Descrição de chapéu Diplomacia Brasileira

Em um ano, Ernesto promove guinada ideológica inédita no Itamaraty

Pauta de chanceler encontrou limites quando se chocou com agronegócio e Forças Armadas

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Brasília

Em 2 de janeiro de 2019, diante de uma plateia de diplomatas e embaixadores, Ernesto Araújo fez seu primeiro discurso como ministro das Relações Exteriores.

Ao final da sua fala, ele havia dado as pistas do tamanho da revolução ideológica que planejava promover no Itamaraty: atacou o globalismo e o Foro de São Paulo, posicionou-se contra o aborto e elogiou o escritor Olavo de Carvalho, além de saudar os regimes nacionalistas que lhe serviriam de exemplo, como Estados Unidos, Israel e Hungria.

Quase um ano depois, diplomatas e acadêmicos ouvidos pela Folha afirmam que o chanceler de Jair Bolsonaro conseguiu promover uma guinada conservadora sem precedentes no Itamaraty.

Esse esforço, no entanto, encontrou limites sempre que se chocou contra interesses de setores influentes no Brasil, entre eles o agronegócio e as Forças Armadas.

Ernesto Araújo em encontro do Mercosul, em Bento Gonçalves - Diego Vara/Reuters

Para ficar em alguns exemplos, nos últimos meses Ernesto instruiu a diplomacia brasileira a abandonar seu posicionamento histórico sobre o conflito palestino-israelense e se aproximar do governo de Binyamin Netanyahu e atendeu a pleitos da bancada evangélica e determinou que a chancelaria só reconheça a expressão gênero como o sexo biológico

Ele também mudou uma tradição de 27 anos e não condenou o embargo a Cuba, estabeleceu um alinhamento automático ao governo Donald Trump e abandonou o princípio de não interferência em assuntos internos de outras nações, o que ficou evidente na relação com vizinhos na América do Sul.

“A política externa [atual] representa ruptura praticamente total com a linha seguida pelo Brasil desde o governo Geisel (1974-1979) e acentuada após a redemocratização: política de afirmação da autonomia de acordo com os interesses nacionais, sem alinhamentos ou hostilidades automáticas a nenhuma potência”, explica o embaixador aposentado Rubens Ricupero, crítico das ações do chanceler.

Também houve, na visão de especialistas, uma forte dose de contradições. Um dos maiores trunfos reivindicados por Ernesto, a conclusão do acordo comercial do Mercosul com a União Europeia dialoga com a orientação liberal do governo. 

Não deixa de ser, no entanto, um tratado assinado com uma organização supranacional, com capítulos que estabelecem compromissos políticos estranhos à retórica nacionalista do ministro.

Diplomatas e acadêmicos ressaltam ainda que a elaboração da política externa do governo Bolsonaro não pode ser atribuída só a Ernesto, mas à atuação conjunta dele com outros dois personagens: o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e o assessor especial da presidência para assuntos internacionais, Filipe Martins.

Seja formulador, seja executor da agenda, o fato é que Ernesto não tardou em começar a implementá-la tão logo assumiu o posto.

Ele abriu as portas do Itamaraty em janeiro para receber as principais lideranças da oposição ao ditador Nicolás Maduro, no que foi o gesto mais forte do Brasil até então para forçar uma mudança de regime na Venezuela.

Ato seguido pelo endosso à autoproclamação de Juan Guaidó como governante da Venezuela. Se a ofensiva diplomática contra Maduro foi um dos primeiros sinais de que novos ventos sopravam no Itamaraty, a crise em Caracas também se converteu na maior frustração de Ernesto.

Mesmo com a agressividade inédita adotada pelo Brasil e as medidas conjuntas coordenadas pelo Grupo de Lima, Maduro permanece no poder e a própria oposição liderada por Guaidó chega em dezembro enfraquecida.

“Não temos como ter outra posição na Venezuela, mas até agora não conseguimos resolver ou solucionar o problema. E isso é preocupante”, avalia o embaixador aposentado Regis Arslanian.

O posicionamento do Brasil em relação ao regime chavista é também reflexo de um dos pilares da chancelaria atual: o alinhamento com os EUA.

Tanto que o ministro colocou como uma das suas prioridades organizar o mais cedo possível uma agenda oficial de Bolsonaro na Casa Branca.

Desde a visita, em março, o governo fez uma série de concessões a Washington, entre eles o abandono do tratamento preferencial na Organização Mundial do Comércio e a elevação de cotas para a importação de trigo e etanol dos EUA.

O alinhamento automático veio a um preço político para o ministro. A falta de compensações na área econômica por parte dos americanos abriu um flanco de críticas contra Ernesto, como as disparadas pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e pelo líder da bancada ruralista, deputado Alceu Moreira (MDB-RS).

O embaixador Arslanian tem opinião diferente e afirma que a aproximação com os EUA é, sim, benéfica.

“Tem que ter amizade com o maior parceiro estratégico do nosso hemisfério. A relação de proximidade de Trump e Bolsonaro facilita todo o processo de conversa abaixo do nível presidencial”, opina.

Seja na reação à crise na Venezuela, na relação com os EUA ou na reorientação da política para o Oriente Médio, Ernesto conseguiu impor sua visão sempre que os interesses de algum setor importante não se sentiram prejudicados, ressaltam analistas.

Eles afirmam ainda que a pauta conservadora do chanceler nos costumes —como a decisão de não incluir em documentos o direito à saúde reprodutiva— tem sido implementada com facilidade por não encontrar oposição nesses segmentos econômicos.

O caso de recuo mais emblemático do ano foi a promessa de campanha de transferir a embaixada brasileira em Israel de Tel Aviv para Jerusalém, tema que saiu de pauta pela pressão do agronegócio.

Algo semelhante ocorreu na relação com a China, o principal comprador de produtos agrícolas do Brasil. E mais recentemente no esforço de apaziguamento das animosidades entre Bolsonaro e o presidente argentino, o perónista Alberto Fernández.

Durante a campanha presidencial, Bolsonaro chegou a dizer que os chineses estavam “comprando o Brasil”. Além disso, as principais cabeças por trás da guinada no Itamaraty —Ernesto, Eduardo e Martins— veem com desconfiança os chineses, antagonistas dos EUA na arena global.

“Na mudança de atitude em relação à China, da inicial desconfiança à visita de Bolsonaro ao país asiático e, sobretudo, às declarações após a visita de Xi Jinping a Brasília, as informações disponíveis 
indicam que as retificações de rumo teriam provindo não da influência do ministro [Ernesto], mas, sobretudo, de setores empresariais e da equipe econômica”, diz Ricupero.

“Trata-se de um governo que acerta mais quando recua do que quando avança. A lista de medidas ou políticas desastrosas anunciadas e posteriormente ratificadas no todo ou em parte é gigantesca.”
Arslanian, por sua vez, vê nos diferentes gestos de moderação um ponto positivo.

“O grande mérito do governo é que, apesar de ter uma ideologia oposta à administração anterior [do PT], há uma acomodação. Uma volta para um meio-termo mais conciliador. Mais voltado para os interesses do país e pragmático.”


Cronologia

janeiro
Brasil, em conjunto com 12 países da região, reconheceu Juan Guaidó como presidente interino da Venezuela em meio à crise do governo do ditador Nicolás Maduro, que chegou a acusar o presidente Jair Bolsonaro de agir de forma criminosa e intervencionista

abril
A Apex (Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos) foi foco de crise após o chanceler Ernesto Araújo tentar ampliar poderes de aliados e neutralizar o então presidente do órgão, o embaixador Mario Vilalva. O episódio acabou com a demissão de Vilalva

julho
Bolsonaro revelou que havia decidido indicar Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) para o cargo de embaixador em Washington, o posto mais importante da diplomacia brasileira no exterior. Houve um recuo em outubro em razão da resistência do Senado ao nome do filho 03

agosto
Bolsonaro e o presidente da França, Emannuel Macron, entraram em confronto em razão de questões ambientais. O francês disse que o brasileiro mentiu ao se comprometer com preservação. A mulher de Macron foi alvo de machismo

novembro
Após a vitória de Alberto Fernández na Argentina, candidato de esquerda cuja vice é Cristina Kirchner, Bolsonaro abre nova crise: diz que não iria a posse, quebrando uma tradição de 17 anos. Entre idas e vindas, enviou seu vice, Hamilton Mourão, para a cerimônia neste mês


Quem é quem na política externa brasileira

O trio ideológico

Ernesto Araújo, Eduardo Bolsonaro e Filipe Martins são seguidores das ideias do escritor Olavo de Carvalho, pregam o alinhamento com os EUA e uma relação mais distante com a China, além de uma política no Oriente Médio pró-Israel. Também defendem que o Itamaraty abrace, nos fóruns internacionais, uma pauta conservadora e com viés religioso.

O trio pragmático

Setores econômicos e militares que veem com desconfiança o alinhamento com os EUA. O agronegócio, por exemplo, considera que os americanos não ofereceram contrapartidas às concessões brasileiras e defende que o Brasil não pode se afastar da China por motivos ideológicos. Há setores militares ainda que criticam a estratégia da ala ideológica de confrontamento com a Venezuela.

Erramos: o texto foi alterado

Uma versão anterior desta reportagem afirmava que Ernesto Araújo fez seu primeiro discurso como chanceler em 2 de janeiro de 2018, mas o correto é 2 de janeiro de 2019. O texto foi corrigido.

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