Descrição de chapéu Governo Biden

Trump vai gastar tempo e dinheiro na Justiça e não deve liderar futuro do partido, avalia escritora

Autora de 'O Crepúsculo da Democracia', Anne Applebaum aponta que estilo de Biden pode prejudicá-lo no futuro

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São Paulo

Para a escritora americana Anne Applebaum, o ex-presidente Donald Trump não deverá liderar os republicanos no futuro, porque terá de lidar com uma série de processos judiciais —o que lhe tomará muito tempo e dinheiro.

Já o estilo trumpista, mais focado em guerras culturais do que em problemas reais, deve seguir presente e manter sua força, avalia ela, pois o sistema eleitoral americano faz com que muitos congressistas não precisem buscar eleitores moderados para se reelegerem.

A escritora Anne Applebaum
A escritora Anne Applebaum - Divulgação

Applebaum, 56, lança no Brasil o livro "O Crepúsculo da Democracia" (Ed. Record), em que relata o avanço do radicalismo de direita na política em vários países, como Estados Unidos, Reino Unido, Polônia e Espanha.

Escritora e jornalista, ela acompanhou esse movimento de perto. Casada com um político polonês, Applebaum conta no livro como viu muitos amigos mudarem radicalmente de posição e usarem sua capacidade intelectual para fortalecer governos autoritários, que se baseiam em mentiras, em busca de ganhos pessoais.

Em conversa com a Folha, por videoconferência, ela falou também sobre os rumos do governo de Joe Biden, a regulação de redes sociais e os efeitos da pandemia na crise das democracias.

Como avalia o futuro de Trump e do trumpismo? As coisas sempre podem mudar, mas, neste momento, não acho que Trump deverá liderar o partido nos próximos anos. Ele terá que se dedicar a inúmeras batalhas judiciais, por conta da invasão do Congresso e por outros temas. O líder republicano [no Senado] Mitch McConnell disse, após votar por inocentá-lo no impeachment, que a invasão era um caso da Justiça criminal. Foi praticamente um convite para que as pessoas processem Trump.

Já a insistência por impor histórias falsas, ligadas a queixas sobre a falsa crença de que a eleição foi roubada, defendida pelos seguidores dele, continuará, porque é um modo efetivo de fazer política em algumas partes do país.

Uma das coisas mais estranhas sobre a democracia americana é que muitos membros do Congresso não precisam de apoio centrista ou moderado para se elegerem: só de apoio partidário, por conta do modo como os cidadãos são divididos nos distritos. Assim, quanto mais partidários forem e mais raivosos soarem, mais votos conseguirão. Então, esse modo de agir continuará dentro do partido [Republicano].

No entanto, haverá uma batalha interna, não de esquerda versus direita, mas de realidade versus irrealidade. Você está na política porque acredita em resolver problemas reais, como construir estradas e definir impostos ou porque quer lutar essa guerra cultural? A briga no partido será entre esses dois grupos.

Biden não parece disposto a lutar essa guerra cultural. Ao tentar desviar dela, poderá ter problemas no futuro? Biden é melhor em outra coisa: baixar o tom da guerra cultural. Ao fazer isso, ele permitirá que as pessoas em lados opostos da política possam falar sobre coisas reais, como economia e vacinas, mesmo que tenham visões opostas. É o seu modo de tentar liberar a tensão criada pela polarização profunda. Sua meta é mudar o assunto. Ele quase nunca menciona Trump.

No entanto, há risco de que ele seja visto como insuficiente em termos de gerar engajamento e excitação dos eleitores. Esse risco é maior para o seu partido [Democrata]. Há pessoas à esquerda que o consideram entediante, pouco inspirador, e que querem algo mais dramático e radical na política.

Como avalia o início do governo Biden? Estou interessada no que ele faz em nível internacional. Dar um papel central para a democracia e defendê-la no exterior tem impacto doméstico, porque isso é central no modo como nos definimos como nação.

Não é um acidente o fato de que o primeiro presidente a não defender a democracia e a não estar interessado em alianças com democracias no exterior foi também o primeiro presidente americano, ao menos desde a Guerra Civil [1861-1865], a instigar uma rebelião anti-Estado.

Biden busca se colocar como o presidente de uma democracia, que é aliada de outras democracias. Não sei se ele terá sucesso, mas é o que está tentando.

Nos últimos meses, as redes sociais têm tomado algumas medidas para conter discursos de ódio e fake news. Essas ações têm sido válidas? Deixar as próprias plataformas fazerem esse controle é um grande erro, porque não temos nenhum meio de monitorar o que elas realmente estão fazendo.

Eu defendo a regulação, mas isso não quer dizer que o governo deve censurar as coisas. Há outros meios de criar um tipo de rede social interessante, que as pessoas vão achar atraente e usar de um jeito bom para um debate democrático.

É preciso regular o algoritmo e ter mais transparência sobre o que é promovido e por quê. É algo que o governo poderia intervir, para que grupos independentes também pudessem monitorar o que as redes sociais estão promovendo e que engenharia afeta os assuntos de que nós estamos falando.

Estamos mais perto de fazer isso do que a maioria das pessoas percebe. Mas será preciso um grande estímulo político. Tenho esperança de que Biden, talvez junto com outras democracias, será capaz de fazê-lo.

Alguns políticos dizem que regular as redes gera censura à liberdade de expressão. Como avalia esse questionamento? Eu não defendo censura, mas algo diferente: a regulação da engenharia [das redes]. A censura depende do contexto. É muito difícil para as pessoas entenderem que o problema hoje não é o estilo antigo de censura, a reportagem de alguém ser retirada de um jornal e não poder ser publicada. O problema real é a questão sobre o que está sendo amplificado [nas redes] e o que não está.

Somos inundados por muita informação, e a questão é o que é amplificado, o que nós ouvimos, o que consegue romper as barreiras e chegar até nós. Por isso, a regulação não deve ser sobre o conteúdo, mas sobre os algoritmos de amplificação.

Qual tem sido o efeito da pandemia sobre a crise da democracia no mundo? As diferenças reais na pandemia não foram entre autocracias e democracias, mas entre países onde há muita confiança pública e os governos, cientistas e burocratas são respeitados, e entre aqueles onde isso não ocorre.

Os Estados Unidos e o Brasil são democracias e tiveram desempenho muito ruim na pandemia. Taiwan, Coreia do Sul e Alemanha são democracias e se saíram bem melhor. Comparativamente, menos pessoas morreram, há menos disruptura e mais coesão social.

Pode-se dizer o mesmo sobre autocracias. Algumas foram muito mal e outras, melhor. Não se tratou só da forma como os líderes políticos são eleitos, mas da integridade do sistema todo. Em uma emergência de saúde pública, quando você precisa regular o comportamento das pessoas de algum jeito, convencê-las a fazer coisas que elas não querem, como ficar em casa e usar máscaras, o grau de confiança no governo é muito importante.

EUA e Brasil são similares nesse ponto. Ambos foram liderados por pessoas que viram a pandemia como um problema político e pensaram que poderiam tirar vantagens ao desafiá-la. Seria melhor dizer que a pandemia era um engodo, para não usar máscaras, porque pensaram que seus apoiadores iriam gostar disso. E é por isso que tivemos reações tão caóticas nesses dois países.

Penso que realmente podemos atribuir isso a Trump e Bolsonaro. Nenhum deles teve culpa pelo começo da crise, mas ambos foram responsáveis por tornar o problema muito pior, em dois países muito sofisticados, onde não tinha que ser assim.

Acha que eles poderão ser condenados por essas ações no futuro? Eles são dois líderes que crescem na desconfiança. Eles encorajam a desconfiança, chegaram ao poder por causa dela, usam-na para se manter no cargo, e é por isso que eles conseguem escapar e não serem punidos por mentir, porque parte da população dos dois países não sabe mais o que é verdade e o que não é, então parou de se importar.

Se alguém será responsabilizado por isso, não sei. Às vezes apenas demora muito. Veja o exemplo do brexit, no qual todos os tipos de coisa que o governo disse que não aconteceriam, como uma fronteira efetiva entre as Irlandas, negócios indo à falência, e as pessoas ouviram que isso nunca aconteceria, que o brexit seria um grande sucesso, mas é sempre uma mentira. E a maioria das pessoas que as disseram sabiam que era mentira.

Se elas vão pagar por isso, eu não sei. Talvez tenha sido muito tempo atrás. O brexit foi votado há cinco anos, e talvez ninguém mais se importe.

No livro, você aponta que as instituições do governo foram feitas para outra época e não condizem com a realidade do mundo digital. Por onde elas poderiam começar a se adaptar? O Brasil tem um bom exemplo, de licitações online, que ajudam a reduzir a corrupção. Aumentar a eficiência de governos locais também ajuda a ampliar a confiança. Em muitas democracias, muitas instituições são velhas e precisam ser atualizadas. Nos EUA, há uma série de razões pelas quais o Congresso se tornou não representativo.

Os governos poderiam usar o espaço digital de modo mais eficiente. Em Taiwan, o governo faz grandes debates públicos por meio de um software, que busca criar consensos. As pessoas podem postar coisas, como no Twitter, mas em vez de criar discussões, a ferramenta te coloca com pessoas com quem você concorda, ao menos parcialmente. E isso pode ser usado para criar soluções e achar respostas.

Com mais consultas digitais como essa, o governo receberia mais retornos construtivos, e não teria apenas pessoas gritando contra o Estado.


Raio-x

Anne Applebaum, 56
Nascida em Washington, foi colunista e editora em grandes jornais dos EUA e do Reino Unido, como Washington Post, Evening Standard e Daily Telegraph. Escreveu três livros sobre a dura repressão do governo de Josef Stalin na União Soviética. Um deles, "Gulag", venceu o prêmio Pulitzer em 2004. Atualmente, escreve para a revista The Atlantic e é senior fellow no Agora Institute, na Johns Hopkins University, que tem como missão estimular o fortalecimento da democracia.

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