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O que muda na relação entre EUA e Israel se Netanyahu deixar o poder?

Premiê israelense enfrenta dificuldades para seguir à frente do governo

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Daniel Shapiro
The Washington Post

Ainda não foram contados todos os votos. Há uma negociação tensa pela frente para formar uma coalizão. E, se ele superar esses obstáculos, ainda corre o risco de ser indiciado por corrupção.

As coisas não estão resolvidas, e ainda é possível que o Houdini de Israel consiga se safar desta enrascada. Mas, depois de mais de uma década no poder, e tendo conquistado fama de mago da política, é possível imaginar o fim da era de Netanyahu. Foi uma aventura e tanto.

O presidente Donald Trump e o premiê Binyamin Netanyahu em encontro em Jerusalém, em 2017
O presidente Donald Trump e o premiê Binyamin Netanyahu em encontro em Jerusalém, em 2017 - Ronen Zvulun - 23.mai.17/Reuters

O relacionamento EUA-Israel é profundo, amplo e multifacetado. Abrange aspectos de segurança, econômicos, tecnológicos e sociais. É muito mais do que as relações pessoais entre nossos líderes.

Mesmo assim, nos últimos dez anos o primeiro-ministro israelense Binyamin Netanyahu virou uma figura de peso excepcional, alguém cuja personalidade e presença dominaram as relações entre os dois países.

O premiê que passou mais tempo no cargo na história de Israel, Netanyahu lidera o país desde 2009 (além de outros três anos no final da década de 1990).

Mas sua tentativa de conquistar um quinto mandato por meio de eleições antecipadas em abril deste ano deu para trás, levando a um impasse e um empate inconclusivo ao qual é possível que ele não sobreviva na nova eleição antecipada promovida nesta semana.

Seria difícil exagerar até que ponto Netanyahu, durante seu tempo no poder, fez diplomacia baseada em sua personalidade.

Chegando aos Estados Unidos como parte de sua comitiva em viagens, como fiz em várias ocasiões quando fui embaixador dos EUA em Israel, a sensação que eu tinha era de fazer parte da comitiva de um grande astro do rock.

Os flashes pipocavam. Americanos importantes dos campos da política, dos negócios e lideranças de comunidades pediam audiências com ele. Âncoras famosos de programas de jornalismo faziam fila para entrevistá-lo.

E a visita geralmente era coroada por uma performance de destaque em algum palco famoso: um discurso perante as Nações Unidas, no Congresso ou em um salão de convenções repleto de seus partidários.

Seu talento de orador é legendário. Aprimorado quando ele fez seus estudos secundários na Filadélfia e em períodos no início de sua vida profissional passados em Washington e Nova York, seu inglês é idiomático e sem sotaque.

Netanyahu domina seus argumentos completamente, como seria de se esperar de um homem que passou décadas refletindo sobre os desafios colocados à segurança de seu país e seus caminhos para o sucesso.

Falar de frivolidades não o interessa. Netanyahu permanece sempre focado incansavelmente sobre seus objetivos.

Para os israelenses, essa persistência tem sido a chave do sucesso político de Netanyahu. Israel enfrenta ameaças graves, até mesmo existenciais. O país está constantemente no noticiário. É um dos aliados mais próximos dos Estados Unidos, em uma região onde esse papel vem ficando cada vez mais complicado.

O povo israelense apreciou o fato de Netanyahu defender seu país incansavelmente no palco mundial.

Mas em alguns momentos a atração magnética em volta dele me pareceu excessiva. Em uma visita durante o primeiro mandato do presidente Barack Obama, houve um almoço no Salão do Gabinete da Casa Branca, após uma reunião no Salão Oval.

Do lado israelense da mesa, alguns assessores mais ou menos anônimos estavam de cada lado de Netanyahu.

Diante dele, do outro lado da mesa, estavam o presidente dos Estados Unidos, o vice-presidente, o secretário de Estado, o secretário da Defesa, o assessor de segurança nacional, o chefe de gabinete da Casa Branca e vários enviados seniores.

Não havia uma divisão de trabalho. Diferentemente do que ocorre com a maioria dos líderes mundiais, todos os altos funcionários do governo americano sentiam que era importante estar na órbita de Netanyahu.

Mas não era apenas uma necessidade de estar na presença dele ou de conversar ou debater com ele.

A personalidade de Netanyahu definia uma parte muito grande de nosso relacionamento. Ele correria riscos em nome da paz com os palestinos? Como ele lidaria com a política complexa de sua coalizão?

Ele atacaria as instalações nucleares do Irã? Até que ponto ele se inseriria na política doméstica americana?

Essas perguntas frequentemente dominavam as discussões políticas internas dos EUA.

Nos anos da presidência de Obama, sessões inteiras de segurança nacional às vezes eram dedicadas a discussões psicológicas amadoras sobre como poderíamos convencer Netanyahu a fazer alguma concessão pequena em negociações de paz, como convencê-lo de que ele conseguiria sobreviver aos riscos políticos se o fizesse e como administrar sua personalidade às vezes espinhosa para evitar consequências desagradáveis de divergências, quer fossem pessoais, de discurso ou de políticas.

(O discurso que Netanyahu fez no Congresso contra o acordo nuclear de Obama com o Irã em 2015 foi todas as três coisas.)


O podcast Café da Manhã explica a ressaca política em Israel. Ouça abaixo:  

​Alguns de meus colegas na administração o achavam frustrante, e, com desavenças graves entre nós, as tensões se elevavam de ambos os lados.

Quanto mais tempo eu passava com Netanyahu como embaixador, mais percebia quanta energia nós, do governo dos EUA, estávamos desperdiçando com esses jogos mentais.

Por um lado, Netanyahu era um aliado estreito, alguém com quem os EUA têm muito em comum, coopera profundamente e promove muitos interesses em comum.

O fato de a população israelense tê-lo escolhido como seu primeiro-ministro merece nosso respeito. Mas ele também era um ator político de um país diferente, cujos interesses divergiam dos nossos, e era pouco provável que ele fosse convencido por nós a mudar de ideia sobre questões que considerava essenciais a seu país ou para ele pessoalmente.

Um pouco menos drama poderia ter beneficiado a todos.

Aqueles foram os anos difíceis do relacionamento Obama-Netanyahu (que ecoaram problemas semelhantes com o presidente Bill Clinton no primeiro mandato de Netanyahu, na década de 1990).

Mais recentemente, Netanyahu emergiu como um dos aliados internacionais mais próximos do presidente Donald Trump.

A admiração mútua dos dois é profunda e conserva Netanyahu muito presente aos olhos do público americano, defendendo os interesses de Israel e destacando áreas de concordância com Trump.

Mas Netanyahu também atraiu a ira dos americanos que enxergam Trump como uma figura singularmente perigosa na história dos Estados Unidos e veem o abraço exagerado de Netanyahu como algo que extrapola as necessárias boas relações de trabalho com o presidente, equivalendo a um endosso na arena política americana.

Agora parece que o abraço de Trump está se enfraquecendo: após tentativas abertas de ajudar Netanyahu a vencer a eleição de abril, o ardor de Trump esfriou.

Na quarta-feira (18) ele ofereceu uma visão pouco trumpiana do empate eleitoral em Israel, ignorando seu amigo e dizendo: “Nosso relacionamento é com Israel”.

Se de fato esse líder icônico, presença constante no palco mundial há tanto tempo, vai desaparecer de cena em pouco tempo, isso vai afetar a condução das relações entre EUA e Israel.

Não existe outra figura em Israel, e com certeza nenhuma entre seus sucessores prováveis, quer do Likud ou do partido oposicionista Azul e Branco, que possa abordar o trabalho de primeiro-ministro exatamente do mesmo modo, no que diz respeito aos Estados Unidos.

Nenhum outro político possui a habilidade de Netanyahu como orador, seu inglês rematado, sua confiança suprema (embora às vezes desatualizada) em seu conhecimento da sociedade americana, sua rede de contatos entre as elites americanas, sua disposição de intervir na política dos EUA para promover os interesses de Israel.

Nenhum outro político israelense é tão reconhecível pelo grande público, e nenhum outro vai inspirar o grande amor ou a profunda antipatia que Netanyahu suscita entre públicos diferentes.

A mudança pode ser sadia, na realidade. Ela pode reduzir o primeiro-ministro de Israel a dimensões realistas no relacionamento EUA-Israel.

Os laços entre o sucessor de Netanyahu e Trump certamente podem ser calorosos –algo que sempre é desejável entre os líderes de dois países aliados— sem serem próximos demais.

O premiê israelense pode tornar-se uma figura menos controversa, talvez até mesmo secundária, na política americana, mantendo laços próximos e cordiais com membros dois dois partidos e superando as tensões com os democratas que emergiram em torno do pacto com o Irã e continuaram sob Trump (incentivadas pela Casa Branca).

Esse líder pode construir laços na América mais jovem e diversa que se estendam para além de Nova York, dos think tanks de Washington e estúdios de televisão, lugares onde Netanyahu se sente à vontade desde os anos 1980.

Tal primeiro-ministro israelense ainda será, corretamente, um defensor ferrenho dos interesses de Israel.

Os dois países continuarão a ser aliados estreitos em muitas áreas, cada um apoiando a segurança do outro.

Também enfrentaremos algumas das mesmas divergências e dos mesmos dilemas que enfrentamos hoje sobre questões como o modo de manter e promover as perspectivas de uma solução de dois estados com os palestinos.

Um líder israelense de perfil mais baixo não vai enfraquecer a cooperação, mas pode tornar mais fácil administrar as diferenças em proporções mais sadias, com o relacionamento EUA-Israel conduzido por líderes de modo cordial, com o apoio de profissionais, sem os pontos altos dramáticos e os pontos baixos rancorosos que têm sido tão comuns nos anos de Netanyahu.

Às vezes o entediante é bom. 

Daniel Shapiro é membro visitante ilustre do Instituto de Estudos de Segurança Nacional da Universidade de Tel Aviv. Ele foi embaixador dos EUA em Israel de 2011 até o final da administração Obama. Tradução de Clara Allain 

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