Descrição de chapéu The Washington Post

Russa que teve mãos decepadas pelo marido se torna voz contra violência doméstica

Vladimir Putin abrandou legislação de combate a agressões contra mulheres

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Amie Ferris Rotman
São Petersburgo | The Washington Post

Em um país onde as vítimas de violência doméstica recebem pouca atenção, é raro que o caso de uma mulher se destaque. O que dirá então da conversão de uma vítima em um nome que todos conhecem.

Talvez seja porque a história de Margarita Gracheva seja tão cruel, sua resiliência tão extraordinária e a atenção que ela recebeu do Kremlin tão inesperada.

Em dezembro de 2017, o marido de Gracheva a levou para uma floresta, onde decepou suas mãos com um machado. Foi um ato hediondo final, após meses de agressões.

Gracheva utiliza no Instagram a hashtag #TransformerMom, devido à sua mão direita biônica. A esquerda foi preservada na neve naquele dia fatídico e religada ao braço graças a várias cirurgias dolorosas.

Margarita Gracheva, que tem uma prótese biônica após seu marido cortar sua mão em 2017 - Ksenia Ivanova/The Washington Post

Agora essa mulher de 27 anos, mãe de dois meninos, virou uma sensação da mídia em toda a Rússia. Fechou um contrato de livro com uma editora pró-Kremlin e virou presença constante na televisão pública.

A atenção que a mídia apoiada pelo Kremlin lhe está dando é surpreendente por ocorrer num país que quase três anos atrás descriminalizou algumas formas de violência doméstica e onde as divergências com as posições do governo raramente são expressas publicamente.

“Quantos casos já não houve desde o meu, quantas mulheres já não foram mortas? E o governo fica sentado, parado, sem conseguir fazer nada”, disse Gracheva ao jornal The Washington Post em turnê recente para divulgar seu livro, “Happy Without Hands” (feliz sem mãos).

Os antecedentes do ataque a Gracheva seguiram um padrão que já é fartamente conhecido em um país onde, segundo entidades de direitos humanos, uma mulher é assassinada por seu companheiro a cada 40 minutos.

Depois de seu marido ameaçá-la com uma faca, Gracheva procurou a polícia de sua cidade, ao sul de Moscou, mas os policiais a trataram com desdém e desinteresse.

“A polícia neste país não nos leva a sério”, disse.

Mas há alguns pequenos sinais de transformação visíveis. Um coro crescente de vozes no governo e na sociedade reivindica que o país finalmente —e pela primeira vez— promulgue uma lei contra a violência doméstica.

A Rússia é o único país dos 47 que integram o Conselho da Europa que não possui legislação específica para proteger as mulheres contra a violência doméstica.

Gracheva afirma acreditar que a única razão pela qual seu marido recebeu uma sentença de prisão longa, 14 anos, foi a atenção que seu caso recebeu da mídia.

Antes da tragédia ela teria evitado chamar a atenção de qualquer maneira, mas agora Gracheva reconhece que a atenção da imprensa é útil para sua causa.

“Se o fato de meu rosto se tornar conhecido aumentar a conscientização do sofrimento das mulheres, que seja”, comentou.

A violência doméstica vem dominando as manchetes na Rússia de uma maneira que nunca antes aconteceu.

Está ficando cada vez mais difícil para o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, em seu telefonema diário com jornalistas, fugir da preocupação nacional crescente com essa questão.

A mudança no estado de ânimo público vem sendo acompanhada por protestos de rua e uma explosão de atividades artísticas e culturais que tratam do assunto, incluindo peças de teatro e videogames.

Uma série de casos de violência doméstica de alto perfil também cativou a atenção do país.

Em outubro, um alto executivo de uma das unidades de um dos maiores bancos russos, o Alfa Capital, foi demitido depois de sua esposa denunciar que ele a espancara.

Moscou está acompanhando de perto a perspectiva de sentenças de prisão para irmãs que se vingaram de seu pai, Mikhail Khachaturyan, depois de sofrerem anos de violência sexual e física da parte dele.

Duas irmãs foram declaradas “conscientes de seus atos” e podem ser indiciadas por homicídio premeditado de seu pai, morto a facadas no ano passado enquanto dormia.

Uma terceira irmã, a mais jovem, não deve ser criminalmente acusada, segundo investigadores.

No mês passado a indignação pública se intensificou diante do caso sinistro de uma jovem acadêmica assassinada e esquartejada por seu amante e colega em São Petersburgo, que já havia sido acusado de violência contra mulheres no passado.

O caso chegou a suscitar críticas de um dos comentaristas populares mais pró-Kremlin, Dmitry Kiselyov, cujo programa semanal funciona como uma espécie de barômetro da opinião pública imposta pelo Estado sob a direção do presidente Vladi­mir Putin.

“É muito estranho que nem sequer tenhamos o termo ‘violência doméstica’ na legislação russa”, comentou Kiselyov durante um segmento dedicado à questão.

Mari Davtyan, eminente advogada de direitos humanos que representa Margarita Gracheva, disse que os casos recentes “estão ajudando o governo a entender que não estamos lidando corretamente com a violência”.

Parlamentares e ativistas tentam há meia década fazer aprovar uma lei de violência doméstica.

Mas desta vez a impressão é que será diferente. Em setembro, quando a seguidora de Putin Valentina Matviyenko foi reeleita líder da câmara alta do Parlamento, ela disse que a violência doméstica seria uma prioridade da sessão atual do organismo.

Outra figura governamental influente, a ombudsman de direitos humanos Tatyana Moskalkova, pediu neste ano que a Rússia “crie prontamente” uma lei que combata a violência contra a mulher.

“Estamos trabalhando arduamente neste projeto e vimos algumas ações positivas do governo indicativas de que um projeto de lei será submetido ao Parlamento para uma primeira leitura ainda neste inverno”, disse Davtyan.

O novo projeto de lei inclui regulamentos sobre ordens de proteção (proibindo que agressores se aproximem de vítimas) e sobre perseguição, que não fazem parte de qualquer legislação russa atual.

Pelas leis locais, a medida terá que ser aprovada em três leituras antes de ser encaminhada à mesa de Putin, cujo apoio às políticas conservadoras esteve por trás da descriminalização da violência doméstica, em primeiro lugar.

Davtyan disse que o fato de duas mulheres do partido de Putin, o Rússia Unida, estarem trabalhando sobre o projeto de lei lhe confere esperança. “É uma surpresa boa”, disse.

Margarita Gracheva responde a perguntas durante apresentação de seu livro, em São Petersburgo - Ksenia Ivanova/The Washington Post

​Mas a medida enfrenta oposição substancial, especialmente dos altos escalões da sociedade russa, dominadas por homens e nos quais Putin cultiva a imagem de um Estado que agrada às atitudes tradicionalistas e machistas.

“Vivemos em um patriarcado”, disse a advogada e ativista Alyona Popova, que ajudou a redigir o projeto de lei, falando num festival feminista em Moscou no final de novembro.

“Vivemos num país onde nosso presidente fala que a própria palavra ‘gênero’ destrói famílias.”

A Corte Europeia de Direitos Humanos assumiu recentemente os casos de Margarita Gracheva e três outras russas.

Respondendo recentemente à corte, o Ministério da Justiça russo minimizou a abrangência da violência doméstica e até mesmo o elemento de gênero que ela contém.

“É lógico supor que as vítimas do sexo masculino sofrem mais com a discriminação em casos como esses”, declarou o vice-ministro da Justiça, Mikhail Galperin.

Familiares de mulheres russas assassinadas por seus companheiros reagiram enfurecidos, exigindo a renúncia dele.

A Igreja Ortodoxa russa, que sob o governo Putin viu sua influência subir meteoricamente, tradicionalmente se opõe a qualquer lei de violência doméstica.

No mês passado, entidades cristãs organizaram pequenos protestos em vários pontos do país em que os participantes seguraram faixas dizendo “minha casa é minha fortaleza”.

Um dos organizadores dos protestos disse que uma lei de violência doméstica “levará os homens a não quererem se casar”.

Mas é pouco provável que a igreja resista a qualquer pressão governamental.

“Nossa igreja é influente porque é um departamento do Estado”, comentou a cientista política Ekaterina Schulmann, que trabalhou no projeto de lei.

“Se houver uma vontade política de aprovar a lei, a igreja não se oporá."

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.