Macri se despede da Presidência em depressão pós-choque neoliberal fracassado

Presidente deixa país com desempenho econômico sofrível, mas com avanços institucionais

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Buenos Aires

Três dias antes de Alberto Fernández assumir a Presidência argentina, o atual ocupante da Casa Rosada, Mauricio Macri, despede-se de seus apoiadores neste sábado (7), em um ato na Praça de Maio. 

Em clima de terapia, Macri passou a última semana relembrando momentos de sua gestão em postagens na internet e em um pronunciamento em cadeia nacional na TV.

Publicou nas redes sociais pequenos vídeos, chamados de “momentos”, nos quais reviveu passagens de sua gestão, e, num comunicado à nação, na quinta-feira (5), se disse frustrado com o desempenho econômico do país.

Justificou, porém, as principais causas de seu fracasso com fatores alheios às suas medidas: a forte seca que em 2017 e 2018 comprometeu a colheita de soja e os efeitos impostos pelo clima de guerra econômica no panorama internacional.

Mauricio Macri, então candidato à reeleição, durante comício eleitoral em Córdoba
Mauricio Macri, então candidato à reeleição, durante comício eleitoral em Córdoba - Ronaldo Schemidt - 27.out.19/AFP

Também afirmou que a Argentina é hoje "um país mais tolerante", onde há menos divisões na sociedade e as instituições e estatísticas são mais confiáveis.

Assim, Macri tenta deixar o poder com pose de democrata, que aceita a derrota nas urnas e que quer liderar uma “oposição construtiva” —esse é seu discurso desde 27 de outubro, quando perdeu em primeiro turno.

Mas o primeiro presidente não peronista a finalizar seu mandato não deixa o país em boas condições.

Ele, que desde o primeiro dia de governo disse ter recebido uma “herança maldita”, referindo-se ao estado da economia durante o mandato de Cristina Kirchner (2007-2015), entrega um legado negativo na área, o que se transformou na maior preocupação do futuro governo de Fernández.

Além de os números finais desses quatro anos não serem bons, Macri tampouco teve estabilidade política na economia.

Após ter contado com três titulares da Fazenda —Alfonso Prat-Gay, Nicolás Dujovne e Hernán Lacunza—, dividiu o ministério em subpastas porque preferia o "trabalho em equipe em vez de superministros".

Mesmo assim, não pôde evitar uma grande desvalorização do peso —se US$ 1 custava 14 pesos quando assumiu, agora custa 62,25 pesos. Os salários no país, claro, não acompanharam esse ritmo.

Também houve aumento da inflação, que deve fechar o ano em 55%, e do número de pobres, de 28,5% em 2015, quando assumiu, para 40% quatro anos depois.

No meio do caminho, endividou ainda mais o país devido a um déficit orçamentário crônico que sua equipe não pôde resolver.

Uma linha de crédito com o FMI (Fundo Monetário Internacional) foi aberta, e a Argentina contraiu um empréstimo de US$ 57 bilhões (R$ 236 bilhões) —a remessa que falta, de US$ 11 bilhões, foi dispensada por Fernández, cujo principal desafio após assumir é definir como pagará o que já foi gasto.

A estratégia de não realizar um choque neoliberal de uma só vez tampouco funcionou. Adotou o que chamou de "gradualismo", ou seja, reformas, ajustes, fim de subsídios e enxugamento da máquina pública, mas tudo paulatinamente.

Assim, o fracasso se deve principalmente às tarifas a conta-gotas, o que ampliava seu desgaste político a cada anúncio. Depois, a promessa de uma "chuva de investimentos" também não se concretizou, dessa vez por conta da desaceleração internacional.

Macri encontrou muito mais dificuldades para derrubar travas protecionistas do que pensava e, no fim, acabou mantendo muitas delas, especialmente na agroindústria.

Entre os legados positivos, ao menos de acordo com uma pesquisa realizada pelo instituto Berensztein, estão os investimentos em infraestrutura (aprovados por 49% dos que participaram do levantamento), o combate ao narcotráfico (47%) e o esforço para valorizar o funcionamento das instituições do país (43%).

Pode-se mencionar, em relação ao primeiro item, os gastos em construções viárias, a abertura de linhas aéreas entre as províncias sem que fosse necessário passar por Buenos Aires e as obras de modernização na capital, como o Paseo del Bajo.

Já sobre o narcotráfico, houve maior número de apreensões e grande exploração midiática de cada uma delas, o que não significa que a Argentina tenha saído da rota do tráfico de drogas latino-americano.

Os índices de homicídio de cidades como Rosario, principal porto de saída de substâncias ilícitas ao exterior, demonstram isso.

Também é fato que a Justiça do país melhorou, embora siga lenta e sujeita a pressões de atores políticos.

Mas colocou-se em prática, por exemplo, a Lei do Arrependido, parecida com o mecanismo da delação premiada no Brasil. Investigações de casos de corrupção avançaram por meio da regra. 

Ao contrário do que muitas organizações de direitos humanos temiam, o governo Macri não abafou nem colocou travas para frear os delitos de lesa-humanidade cometidos durante a ditadura militar (1976-1983).

Não concedeu anistia a genocidas, como pedia a ala mais à direita de seus apoiadores, e não deixou de dar dinheiro, como manda a Constituição do país, a instituições como as Avós da Praça de Maio —que busca filhos de desaparecidos— e a Equipe Argentina de Antropologia Forense, que realiza análises de ossadas para determinar identidades de corpos.

Macri também se saiu bem no flanco da política externa. O país recebeu visitas de presidentes americanos —Barack Obama e Donald Trump— e franceses —François Hollande e Emmanuel Macron— e estabeleceu boas relações em seu continente com líderes de diferentes matizes ideológicas de Chile, Colômbia, Brasil e Uruguai. A Argentina ainda sediou, com sucesso, uma reunião do G20.

O esforço na liderança na pressão sobre o ditador venezuelano Nicolás Maduro foi crucial para a formação do Grupo de Lima. O órgão, por outro lado, não atingiu os resultados desejados até agora. 

Macri e sua família —a mulher, Juliana Awada, a filha Antonia e a enteada, Valentina— já começaram a se mudar de Olivos, a residência oficial do presidente.

Eles buscam uma casa num subúrbio nobre de Buenos Aires, e Macri deve manter um escritório no centro da capital, onde pretende rearmar seu partido, o PRO (Proposta Republicana), e liderar a oposição ao governo kirchnerista. 

Agustina, uma de suas filhas mais velhas, de seu primeiro casamento, comprou uma casa em Madri na esperança de levar o pai para lá. Mas essa hipótese, por ora, está descartada, porque Macri quer seguir na política.

Membro de uma das famílias mais ricas da Argentina –proprietária do Grupo Macri, que atua nas  as áreas de construção, engenharia, coleta de lixo, automóveis e outros–, ele planeja passar uma temporada de férias na Europa, de pelo menos um mês e meio.

​Nos últimos dias, tem se mostrado relaxado e, na noite de quinta-feira, para se despedir de Olivos, foi com Juliana jantar na Panaderia de Pablo, um restaurante a uma quadra da residência oficial.

Como dor de cabeça, terá de enfrentar alguns processos judiciais, entre os quais os escândalos dos Correios, no qual favoreceu seu grupo empresarial ao perdoar parte da dívida que tinha com o Estado, e o da MacAir, em que é acusado de ter favorecido a Avianca em licitações de novas linhas aéreas no país.

Quatro anos depois, com números adversos na economia e uma derrota em primeiro turno para os rivais kirchneristas, Macri entrega uma Argentina em depressão pós-tentativa de choque neoliberal. 

Erramos: o texto foi alterado

O infográfico deste texto trazia dados sobre pobreza de fonte diferente da utilizada na reportagem. O conflito de informações foi corrigido.

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