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Maconha pode ajudar a acabar com a crise dos opioides nos EUA?

Ideia gera entusiasmo, mas não há comprovação de que uso medicinal de cânabis reduza mortes por opioides

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Austin Frakt
The New York Times

A ideia de que a maconha legalizada pode ajudar a combater a crise dos opioides gera muito entusiasmo e esperança.

O uso abusivo de opioides vem diminuindo nos últimos anos concomitantemente com o aumento no consumo da cânabis. Muitos estados americanos liberalizaram as leis relativas à maconha.

Com base em pesquisas recentes, alguns defensores da liberalização da maconha estão promovendo essa ligação entre maconha e opioides. Eles argumentam que o acesso mais fácil à maconha reduz o consumo de opioides e, por sua vez, o número de mortes por overdose destes últimos.

Um estudo recente recomenda cautela. Às vezes as aparências e mesmo as estatísticas podem ser enganosas.

Por que as pessoas estavam esperançosas

É plausível que a maconha possa ajudar a reduzir a dor. Revisões sistemáticas indicam que determinados compostos encontrados na maconha ou em canabinoides produzidos sinteticamente de fato combatem a dor, pelo menos a dor decorrente de alguns problemas médicos. Assim, algumas pessoas que provavelmente usariam analgésicos opioides podem recorrer à maconha medicinal em seu lugar.

As normas vigentes em alguns estados (incluindo Nova York) que otimizam o acesso à maconha medicinal são baseadas na ideia de que ela possa substituir os opioides como tratamento contra a dor.

Um estudo publicado em 2014 no periódico Jama (Journal of the American Medical Association) aventou novas esperanças de que a liberalização das leis sobre a maconha pudesse aliviar a crise dos opioides.

O estudo examinou os anos de 1999 a 2010, período no qual dez estados americanos criaram programas de maconha medicinal. Comparou mudanças nos índices de mortes por uso de analgésicos opioides em estados que aprovaram leis sobre maconha medicinal com os mesmos índices em outros estados.

Os pesquisadores descobriram que a existência dessas leis está associada a uma redução de quase 25% no índice de mortes ligadas a analgésicos opioides.

Outros estudos feitos desde a publicação do artigo no Jama chegaram a conclusões semelhantes. Um estudo publicado no outono passado pela Social Science Research Network concluiu que os condados com farmácias de maconha medicinal têm até 8% menos mortes ligadas a opioides entre homens brancos não-hispânicos e 10% menos mortes ligadas à heroína.

Outros estudos já documentaram uma ligação entre a existência de leis da maconha e a redução das prescrições de opioides por parte do Medicaid e Medicare.

Por que devemos ser céticos

Nada disso comprova que a liberalização da maconha leve à redução da mortalidade ligada a opioides, algo que foi apontado pelos autores do estudo de 2014 publicado no Jama.

Uma correlação não significa causalidade, é claro. Uma dificuldade particular na interpretação de correlações na ciência social tem seu próprio nome: é a falácia ecológica.

Trata-se da conclusão errônea de que relacionamentos observados ao nível maior (por exemplo ao nível de um Estado ou região) sejam necessariamente válidos também ao nível individual.

“É possível que as relações sejam reforçadas, enfraquecidas ou mesmo invertidas quando passamos do nível individual para o agregado”, observou Mark Glickman, professor sênior de estatística na Universidade Harvard. Isso foi documentado em um estudo clássico de 1950. É algo que está por trás de muitas conclusões errôneas tiradas de pesquisas.

Um novo estudo se debruçou outra vez sobre a análise publicada no Jama, acrescentando mais dados. Suas conclusões colocam em dúvida a ideia de que a maconha medicinal ajude a reduzir as mortes por opioides –pelo menos pelo que podemos concluir com dados de estados. 

Entre 2010 –o último ano analisado no estudo da Jama— e 2017, 32 outros estados americanos legalizaram a maconha medicinal e oito legalizaram seu consumo recreativo. Um novo estudo publicado no Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS) reavaliou a relação entre essas leis e as mortes por opioides, usando a mesma abordagem que o estudo do Jama, mas estendendo os anos analisados até 2017.

Ao longo dos anos analisados no estudo do Jama, 1999 a 2010, o novo estudo do PNAS produziu resultados semelhante: a legalização da maconha medicinal estava associada à redução do número de mortes por overdose de analgésicos opioides. Mas quando a análise foi ampliada para chegar a 2017, os resultados se inverteram: as leis estão associadas a um aumento de 23% no número de mortes.

Isso não significa necessariamente que as leis tenham primeiro salvado vidas e então, em anos posteriores, contribuído para overdoses fatais.

“Se existe uma relação entre o uso de cânabis medicinal e as overdoses por opioides em nível individual, este tipo de estudo não é capaz de revelar essa relação”, disse a epidemiologista Chelsea L. Shover, autora principal do estudo do PNAS e pesquisadora pós-doutoranda da Escola de Medicina de Stanford.

Glickman disse: “Outras fontes de viés potencial são possíveis em todos estes estudos. Enquanto os estados liberalizavam suas leis sobre a maconha, também podem ter modificado outras políticas que afetaram as overdoses por opiáceos.” Podemos ser enganados por análises que também não levam em conta essas leis.

Por exemplo, esforços para ampliar o tratamento médico do abuso de opioides podem reduzir as mortes. Ou encarcerar mais usuários de opiáceos pode aumentar o número de mortes, porque estudos descobriram que a chance de overdoses aumenta depois de um usuário ter passado tempo na prisão.

Outras evidências sugerem que é pouco provável que o acesso mais fácil à maconha possa reduzir significativamente os índices de morte por analgésicos opioides. Para começar, os usuários de maconha medicinal compõem apenas 2,5% da população adulta –uma parcela pequena dos 38% aos quais é receitado um analgésico opioide anualmente.

Além disso, alguns estudos colocam em dúvida a ideia de que a maconha medicinal possa substituir os opioides. Um estudo concluiu que o uso de maconha medicinal tem correlações positivas com o uso e também o abuso de medicamentos vendidos com receita médica, incluindo analgésicos.

Outro estudo descobriu que os pacientes que usam analgésicos opioides e também maconha medicinal tomam doses maiores de opioides em relação aos que não usam maconha medicinal. E ainda outro estudo concluiu que o consumo de maconha medicinal tende a aumentar as chances de o usuário desenvolver um distúrbio de uso de opioides.

“Dado o que sabemos pelas pesquisas, deveríamos desvincular nosso pensamento sobre cânabis medicinal e overdoses de opioides”, disse Shover. “Mas existem outras maneiras de combater a crise dos opioides.

”Estas incluem aumentar a disponibilidade da naloxona, droga antagonista de opioides usada em casos de overdoses destes, e ampliar o acesso a tratamentos assistidos por medicação. O acesso mais fácil e legalizado à maconha medicinal (e até recreativa) pode ter muitos benefícios. Mas é preciso cautela antes de pensar que reduzir as mortes por opioides é um deles.​

Tradução de Clara Allain

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