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Documentos revelam que governo dos EUA divulgou falsidades sobre guerra no Afeganistão

Exército norte-americano 'não tinha a menor noção' do que fazia no país, afirma coronel

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Craig Whitlock
Washington | Washington Post

Um conjunto de documentos confidenciais do governo dos Estados Unidos obtido pelo jornal The Washington Post revela que autoridades norte-americanas não disseram a verdade sobre a guerra no Afeganistão, fazendo pronunciamentos positivos que sabiam serem falsos e escondendo claras evidências de que a guerra se tornara invencível.

Os documentos foram gerados por um projeto federal que examinou as falhas fundamentais no conflito armado mais longo da história dos EUA.

São mais de 2.000 páginas de anotações inéditas de entrevistas com pessoas que tiveram um papel direto na guerra, de generais e diplomatas a trabalhadores de ajuda humanitária e autoridades afegãs.

O governo dos EUA tentou proteger a identidade da maioria dos entrevistados para o projeto e ocultar quase todas as suas observações.

O Post conseguiu a liberação dos documentos sob a Lei de Liberdade de Informação, depois de uma batalha jurídica de três anos.

Artilharia treinando em Jaghatu, no Afeganistão - Lorenzo Tugnoli - 10.set.12/The Washington Post

Nas entrevistas, mais de 400 pessoas fizeram críticas irrestritas sobre o que deu errado no Afeganistão e como os EUA se atolaram em quase duas décadas de guerra. Com uma franqueza raramente expressa em público, as entrevistas revelaram queixas, frustrações e confissões, além de críticas e previsões.

"Estávamos desprovidos de um entendimento fundamental do Afeganistão, não sabíamos o que estávamos fazendo", disse Douglas Lute, general três estrelas do Exército que serviu como czar da guerra afegã na Casa Branca durante os governos Bush e Obama,. Ele acrescentou: "O que estamos tentando fazer aqui? Não tínhamos a menor noção do que estávamos empreendendo".

"Se a população americana soubesse a magnitude dessa disfunção... 2.400 vidas perdidas", acrescentou Lute, culpando a morte de militares dos EUA por disputas burocráticas entre o Congresso, o Pentágono e o Departamento de Estado. "Quem dirá que isso foi em vão?"

Desde 2001, mais de 775 mil soldados americanos foram enviados ao Afeganistão, muitos deles diversas vezes. Desses, 2.300 morreram lá e 20.589 foram feridos em ação, segundo dados do Departamento de Defesa.

As entrevistas põem em relevo as principais falhas da guerra que persistem até hoje. Elas ressaltam como três presidentes —George W. Bush, Barack Obama e Donald Trump— e seus comandantes militares foram incapazes de cumprir suas promessas no Afeganistão.

Com a maioria falando sob o pressuposto de que seus comentários não seriam publicados, as autoridades americanas reconheceram que suas estratégias de combate foram fatalmente incorretas e que Washington desperdiçou enormes quantias de dinheiro tentando transformar o Afeganistão em um país moderno.

O governo de Washington não fez uma contabilidade de quanto gastou na guerra no Afeganistão, mas os custos são impressionantes. Desde 2001, o Departamento de Defesa, o Departamento de Estado e a Agência para o Desenvolvimento Internacional (Usaid) gastaram ou se dotaram de US$ 934 bilhões a US$ 978 bilhões, de acordo com uma estimativa corrigida pela inflação feita por Neta Crawford, professora de ciências políticas e codiretora dos Custos de Projeto de Guerra na Universidade Brown.

Esses números não incluem o dinheiro gasto por outras agências, como a CIA e o Departamento de Assuntos dos Veteranos, responsável pelo tratamento médico de combatentes feridos.

"O que recebemos por esse esforço de US$ 1 trilhão? Valeu US$ 1 trilhão?", indagou Jeffrey Eggers, funcionário aposentado do Navy SEAL e da Casa Branca de Bush e Obama, a entrevistadores do governo. Ele acrescentou: "Após o assassinato de Osama bin Laden, eu disse que Osama provavelmente estava rindo em seu túmulo, considerando o quanto gastamos no Afeganistão".

Os documentos também contradizem um longo coro de declarações públicas de presidentes, comandantes militares e diplomatas dos EUA, que garantiram aos americanos, ano após ano, que estavam progredindo no Afeganistão e que a guerra era válida.

Diversos entrevistados descreveram esforços explícitos e constantes do governo dos EUA para deliberadamente enganar o público. Eles disseram que era comum no quartel-general militar em Cabul —e na Casa Branca— distorcer as estatísticas para fazer parecer que os EUA estavam vencendo a guerra.

"Todos os dados foram alterados para apresentar a melhor imagem possível", disse Bob Crowley, coronel do Exército que serviu como consultor sênior dos comandantes militares dos EUA em 2013 e 2014, a entrevistadores do governo. "As pesquisas, por exemplo, eram totalmente inconfiáveis, mas reforçavam que tudo o que estávamos fazendo era certo, e nos tornamos uma casquinha de sorvete que lambia a si mesma."

John Sopko, chefe da agência federal que conduziu as entrevistas, reconheceu ao Post que os documentos mostram que "a população americana constantemente ouviu mentiras".

As entrevistas são o subproduto de um projeto da agência de Sopko, o Gabinete do Inspetor-Geral Especial para Reconstrução do Afeganistão. Conhecida como Sigar, a sigla em inglês, o órgão foi criado pelo Congresso em 2008 para investigar desperdícios e fraudes na zona de guerra.

Em 2014, sob a direção de Sopko, o Sigar abandonou sua missão habitual de realizar auditorias e lançou um empreendimento paralelo, intitulado "Lições Aprendidas" (Lessons Learned). O projeto de US$ 11 milhões tinha como objetivo diagnosticar falhas políticas no Afeganistão, para que os EUA não repetissem os erros na próxima vez que invadissem um país ou tentassem reconstruí-lo.

A equipe do Lições Aprendidas entrevistou mais de 600 pessoas com experiência pessoal na guerra. Além disso, entrevistaram cerca de 20 autoridades afegãs, discutindo programas de reconstrução e desenvolvimento.

O Sigar publicou sete relatórios de Lições Aprendidas desde 2016, que destacam os problemas no Afeganistão e recomendam mudanças para estabilizar o país.

Mas os relatórios, escritos em estilo burocrático denso e enfocados numa sopa de letrinhas de iniciativas do governo, deixaram de fora as críticas mais duras e francas das entrevistas.

"Descobrimos que a estratégia de estabilização e os programas usados para alcançá-la não eram adaptados adequadamente ao contexto afegão, e os sucessos na estabilização de distritos afegãos raramente duravam mais que a presença física de tropas e civis da coalizão", dizia a introdução de um relatório divulgado em maio de 2018.

Os documentos também omitiram os nomes de mais de 90% das pessoas que foram entrevistadas para o projeto. Enquanto algumas autoridades concordaram em falar abertamente ao Sigar, a agência disse que prometeu manter o anonimato de todos os entrevistados para evitar controvérsias sobre questões politicamente delicadas.

De acordo com a Lei de Liberdade de Informação, o Post começou a procurar registros de entrevistas das Lições Aprendidas em agosto de 2016. O Sigar recusou, argumentando que os documentos eram informação privilegiada e que o público não tinha o direito de vê-los. O Post teve que processar o Sigar duas vezes na Justiça federal para obrigá-lo a divulgar os documentos.

A agência finalmente divulgou mais de 2.000 páginas de notas e transcrições não publicadas de 428 das entrevistas, além de várias gravações em áudio. Os documentos identificam 62 pessoas entrevistadas, mas o Sigar apagou os nomes de outras 366. O Post identificou independentemente outras 33 pessoas.

Sopko, o inspetor-geral, disse ao Post que não suprimiu as críticas e dúvidas contundentes sobre a guerra que as autoridades levantaram nas entrevistas das Lições Aprendidas. Ele disse que demorou três anos no cargo para divulgar os registros porque tem uma equipe pequena e porque outras agências federais tiveram que revisar os documentos para impedir que segredos do governo fossem divulgados.

"Nós não escondemos isso", disse ele. "Acreditamos firmemente na abertura e transparência, mas precisamos seguir a lei. (...) Acho que, de todos os inspetores-gerais, provavelmente eu fui o mais liberal sobre informações."

Os registros das das Lições Aprendidas do Sigar estão cheios de opiniões duras de pessoas que moldaram ou executaram a política dos EUA no Afeganistão.

"Nos não invadimos países pobres para enriquecê-los", afirmou James Dobbins, ex-diplomata graduado dos EUA que serviu como enviado especial no Afeganistão sob Bush e Obama, a entrevistadores do governo. "Não invadimos países autoritários para torná-los democráticos. Invadimos países violentos para torná-los pacíficos, e claramente falhamos no Afeganistão."

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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