Após fugir da Coreia do Norte, mulheres viram escravas cibernéticas na China

Estima-se que 60% das norte-coreanas refugiadas no país vizinho são traficadas para o comércio sexual

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Choe Sang-Hun
Vientiane (Laos) | The New York Times

Durante mais de dois anos, Lee Jin-hui, 20, não teve permissão para deixar um apartamento de três quartos no nordeste da China. Sete dias por semana, ela tinha que sentar em um computador das 12h às 5h, realizando atos sexuais diante de uma webcam para clientes do sexo masculino, na maioria da Coreia do Sul.

No apartamento, Lee e outras norte-coreanas tinham de ganhar cerca de US$ 820 (cerca de R$ 3280) por semana para o cafetão chinês que as comprou de traficantes de seres humanos. Quando fracassavam, eram agredidas, chutadas e deixadas sem comida.

"Tínhamos de trabalhar mesmo quando estávamos doentes", disse Lee. "Eu queria tanto sair, mas tudo o que eu podia fazer era espiar pela janela."

Kim Ye-na, 23, à esq., e Lee Jin-hui, 20, norte-coreanas que foram forçadas e trabalharem como strippers virtuais na China
Kim Ye-na, 23, à esq., e Lee Jin-hui, 20, norte-coreanas que foram forçadas e trabalharem como strippers virtuais na China - Adam Dean/The New York Times

A cada ano, contrabandistas de seres humanos levam milhares de mulheres que desejam fugir da Coreia do Norte, prometendo-lhes empregos na China, segundo grupos de direitos humanos e sobreviventes do tráfico.

Mas ao chegar à China muitas das mulheres são vendidas para homens solteiros em cidades rurais ou a cafetões para exploração em bordéis e antros de sexo virtual.

Se forem pegas fugindo dos traficantes, a China as envia de volta para a Coreia do Norte, onde enfrentam tortura e encarceramento em campos de trabalho. Sem ter onde pedir ajuda na China, elas continuam presas na escravidão sexual.

Estima-se que 60% das norte-coreanas refugiadas na China são traficadas para o comércio sexual e cada vez mais coagidas ao cibersexo, disse o grupo de direitos humanos Korea Future Initiative, baseado em Londres, em um relatório em maio.

"Garotas de 9 anos são forçadas a realizar atos sexuais explícitos e são agredidas sexualmente em frente a webcams, que fazem transmissão ao vivo para uma audiência global pagante, grande parte da qual se acredita seja de homens sul-coreanos", diz o relatório.

Quando ela foi contrabandeada para fora da Coreia do Norte, na primavera de 2017, Lee foi avisada de que seria garçonete na China. Quando ela chegou, seu chefe disse que seu trabalho era "conversar" no computador. Até então, ela nunca tinha visto um computador. Nem sabia o que era uma webcam. Tinha 18 anos.

"Eu pensei que 'conversar' era algum tipo de contabilidade com um computador", disse Kim Ye-na, 23, contrabandeada em novembro passado, acreditando que iria colher cogumelos na China. "Nunca imaginei o que seria."

Lee e Kim fugiram do cativeiro em 15 de agosto.

Seis dias depois, elas chegaram a Vientiane, no Laos, com um homem que recebeu US$ 4.000 para passá-las pela fronteira com a China.

Esperando por elas estava o reverendo Chun Ki-won, pastor cristão da Coreia do Sul que financiou e orquestrou seu resgate.

As mulheres concordaram em dar entrevistas enquanto estavam em Vientiane, usando apelidos dados na fuga para proteger sua privacidade e evitar possível retaliação do governo norte-coreano contra seus parentes no Norte.

The New York Times não pôde confirmar de forma independente alguns detalhes da fuga, mas gravações de conversas online entre Chun e as mulheres feitas antes da escapada comprovaram seus relatos.

Fora da Coreia do Norte

Lee e Kim eram da "geração da Marcha Árdua" norte-coreana: crianças nascidas por volta dos anos 1990, quando a fome exterminou 10% da população. Mal saídas do ensino fundamental, elas começaram a trabalhar.

Kim trabalhou em uma mina de jade e depois ingressou no mercado informal, vendendo frutas e roupas sul-coreanas contrabandeadas da China. Lee colhia e vendia ervas silvestres.

À medida que cresciam, sua cidade natal, Hyesan, e outras ao longo do rio estreito na fronteira com a China se tornaram um campo de caça para traficantes de seres humanos. Em 2017, um parente vendeu Lee.

"Eu mesma queria ir para a China porque ouvi falar de garotas que foram para lá e enviavam dinheiro para suas famílias", disse Lee.

Depois de trocar de mãos duas vezes entre traficantes de pessoas, Lee acabou com um homem que mantinha cinco norte-coreanas em cativeiro em Helong, no nordeste da China.

Kim também queria uma saída. O líder da Coreia do Norte, Kim Jong Un, começava a reprimir jovens comerciantes nos mercados, na esperança de levá-los a projetos de construção sob o comando do Estado. Uma contrabandista com quem Kim fez amizade concordou em levá-la para a China.

A mulher que comprou Kim também era de Hyesan e trabalhava para um grupo de tráfico sexual, gerenciando uma dúzia de mulheres na webcam, todas de Hyesan, em apartamentos espalhados por Gongzhuling, no nordeste da China. Ela disse que Kim lhe devia 80 mil renminbi, ou US$ 11.160 (R$ 44,6 mil).

"Ela disse que eu poderia ir para a Coreia do Sul depois de trabalhar para ela por três anos", disse Kim. "Ouvi dizer que na Coreia do Sul você pode viver decentemente se trabalhar muito. Era tudo o que eu pedia."

Na escravidão cibernética

Alguns clientes sul-coreanos de Lee pediam que ela fizesse atos sexuais desumanos demais para ela descrever. "Se eu recusasse, eles me chamavam de lixo sujo da Coreia do Norte", disse ela.

Outros homens tinham pena das mulheres. Dois dos clientes de Lee enviavam dinheiro regularmente para sua chefe, para que ela pudesse dormir um pouco mais.

Em dezembro passado, uma mulher desapareceu do lugar de Lee. A cafetina disse que ela foi atraída por traficantes de órgãos e devia estar morta, deixando as outras mulheres aterrorizadas.

Kim disse que apenas duas mulheres foram libertadas de seu apartamento --quando ambas desenvolveram tuberculose. Depois de serem severamente espancadas, outras duas tentaram escapar do apartamento no sexto andar, descendo pelos canos de água. A polícia logo as prendeu, mas a cafetina se recusou a pagar subornos para impedir seu repatriamento para a Coreia do Norte. Ela estava fazendo delas uma lição para as outras.

Salto para a liberdade

No final de 1995, Chun, na época um hoteleiro e ainda não pastor, estava em viagem de negócios a Hunchun, cidade chinesa na fronteira com a Coreia do Norte, quando percebeu como eram terríveis as circunstâncias. Ele viu os corpos não recolhidos de norte-coreanos que fugiam da fome, congelados até a morte no rio quando atravessavam a fronteira; a polícia chinesa espancando crianças pedintes para afastá-las; uma mulher gritando por socorro quando foi sequestrada por dois homens.

Chun mais tarde se tornou um missionário cristão. Desde 2000, ele trouxe 1.200 refugiados norte-coreanos da China para a Coreia do Sul, incluindo muitas mulheres traficadas para casamentos forçados. Nos últimos anos, no entanto, sua missão Durihana em Seul, capital do Sul, começou a receber mensagens online anônimas de mulheres presas pelo cibersexo na China e telefonemas de homens que queriam resgatá-las.

Uma dessas ligações foi de um entregador de ração animal na Coreia do Sul, em julho.

Ele enviou ao chefe de Kim 15 milhões de wons sul-coreanos, ou US$ 12.360 (quase R$ 50 mil), para comprar sua liberdade. Mas o contrabandista que prometeu levar Kim para a Coreia do Sul a vendeu para um chinês na casa dos 50 anos. O homem sul-coreano enviou outros 15 milhões à chefe original de Kim para libertá-la do casamento forçado. Mas então ele percebeu que tinha sido enganado.

Na mesma época, Chun recebeu um telefonema de um homem que queria ajudar Lee. Ela também recebeu notícias surpreendentes: a mulher que foi sequestrada por traficantes de órgãos a contatou através de um site de webcam. Ela saltou do apartamento no terceiro andar e agora morava na Coreia do Sul.
Chun contatou Lee e Kim, fingindo ser um cliente.

A mulher que escapou ajudou Chun a encontrar o bairro de Lee. Kim memorizou o número de telefone de um restaurante próximo ao qual seu chefe a levou uma vez. Espreitando pelas janelas, Lee e Kim identificaram o maior número possível de pontos de referência para ajudar Chun a encontrar suas localizações no Google Earth.

Chun então enviou sete voluntárias para a China, incluindo duas sobreviventes do tráfico.

Em 15 de agosto, uma equipe esperou em um táxi do lado de fora do apartamento de Kim e a seguiu, com outra garota e sua chefe, quando uma súbita falta de água as forçou a sair para comer. Kim fingiu estar doente no caminho de volta, vomitando na calçada e correndo para um banheiro público. Quando a chefe entrou em outra cabine, Kim correu para o táxi dos socorristas e ele escapou.

No mesmo dia de agosto em Helong, Lee saiu do quarto enquanto seu cafetão chinês saiu para beber. Pela janela da sala, ela viu um colchão de ar e um socorrista acenando. Ela subiu no parapeito, depois hesitou.

"A altura era terrível", disse ela. "Mas era a única saída."

Ela saltou.

No final de agosto, uma van preta parou do outro lado da rua da Embaixada da Coreia do Sul em um país do Sudeste Asiático, onde desertores podem solicitar asilo. Segurando as mãos de Chun, Lee e Kim saíram e atravessaram a rua, caminhando seus últimos metros para a liberdade. O portão de aço se abriu e as meninas entraram.

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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