se EUA e Colômbia avançarem o sinal, a pressão para que o Brasil faça o mesmo será enorme dentro da corte bolsonarista.
Por ora, a ida do general Mourão para a reunião do Grupo de Lima no dia 25 sugere que os militares seguem dando as cartas. A área de Defesa não quer ver a repetição de termos que considera inadequados em resoluções às quais não teve acesso, e a situação está mais grave do que em janeiro.
Assim, Araújo terá de suportar as ordens do vice, que já o desautorizou no caso da embaixada em Israel e disse que ninguém deve se importar com o que diz Olavo de Carvalho, padrinho ideológico do chanceler. Essa é uma batalha que corre paralelamente àquela que se insinua nas fronteiras ao norte do Brasil, e nunca é demais lembrar que não é só a Colômbia que tem os EUA como principal aliado.
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